Beth Carvalho – de pé no chão (1978)

O ano de 1978 foi especial para o samba e para uma de suas principais intérpretes, Beth Carvalho que, naquele momento já estava com a bandeira do ritmo em punhos junto aos estandartes de Botafogo e Mangueira. Ela iniciou sua próspera carreira com o conjunto “3D” capitaneado pelo pianista Antônio Adolfo e teve como trabalho inaugural o excelente “Muito Na Onda” de 1967, álbum com ares de bossa nova e um repertório que contava com colaborações de Chico Buarque de Holanda, Marcos Valle, Gilberto Gil entre outros craques. Entretanto, em 78 Beth já tinha seus caminhos com o samba muito bem traçados, consolidada como uma das mais importantes cantoras do seguimento. Nada mais seria igual para ela e para o gênero a partir do lançamento do disco “Pé no chão”, uma verdadeira revolução musical em forma de LP que Beth, generosamente, disponibilizava nas prateleiras das lojas de disco de todo país.

Pouco tempo antes, Beth com seu faro único, próprio de verdadeiros artistas que descobrem e resgatam talentos, havia começado a frequentar o Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco carioca. Embora o Cacique não vivesse seus melhores dias como bloco de carnaval, realizava uma roda de samba informal, onde sambistas e jogadores de futebol se juntavam após a pelada para cantarem e mostrarem sambas inéditos. Isso chamava a atenção de muitos compositores de “sambas de meio de ano” (ou sambas de quadra) que estavam ficando sem espaço para apresentar suas obras, já que apenas sambas de enredo tinham o devido destaque e espaço na cena musical carioca, uma transformação do carnaval já estava em curso.

O fato é que a roda de samba do Cacique às quartas-feiras reunia o melhor time de bambas do momento, alguns já consagrados outros até então amadores, no melhor sentido da palavra. Beth se juntou a essa trupe, levada pelo jogador do Vasco, Alcir Capita. Foi amor à primeira. Ali presenciou instrumentos sendo tocados de forma “tribal” como ela mesmo definiu, sem as baquetas como intermediária entre mão e pele. Instrumentos criados como o repique de mão e outros resgatados e reformulados como o tantã e o banjo. Além disso: novas possibilidades de tocar e compor davam ao samba do Cacique de Ramos uma patente única jamais vista até aquele momento, a não ser pelos privilegiados caciques do subúrbio da Leopoldina.

É importante esse rápido passeio pelo pagode do Cacique para entendermos melhor o disco, pois foi a partir deste encantamento genuíno, ao que estava sendo feito pelo então amador Grupo Fundo de Quintal e seus comparsas, que Beth convidou para um desses pagodes o também já consagrado produtor, maestro e arranjador Rildo Hora que não saía de casa sem seu indefectível gravador de fitas e dele fez uso em uma dessas noites, sob a tamarineira. Mesmo testemunhando de perto o fenômeno anunciado pela amiga, o maestro se fez reticente quando Beth decidiu levá-los para o estúdio, alertando-a que quintal é quintal, estúdio é outra história”. A desconfiança aumentou quando, já em estúdio, os instrumentos foram ser equalizados, cada um tocado em um tempo diferente, com células rítmicas incompatíveis à primeira vista. A surpresa foi quando todos atacaram juntos, e os instrumentos se complementavam como mágica, como se alguma cúpula de engenheiros tivessem desenvolvido um calculo preciso de compasso e descoberto o andamento ideal para algo que já parecia definitivo e consolidado, como o samba. Entrava em estúdio a futura madrinha do samba acompanhada pela primeira vez dos seus Caciques para mudar a história do gênero, para sempre.

Não sei se por cautela ou por fidelidade, Beth e Rildo mantiveram em “Pé no Chão” muito do que vinham fazendo até então em termos gravações. Nesta obra, ainda figuram músicos e compositores da chamada “velha guarda” que trabalhavam com Beth antes do Cacique; aliás, Beth sempre foi fiel e soube ornar todos os sambas de todas as vertentes e tempos com o que surgia em seu universo. Com o passar dos álbuns foi ficando cada vez mais “caciqueana”, uma tendência que se confirmou ao longo dos anos 80 com outros nomes, também já consagrados antes do “pagode” como Roberto Ribeiro, Mestre Marçal e Martinho da Vila, se rendendo e incorporando aos seus trabalhos à mágica inexplicável da nova instrumentação projetada a partir de “Pé no Chão”. No álbum em questão, Jorge Aragão, Bira Presidente, Ubirany, Neoci e Mauro Braga juntam-se a músicos experientes e profissionalizados como Wilson das Neves, Mané do cavaco e Neco além dos lendários Luna e Elizeu Félix que junto a mestre Marçal, o qual não participou deste disco, formavam a santíssima trindade, naipe de percussão que monopolizou – não à toa! –  todas as gravações de samba do país.

O repertório segue a lógica de Beth: os sambas dos novos e promissores compositores dividem espaço com compositores tradicionais como Chatim em “Passarinho” e Chico Santana, “Lenço”. A música que abre o disco é “Vou Festejar” (Jorge Aragão/ Dida/ Neoci), o típico samba “arrasta povo” do Cacique de Ramos pedia passagem e anunciava ali, nas primeiras batidas do violão de Jorge Aragão que, novos tempos estavam por vir, seguidos pela primeira vez em gravações, do repique de Ubirany Félix do Nascimento. Foi fatal, o samba se tornou um dos maiores sucessos não só da carreira da cantora como um dos maiores sucessos do país, cantado à exaustão e a plenos pulmões em estádios de futebol e em todos dos cantos por mais de 40 anos. Coincidência ou não, este samba corroborou com a retomada do Cacique que padecia como bloco com as modernizações do carnaval, que começavam a se resumir a avenida e que ironicamente, por sua vez, foi e é peça fundamental para a retomada do carnaval de rua, contrapondo-se ao carnaval “Hans Donner” que preteriu os sambistas e as comunidades. O samba que dá sequência é “Visual” (Neném/ Pintado) uma clara e bem fundada crítica a este modelo de carnaval que valoriza o visual como quesito, curvando-se ao dinheiro deixando o sambista que não tem grana sem nem mesmo ver o desfile. Uma pena constatar que 41 anos depois esse contrassenso só se acentuou e hoje até mesmo as escolas de samba que não tem grana não “brincam mais o carnaval”.

O álbum segue com “Ô Isaura” (Rubens da Mangueira) é um daqueles tipos de música que para o público mais assíduo ao trabalho do artista soa como “lado A” e para o grande público “lado B”, mas de qualquer forma foi um sucesso no repertório da artista e invariavelmente frequentou o set list dos shows no decorrer de sua carreira. Em “Marcando Bobeira” (João Quadrado/Beto Sem Braço/Dão) é possível ouvir pela primeira vez no álbum o que viria a ser posteriormente a sonoridade do grupo Fundo de Quintal e toda essa geração, com sua divisão rítmica totalmente peculiar. Percebe-se claramente a presença da novidade Tantã, tocado não por Sereno, seu idealizador, mas por seu irmão Mauro Braga, numa levada que permite o original Bira Presidente deitar e rolar com sua bossa. O samba de Beto sem Braço é coroado com as palmas que viriam a se tornar marca registrada dos sambas do Cacique.
Na sequência, Beth retorna as suas raízes com o samba tradicional em “Meu Caminho” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito), um modelo de composição fiel aos registrados em seus discos anteriores, porém com uma dinâmica nova. Com certeza, a primeira vez que um samba de Nelson Cavaquinho teve esse tratamento “apagodado” no melhor dos sentidos com direito ao breque nas viradas do refrão que tanto incomodavam os mais tradicionais na época.

“Goiaba Cascão” (Wilson Moreira/ Nei Lopes) é mais um capítulo à parte na história do samba e desta obra. É de bom hábito preparar-se quando há samba de Wilson Moreira e Nei Lopes. Geralmente ninguém passa impune por eles. Na pior das hipóteses você vai ouvir um sambaço! Neste caso, temos a melhor delas. Goiabada Cascão é um termo criado por Sérgio Cabral, o pai, para definir, coisas raras, pessoas “pedra noventa”. Alicate e seu parceiro intelectual do Irajá não deixaram por menos e fizeram esta obra prima do samba que foi, é e sempre será sucesso em qualquer lugar que for rebuscada! Temos novamente a crítica aos tempos modernosos que se vivia em 78 com a invasão dos costumes norte-americanos na vida cotidiana brasileira. No disco, é a faixa em que o cavaco do Mané dá as caras e cartas de apresentação e mostra uma batida, uma levada, que, na história do instrumento sobressaiu ao seu criador. Esse mestre do cavaco risca forte sua assinatura nesta faixa, assim como a dobradinha Bira Presidente e Wilson das Neves nas conduções. No fim da faixa, Beth evoca todos os “goiabadas cascões” sem imaginar quantos mais estariam por vir pelas suas mãos, uma verdadeira oração, um partido alto que emociona qualquer amante do samba!

Outra faixa que vale ser destacada é “Linda Borboleta” (Monarco/Paulo da Portela), fiquei feliz ao saber que é a música predileta do Ubirany neste álbum, pois é a minha também. A simbiose da novidade com o tradicional é tão grande que qualquer um concordaria que este samba, do mestre Monarco, poderia ter sido criado por Sombrinha, Luiz Carlos da Vila, Sereno ou outro compositor do Fundo de Quintal porque é isso que se ouve nessa faixa, algo muito próximo em andamento e estética do que viria a ser os trabalhos do Fundo de Quintal na década seguinte, mas sendo um samba do Monarco, que tem sua marca registrada tal qual a tradicional ala de compositores da portela. Seguindo a velha guarda, o mestre Cartola tem cadeira cativa em “Que sejam bem-vindos”, com um arranjo que preserva as características do compositor dentro da obra de Beth Carvalho. Um samba curto característico de Cartola, mas que vem com a força de um furacão, preciso e devastador.

O repertório do LP se encerra da mesma forma que se inicia, com um hino. “Agoniza mais não morre” (Nelson Sargento) é sem dúvida, assim como “Vou Festejar” um dos maiores sucessos do disco, da artista, do compositor que o fez e da música brasileira. O Samba em si dispensa apresentações, mas é interessante sua colocação na ordem do roteiro, após abrir os trabalhos como quem traz anjos tocando trombetas anunciando o início de uma nova era, nada de braçada num repertório e num tipo de samba completamente novo, coeso e firme durante o disco, Beth fecha a gira com esse recado direto aos que sempre chutaram o samba pra escanteio, o diminuindo quando não demonizando em favorecimento a produtos e conceitos impostos pela mídia operária da “matriz” e a todas as forças que fizeram da vida do samba mais difícil a ponto de “agonizar”, uma paradoxo se tratando do ritmo mais genuíno e popular do país. O samba agonizou e não morreu; estava chegando oxigênio, o feitiço estava renovado e o melhor de tudo, quem assina o recado é Nelson Sargento, é quase uma passagem de bastão ou melhor, um aperto de mãos para fortalecer a corrente.

Hoje, passados 41 anos do lançamento deste trabalho, conseguimos perceber que Pé no Chão foi a materialização de um movimento que nasceu de forma espontânea, sem golpes midiáticos ou gênios de araque. Ele é a personificação do povo brasileiro  que, bombardeado, principalmente naqueles anos de ditadura militar por elementos da cultura norte americana , sejam estes proveitosos ou desprezíveis (isso é papo pra outro chope),  via escorrer pelas mãos o seu mais importante, genuíno e representativo patrimônio cultural, o samba, que agonizou sim. Martinho da Vila segurou no colo no final dos anos 60 e Beth Carvalho deu o gás para ressureição. Este é um disco que transcende a questão do gosto, quem pode ouvir samba desta época até hoje deve muito a este trabalho que evidenciou ao país um novo som, restrito e limitado ao subúrbio carioca até então, e foi este quem revigorou o gênero, integrando-se (não atropelando como fazem sistematicamente os “movimentos” da moda sempre manipulados por multinacionais do entretenimento) aos que já tanto tinham feito. Segundo Nei Lopes, o pagode do Cacique foi o mais importante movimento musical surgido no Brasil desde a bossa nova. Com todo respeito ao Nei mas, acho que ele foi singelo no comparativo de movimentos . Enquanto alguns intérpretes de samba buscavam magnitude de interpretações para macular suas obras sem perceber o quanto exclusivo isso poderia ser (e foi) exclusivo, Beth Carvalho fincou Pé no Chão, com tamanco e tudo e levou junto as bandeiras do Botafogo, e Mangueira o samba aos fundo de quintais e corações de cada brasileiro!

Um puta abraço!
Cássio Guerreiro

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