Conto: O sagrado Psiu.

O mafuá era bem perto do terminal Princesa Isabel. De lá avistávamos o monumento a Duque de Caxias. E dali também surgiu o nosso Duque Ademar. Certamente o Caxias nem via nem ouvia a vadiagem em seu bronze patinado de 18 toneladas. Metros de envergadura tupiniquim. O peso do velho farsesco nem nos atingia.

(Por Francisco Chagas / foto de capa: Léo Rubira)


Ali não tinha igual, pelo menos pra gente, o boteco do Seu Ademir era o lugar, o bom lugar. Samba até de manhã, onde podíamos em bando cantar as desgraças com quitutes gordurosos. Pandeiro e cavaco comendo soltos, guela gelada, versos vorazes e ao final da noite enveredávamos em Lupicínios, Nelson Gonçalves e Cavaquinho e toda dor de cotovelo que uma mesa de bar e um garçom podem nos servir. Ali toda a gente era farta, ainda que com seus vazios.

O mafuá era bem perto do terminal Princesa Isabel. De lá avistávamos o monumento a Duque de Caxias. E dali também surgiu o nosso Duque Ademar. Certamente o Caxias nem via nem ouvia a vadiagem em seu bronze patinado de 18 toneladas. Metros de envergadura tupiniquim. O peso do velho farsesco nem nos atingia. “Que me sigam os que são brasileiros”. Velho desgraçado, em vosso rabo, enfie a espada!, era o lema da rapaziada. O verso virou um partido alto em que cada palavra destilava o cheiro de cachaça dos cafundós mais profundos e de fígados fartos e calejados. E toda a gente, farta de heroísmos e de nacionalismos, bradava: “quero ver sambar em cima do cavalo, seu Caxias!”.

Enquanto o cavalo do Caxias não nos via; nosso Duque Adema abria estradas para vagabundo sonhar. Caboclo respeitado, cheio de prudência, língua afiada, voz grave, rugas respeitosas, cabelos grisalhos e crespos, magro como um espeto de gato e imponente como leão de circo. Ninguém entendia de onde retumbava aquela voz. Todos paravam para ouvir sua imitação de Nelson Ned e Francisco Alves. Era o ponto alto de muitas bebedeiras. Ele mesmo era o garçom junto de seus equilibristas fieis no serviço. Negócio de família. Juntaram uns tostões e se mantinham e mantinham algo para além da bebedeira. Seu Adema via a conta na caderneta como uma espécie de confiança da confraria daquela comunidade espúria e alentada por aquele espaço. Sua mulher, sua mãe, seu irmão, seu primo, sua cunhada e quem mais pudesse davam aquela força aos fins de semana quando o pagode se fazia com sufoco, suor e euforia. Todos perdíamos a conta, mas ninguém deixava de pagar. Éramos necessitados daquilo. Era nossa sobrevivência; ele era nossa redenção cotidiana. Se o boteco é o lugar sagrado da vida boêmia, ali pagávamos nossos pecados de querer transformar o Caxias em rato.

Porém, desde a virada do século os capadócios não mais conseguiam se encontrar para o devido rito no devido lugar. Estavam atravancados no trânsito de uma cidade imperativa e acimentada na rotina do trabalho-vida; estavam se embriagando sem a tradição do ogó de todas as esquinas.  Nem mais pro santo tinha. Tinha uma barulhada de trator e britadeira. Tava tudo estranho… e parecia tão normal.

Os olhos miúdos de Seu Ademir tinham sido gastos pelo tempo. Era tanta história pra contar que quando ele começava, depois de pouco tempo, parecia adormecer. Sonhava acordado. Um sonho sem eira nem beira; mas era sonho que nos embalava. A história continuava como um transe e terminava sempre com “aquele fio da puta…”; o restante pouco se entendia. De fato, sempre tinha, no entanto, justeza na trama.

O estômago vazio de todos era completado por porções de costeleta de porco, linguiça calabresa com cebola e caldinho de feijão com pimenta. Falassem o que falassem dos vadios que ali se reuniam, mas com tanta cachaça na cabeça sem perder o ritmo e a melodia não é pra qualquer um, não. Quando um acertava uma quadra na rima emparelhada de versos de sete ou oito, os gritos eram a glória de que aquela estrofe perfeita se eternizara por segundos. Toda aquela voz  era de escribas iletrados, recusados da vida cotidiana. Queira ou não, sonhávamos outra cidade em cada quadra, em cada rima. Meramente eu cantava e via e ria. Sentia-me um intruso, ainda que acolhido a cada refrão e, por vezes, me chamavam pra uma versação truncada, e eu corria atrás dos versos vadios. Aprendi a versar com essa vadiagem.

Depois de todo samba terminávamos libertos, mas sem precisar do aval da princesinha Isabel, espaçosa e imperiosa, como aquela praça imensa e rançosa que não queria em seu chão os papelões.

No botequim, o mural de bebidas era como uma exposição de troféus. Cachaças baratas, whisky barato, Campari – este era do fim de noite depois de receber o pingado do mês, sentíamos o amargor e o doce da vida, quase poesia – , vermute e conhaque. Os dois últimos faziam a vez dos drinks clássicos de bar: maria mole e rabo de galo. Ninguém faz como eu, bradava Seu Ademir. Saculejava as bebidas e num malabarismo em que as mãos quase sumiam tamanha a agilidade colocava no copo a dose perfeita. “Só falta músculo pra virar barman, Adema!”, sarriávamos, e aí ele mostrava as bisnaguinhas do bíceps e a barriga magricela e trincada de tristeza. “Isso aqui – levantava a blusa e apontava pro umbigo – dá mais tesão que qualquer macharéu de sunga de crochê em Copacabana”.

Alguns hotelecos no entorno da região hospedavam putas, pobres e os restos dos corpos de alguns pós-birinight pesado. De vários lados vinham os maloqueiros travestidos de trabalhadores; os barbas cansadas; as cabrochas que botavam qualquer malandro pra correr. Todos exaltavam os olhos cansados, mas tinham espíritos firmes. Ali circulavam as almas de bandidos tímidos. A confraria ficava miúda quando chegavam Dona Gracinha, exímia pandeirista, Joana do Passinho, passista da Casa Verde da década de 60, Tia Dadá, mãe de santo que prescrevia banhos de ervas que faziam a gestão dos excretores da rapaziada, e Amélia, a negra linda com olhos de tigresa. Esta, fatalmente, arrancava suspiros dos malandros. Elas eram como inquisidoras e santas. Faziam o coro quando o samba tava pêgo. Fuzilavam com um olhar os marmanjos, detendo qualquer gesto a mais, qualquer refrãozinho safado de rima fácil em redondilhas. Emanavam uma força que nenhum homem conseguiria alcançar nem na quadra mais bem encaixada. Sem elas o samba não se firmava no santuário. E quando paravam, o samba ia perdendo a cadência, virava qualquer nota até os esfarrapados perderem o compasso. E elas continuavam bebendo, deixando os homens à míngua; “vocês não sabem / nem da metade da reza”, versavam com tônica deslocada no verbo saber e riam alto ao virem os esfarrapados sem entenderem nada.

Certa noite, quase corujando, escutávamos um bom disco do Fundo de Quintal. Disco daqueles que se fala um verso e vem junto uma vida. Obra maior e mais monumental que o velho Duque de Caxias nunca supusera ouvir. Era como se enfiássemos a espada naquele cu de farda e ainda um supositório de samba, com tantã, repique e coro quente. Um veneno que mata quem o repele. A gente se distraía melancolicamente, tocando a alegria e cantando a tristeza. Ao mesmo tempo recusávamos o lero besuntado que vinha dos jornais, da politicada de Collor, FHC e toda a corja liberal. Republicanagem de calhordas. A gente via o país ir buraco adentro na década de 90. Se essa corja depende de capitão-do-mato, a versão moderna era matar pobre com escopeta e botequim com trator. Mas pra entrar no nosso buraco a coisa não era simples.

Num certo dia, mexericando a calçada do bar um homem meia dúzia homem de truculência e de carteirada, um típico soldadinho tinha, tinha um soldadinho. Tava numa pose de malandro despreocupado. Quando se viu coxa despreocupado na quebrada?! Era homem da surdina, do silêncio, rasteiro, conhecido da região por suas safadezas, por seus golpes da meia-noite. Era o leão da selva, o leão de judá clamando pela carne do sacrifício. Carta marcada pra nós. Bêbados, tambolirando com os dedos nas mesas a orquestra percussiva, avistamos o sanguinário. Dois cachorros urinavam na esquina do bar; o garçom logo fez a vez para chispá-los; foram e voltaram, ao lado do poste havia dois suculentos sacos de lixo para se devassarem. Assim o fizeram. O homem meia dúzia homem, ao ver a cena, parou com uma contração violenta no pescoço. Rijo, dentes trincados e panótico-patético com seu meio metro de altura percorreu as mesas do bar com olhar de caçador. Num olhar: os que espiavam o chão, os bêbedos cantores de chuveiro, os rumores políticos e uns discos de samba dependurados nas paredes. Houve tempo, lá pro início de 90, que outro sanguinário, dúzia-inteira-da-quebrada, como demos a alcunha, dava surras em quem queria. E ainda levava os pasmos pro camburão. O mundo era uma delinquência pra ele. Menos para o seu bolso. Essa prática nunca cessou. E a gente sabia: desgraçado quando ficava mexericando, era pra encher sua bolseta.

O soldadinho começou a se aproximar com andar meio coxo, cuticulando despretensiosamente as unhas brilhantes, e avistou a placa vistosa de Seu Ademir acima do balcão: “Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. Então eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hebreus 10, 4-7). O soldadinho era senhor do silêncio, fiscal da “Lei do psiu”; logo desfez o modo rijo como se visse o sublime a sua frente e repetiu os escritos pausadamente na porta do bar: “Holocaustos e sacrifícios…rolo do…Eis que venho, blá blá blá, para fazer a vontade…”. Seu Adema, a contragosto, sempre tinha de servir bebida. Ali, o leão do circo virava gatinho.

– Ei, Seo Ademir, – gritou o soldadinho com sua voz aguda e sarcástica, saudando o velho com certa intimidade e uma piscadela –  tá todo mundo encafuado em corpo de gorila manhoso! … Vou fazer um sacrifício pelo seu botequinho: desce uma gelada agora!

E ficou com o corpo escorado na lateral da porta do bar.

O silêncio dominou. A indignação ebulia nos olhos de cada um. Gorila manhoso é o caralho! Filho da puta! – pensamos como um coro no refrão. Nunca ninguém vira um homem pedindo qualquer dose desse modo ao seu Adema.

Contudo, irrompeu no altar um grito apressado: – Porção de batata, três costeletas fritinhas, torresmo e uma porção de tremoço! vai, Adema! – o garçom produtivo fez o pedido pra ontem, como sempre. Ignoramos o capitão do mato. E, em vez da melancolia, aquilo fez a gente gritar os destinos do Brasil e de nossos times de futebol. Ninguém entendeu de onde veio, mas todos aderiram à euforia.

Atrás do balcão, além do Duque Ademar, estavam Camélia, mulher ágil, no alto dos seus 45 anos, aquela que adorava cheirar as porções antes de servir, e o menino-homem Denílson, que chamávamos de Ademílson, porque era a cópia escarrada do velho. O menino, de 15 anos, trabalhando lá desde os 9, servia cachaça e fazia café pros abandonados da vida e pros que pretendiam curar a ressaca diária. Era parceiro de guerra do botequim, cantava todos os sambas e sabia fazer chiste com os vagabundos. Camélia e Ademílson, logo depois do silêncio coletivo antes da euforia, movimentaram-se como mestre-sala e porta-bandeira em direção às mesas.

Durou uma fração de segundo para logo o Adema entender a embrenhada que o homem meia dúzia homem armava. O indeterminado tinha nome. Os olhos saltaram de seu corpo magro, espinharam-se. Um cabra valente, magro, de rosto barbudo surgia altivo. No meio do falatório impeli o soldadinho:

– O velho não tá pra amizade, meu caro, sai fora!

E retrucaram: “deixa o homi pagar, caraio!…”, e ressoou baixinho ao meu lado: “se o trouxa quer, que seje!”

Encabulado e apexado, Seu Adema fixou os olhos no anão armado e lhe deu o papo reto:

– Bota gente na rua e ainda quer meu bar?! – se engrandeceu nosso duque.

De fato, não tinha mais banda, o movimento do bar caíra como gostaríamos que caísse o monumento de Caxias. E a estátua permaneceu, assim como o soldadinho do psiu na porta do boteco. Ao ouvir Seu Ademar, Camélia logo recuou, encostando-se retraída na geladeira perto do balcão como um bicho acuado. O rosto do meio homem, ao perceber a cerveja quase recusada, contraía-se, não sei se de raiva ou temor, mas ficava feio como cão. Seu Ademir sufocava as rugas da testa. O menino Ademílson, na lateral do balcão, ao avistar o possível confronto ficou numa interrogação dolorosa. O homem do silêncio cravou as unhas na palma da mão e partiu em direção ao balcão. O desafio foi aceito entre o altar do sacrifício e a mesa do senhor.

– Ué?!, Seo Ademir, tá ajuizado? Cadê o samba do botequinho?

– Não tá ouvindo? – respondeu o dono do altar de peito esturrado, vigorando as costelas magricelas.

O soldadinho ficou em cólera. Se sentiu impotente com aquela frase. O velho não era de dar trela.

– Dois sanduíches. Vai logo! – avançou o meia dúzia como infantaria juvenil.

– Pra você? Não dá…tô falindo, acabou a mussarela, acabou o presunto, acabou tudo, senhor. – respondeu nosso duque virando as costas pro fiscal do silêncio.

– Faz isso não, Senhor Ademir… Esquece o passado! A multa que apliquei foi por ordem de gente de cima. O que você quer que eu faça?

– Essa pergunta é fácil: sai agora e fica longe daqui! – retrucou nosso duque.

O homem surdina virou-se violenta e enfaticamente e gritou:

– Uma rodada de cerveja para o bar!

Os gorilas urraram. Saudaram a autoridade. Era como se tivessem dado um tiro no peito de Seu Ademir. Era como se saudassem ao Duque de Caxias depois da Guerra do Paraguai. Que caceta vocês fazem, seus idiotas?! Mas, sim, a esquadrilha do consumo poderia virar a casaca. Onde estavam os companheiros? Percebeu logo a armadilha inteiriça; o leão sabia atacar estrategicamente. As hienas queriam carniça; foi-se o tempo da companheiragem. Cada um por si e o deus da princesinha contra todos. O Adema aprumou-se, tal qual se prepara para um desafio, e logo pediu pro Ademílson acender uma vela preta no alto da geladeira. O menino pegou uma escada como se fosse escalar o Pico da Neblina, o Grande Brasil. E nosso duque todo aprumado inesperadamente urrou junto: – Vamo cambada, vamo! O menino, de susto, quase caíra dos três degraus que subira tentando equilibrar a vela, o prato e o fogo pro santo. Nosso velho deu uma risada medonha que tomou todo o boteco. E ainda trucou:

– Só vai ter cerveja se pagar adiantado; a banda podre não tem vantagem nesse lugar. E, vai caraio!, desafasta do balcão!

O velho mestre da boemia sacava a covardia da corja. Talvez nunca tivesse visto essa viragem de bêbados. Sabia lidar com safados, mas ainda achava que os vagabundos tinham alguma dignidade com aquele lugar. Algo mudara nesses anos impropérios. Tava difícil de explicar os porquês daquele ultraje ao lugar sagrado da boemia. Uma lástima depender de monopólio de cerveja! Ficou rendido pela promoção que um urubu vendedor lhe fez na semana anterior: se vendesse todos os engradados, ganharia bônus na semana seguinte podendo escolher a cerveja que atraísse mais os clientes…mais clientes, mais dinheiro, poderia investir na acústica, comprar umas caixinhas de som legais, fazer novamente daquele lugar o reduto do samba…sonhos. Desejos modestos, mas irrecuperáveis se não fechasse a boca. Desejava tudo naquele mundinho de dignidade que lhe restava. Estava sendo remoído por uma criatura abstrata que nem sabia nomear. Insuportável.

O menino-homem, depois do equilíbrio da vela, aproximou-se de seu tutor e o cutucou na lombar lhe pedindo calma. Ademilson viu o velho virar leão.

– Vai embora daqui, seu merda! – gritou nosso duque para o meia dúzia de homem, uma dúzia de soldado – E quem quiser que vá junto! – complementou.

– Senhor Ademir, com todo o respeito que lhe resta, – com tom cauteloso pediu o soldadinho – vende logo a gelada. Já falei com o pessoal da cervejaria…eles podem melhorar sua promoção. Já dá até pra trazer uma gata aqui sem aquele pretume de macumba. – insistiu o rato trajado de fiscal.

Ali, naquela hora, só faltava voar mesa e copo pra fazer a cena clássica de pastelão. Mas ali era trágico. Era um grilhão invisível nos solitários empedernidos…era um grilhão no velho que só queria boa companhia e bom samba.

Seu Ademir fechou os olhos; beiços roxeados que mal se mexiam, sentia o desafeto do detrator como se alguém cuspisse em cima de suas porções sagradas; queria mesmo é fazer um carnaval, rodeado de estandartes, batucada de três dias sem parar; queria mesmo bater o pé, gritar, levantar a espinha, fazer o dorso todo mirar naquele covarde miserável e atacá-lo, assim como uma onça sobre um rato. O leão de judá fez-se gato.

O velho leão baixou a cabeça e gemeu para a mulher: – Dá logo essa merda…

A mulher e o menino-homem perguntaram: mas quanto cobra dele?

Despontou um riso brilhoso, do vício e da gula do poder: – Tem três que querem bebida – replicou o soldado – eu e os dois vira-latas ali na calçada. O resto também quer beber. Me dá logo um engradado inteiro!

A corja de gorilas bêbedos urrou novamente. Parecia os bons tempos do partido-alto; agora, porém, os alijados do poder da palavra só ficaram com o vício. As mulheres tinham se afastado há um tempo do bar, não tinha mais a contenção e o escárnio típico das madrugadas. O tempo mostrou a armadilha do sagrado.

O velho Adema só pensava na meta que tinham introjetado em suas ideias. Vender, consumir, promoção, mesas, cadeiras, promoção, investimento, reforma no bar, alegria do bairro, mais vendas, mais clientes…! Deram eira e beira pro velho sonhar. Seria sonho aquilo? Por um momento sentiu-se empresa, queria gozar de sucesso, concursos de boteco, gestionar o gozo do povo; sentiu-se um empreendedor preso pelas ideias fixas de alguém que não sabia quem; um rei momo despido, apenas com uma coroa dourada de plástico; lembrara-se da quebrada de onde vinha, dos sambas nas esquinas, dos exus que abriam caminhos. Tudo se foi…até a vela preta tinha se esquecido. Nem exu tinha mais trabalho.

O engradado se fora rapidamente, muito antes da vela em cima da geladeira acabar; dizem que alegria de vagabundo é mais rápida que a própria alegria. Dez minutos e os bêbados, os intransigentes, os malandros, e até mesmo os melancólicos queriam surrupiar mais cerveja daquela bondade travestida de fiscal. Quase avançaram autonomamente até a geladeira.

– Se derrubarem a vela e se alguma cerveja sair daqui, a faca tira as tripa de vocês, um por um. Vaza, vaza! – logo Camélia e Ademílson se postaram rigidamente feitos uma muralha.

Os gorilas recuaram. Alguns poucos perceberam o limite e logo deram o dinheiro amassado pra cachaça.

Aquele meio homem de silêncio já havia fechado cinco bares na rua; Seo Ademir resistia como nunca. Cerveja barata, petiscos baratos pra agradar o pessoal, até o banheiro estava mais limpo. O lastimoso soldado, em meio à turba da bebedeira coletiva, foi mijar e quando voltou gozava de sua fama momentânea: 

– Adoro a espontaneidade do povo. Cadê o samba, Ademir? Cadê aquelas cabrochas que dançavam aqui? Cabô?”

– Cabô, pai, cabô! – Seu Ademir arrancou as palavras da garganta, os pêlos brancos do braço se eriçaram como serpentes.

– Ae irmão, não tem mais cerveja? – perguntou um bebum qualquer cutucando o braço do soldadinho.

– Sai daqui, seu nojento! – retrucou o soldade e acotevelou o vulto de homem ao seu lado.

Besteira achar que a rélis ficaria murcha. As cabeças se ergueram e poeira levantou pro soldado do psiu. Um banzé começou sem reação alguma. Eram cachorros latindo, latindo, sem um portão à frente. E aqueles bêbados talvez não vissem um palmo a sua frente. Surdinamente, o desgraçado do fiscalzinho saiu em meio ao alvoroço. Era, de fato, um rato. Não pagou. Prometeu pra Seu Ademir que ia fechar a merda toda com um sinal de corte na garganta. Um espectro tomou toda a esquina do bar. Era pior que o monumento a Caxias, pior que a falsa liberdade da princesinha carioca. A vela virou cera rasa; a cerveja, choca. Os bêbedos saíram lentamente, quase se misturando aos dois cachorros que já chafurdavam o lixo na frente do bar.

Na real, o velho contador de histórias de encruzilhada, de olhos baixos, não conseguiu promoção alguma de cervejaria; devia, agora, ainda mais. Mesmo nosso duque sendo calejado, curvou-se diante da desgraça. Pregava os olhos no chão e só os levantava pra ler a porra do Hebreus acima do balcão. “Holocaustos e sacrifícios…” e “fi-lho-da-pu-ta…!” intercalavam-se no murmúrio do velho. Nem mais um samba; nem mais uma história. O Psiu corroeu o zumbido do bar. A especulação imobiliária adoraria o resultado. Assistiriam ao espetáculo daquela noite como uma boa cena de cinema comercial. Um filme corujão que se repete sem ninguém perceber que está sendo repetido. Só faltava demolir aquele bar para formar mais um empreendimento neoclássico de duas torres com muito vidro pra refletir a desgraça de todos, com muito lazer e grades e câmeras.

Mas, houve um momento que Seu Ademir sentiu-se momentaneamente um empreendedor. Tinha lá sua cultura, tinha lá sua tradição, virou até Virada cultural. Foi calado por um soldado que foi calado pela cervejaria que foi calada pela especulação. Chegou a achar salutar esse elo, pois seu bar também valorizaria. Algum prazer e certo fastio. O primeiro era lépido e agudo; o segundo, um baixo contínuo. Era o tal do pequeno poder que ia corroendo silenciosamente assim como os cupins que esculpem o oco da madeira. Era o silêncio consentido.

Os dois cachorros continuaram a mijar no mesmo poste cotidianamente. Eram mais fieis que os frequentadores daquele boteco. Não mais tinham, porém, a refeição. Ficaram a babar apenas, dizem que de saudades das porções do Adema. Logo serão expulsos do bairro ou mortos, pois a associação dos moradores achou por bem, com aval da prefeitura, eles mesmos fazerem a ação para demonstrarem sua energia cidadã pelas ruas do centro paulistano. O prefeito ainda pretende fazer a lei: quem caça cães, mata um imposto. A matança seria histórica no centro histórico!

Os fiscais do psiu andam por aí a calar uns e outros; os moradores ativistas os ajudam, têm a meta de valorizar seus grandes imóveis de poucos mais de 15 metro quadrados. Os bares são bem controlados, geridos e caros, todos com o mesmo gosto de congelado. Nem mais sambas nem mais histórias do mundaréu, nem mais raivas. Tudo está ameno, um silêncio estranho no umbral daquela região; um conforto que ninguém jamais viu. O acalanto das sirenes; o espetáculo da luz vermelha giratória. Dizem ainda que os que gritam estão surdos. Um ou outro mendigo ainda passa pela região. E o povo dos empreendimentos neoclássicos gosta de hostilizá-los; empurra, faz pilhérias, bate e deixa-o ir ou deixa-o caído como merda. É como se fosse um esporte com jogo viciado, o mesmo sempre vai ganhar.

Nosso Ademir, no entanto, não recuou. Não passa fome. Ainda. Tem um casebre lá pro fim do Jaçanã. Vez em quando faz um churrasco com amigos da rua onde mora. Estranhamos porque anda calado demais e sem sono. Se vira, trampando como churrasqueiro pra algumas festas em prédios da antiga região central, cuja área de lazer é uma higienização que só. Nosso duque Adema diz apenas ficar impressionado com tanta brancura e vidro refletindo a mendigagem das ruas. “Os que estão lá nem mais conseguem levantar a cabeça pra olhar pro Caxias”, disse balançando a cabeça como se remediado por algum tarja preta.

Em seu churrasco preza pela carne de segunda, bem temperada. É o que dá, além das asas de frango, murmura. O bom samba voltou, mais tímido, em versos entremeados de histórias que jamais essa gente do silêncio e dos gritos irá escutar. Mesmo a velha Dadá já tinha desistido de passar mais banhos pro Seu Adema…pra tristeza não tem banho que dê conta, fio, dizia a tia da macumba. Mesmo assim, Adema continua acendendo a vela preta. Mas agora ela era pra acender o carvão e morrer no calor, tal qual seu exu cansado.

O pessoal que ainda comungava dos versos fez uma primeira de partido em homenagem ao antigo bar do Seu Adema: Tem impostor pondo silêncio / onde havia alegria / tem rato pegando onça / com arma de euforia / tem cachorro latindo alto / sem nenhuma compostura. Quando cantaram num dos churrascos, o velho boêmio apenas esboçou um sorriso de canto; seus olhos de velório permanente ficaram calados. A vela já tinha se derretido toda. A bem da verdade, o refrão era bom, mas tava faltando algo…
O velho virou as costas e se fixou nas carnes macias, bem temperadas e sangrando no meio das fibras. Ao menos, ali não havia corja nem santo nem trator, até o samba se esgotar.

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