por Leo Pereira
Introdução: uma anedota da farsa afetiva.
Em 07 de novembro de 2016, Dona Ivone Lara e mais outros célebres brasileiros foram condecorados publicamente com a Ordem do Mérito Cultural. Ela recebeu a ordem de Grã-Cruz, a máxima. “Nossa matriarca do samba é um capítulo retumbante da memória afetiva do Brasil. Salve Dona Ivone Lara! Salve o samba”, bradou Marcelo Calero, naquele tempo Ministro da Cultura, ao fim do discurso inicial que abriu os trabalhos da homenagem. A figura com cara de bom moço de novela global, diplomata e psdebista Marcelo Calero ilustra a representação de uma direita com verniz republicano: exalta o negro em sua representação pública, quase, limpando a prática da classe dominante e consagra o discurso social numa performance. A escolha do adjetivo (retumbante) talvez carregue algum sentido que ecoa a farsa. Lado a lado tem-se tumba e o sentido de ressoar fortemente ao som de tambores ou de qualquer outro som grave.
A medalha, com o status de elevação à história oficial, deixa opaca as contradições permanentes da história brasileira. Ao lado de Calero estava Michel Temer e sua primeira dama. O suposto presidente ainda bradou: “Aumentamos em mais de 40% o orçamento do Ministério da Cultura em 2017″, arrancando aplausos do público presente. As cifras da indústria banalizam a experiência artística.
Se memória afetiva significa aquilo que foi vivenciado subjetivamente, aquilo que foi trabalhado qualitativamente pelo sujeito, então há algo a discorrermos sobre Dona Ivone Lara e sua história no samba. Entretanto, o afeto desse Brasil enunciado republicanamente talvez seja um pouco diferente daquele elaborado pelo artista.
Longe de querer exaurir significados possíveis, a ideia é pensar a produção artística da sambista da Serrinha a partir do reconhecimento de sua dimensão social, material e artística em diferentes momentos históricos.
- Ivone Lara lararará: os ecos conflitantes, intuição e trabalho.
Desde que Dona Ivone Lara faleceu pesquisei dezenas de reportagens e entrevistas, não somente no dia da morte, mas também de quando ela já estava em cadeira de rodas, aparecendo pouco publicamente. Havia na mídia um sentimento de congraçamento a ela, ainda viva, mesmo que quase sem cantar ou falar. A exaltação à figura da negra com mais de 96 anos é ponto comum. Aliás, desde quando ela aparecera no samba, já foi associada à “Dona”. Para o olhar dominante fica o sentimento de dó aliado ao apreço pela tradição da empregada doméstica negra. Para a tradição das camadas de baixo, ela é a matriarca, aquela que tudo sabe e tudo manda, e como toda mãe de terreiro, intui. E foi este tema que me chamou a atenção na fala daqueles que a exaltavam: sua intuição musical[1]. O pano de fundo do discurso dominante seria mais ou menos assim: negra, pobre, esforçou-se para vencer na vida, superou preconceitos e tem um dom, no caso, a intuição musical (mesmo que ela seja associada aos africanos e afro-americanos como o fez Túlio Feliciano, diretor de seu show no Canecão em 2002).
O governo getulista formou o discurso da ascensão social pelo trabalho, principalmente para o pobre que supera as adversidades nessa sociedade tão desigual, trabalha muito e vence na vida. No caso do artista que vem das camadas de baixo ter um “dom” é a possibilidade de dar a viravolta na vida, social e economicamente. A ideologia sobre esse artista é de que Deus fez o caminho para determinado indivíduo “subir na vida”, segundo o jargão popular.
O imaginário popular sobre a intuição associado ao negro também tem significações possíveis a partir do candomblé. Portanto, a cantora da Serrinha teria no intuitivo um certo poder mágico. Sem querer esmiuçar isso, enfatizo que para um artista o que temos é trabalho. O intuitivo participa, mas para realizá-lo ele necessita de trabalho, de frequentação com sua matéria-prima.
Sendo assim, é sabido que dar simplesmente a alcunha de intuitivo para uma pessoa pode ser algo rebaixado. Certamente o discurso sobre intuição que fazem para Hermeto Pascoal não é o mesmo que fariam para o Cartola nem para outros sambistas. Sem fazer juízo de valor de Hermeto ou qualquer outro, quero dizer que há sentidos diversos para cada enunciação que fazemos em relação aos lugares sociais que essas pessoas ocupam.
A intuição é tratada por muitas vezes de forma pejorativa no meio artístico. É como um estigma sobre aquele que nunca estudou, de forma disciplinada e formal; é como se aquele sujeito não dependesse da análise e do raciocínio, e talvez não mesmo aos moldes da tradição burguesa e/ou erudita, para realizar inventividades musicais ou mesmo fosse puro instinto atuando. A intuição relacionada ao dom é o argumento que sustenta boa parte das falas de músicos brasileiros não estudados formalmente. Enfim, os pares intuição x raciocínio, instinto x racionalidade também permeiam parte do discurso sobre o negro no Brasil. Isso levado a cabo fez-se teoria formulada pelo médico e etnólogo racista Nina Rodrigues ao final do século XIX, quando ele apresenta a brilhante tese de que os negros deveriam ser julgados de forma diferente dos brancos, uma vez que a moral deles seria diferente, logo a justiça para os dois não seria a mesma. De boas intenções…
Muito embora o discurso da intuição musical brasileira como se fosse algo natural, inclusive para justificar a não inclusão do ensino musical nas escolas, tenha seu fator de generalização, sabemos que, na vida social, esse mesmo discurso pende negativamente mais para um lado. Para aqueles não estudados formalmente o gracejo criativo dá lugar ao estigma. Conjuga-se a isso o discurso do dom, do talento e do gênio. Algo marcante para negros pobres que tem alguma projeção pública, seja na música seja no esporte. A fórmula da ascensão socioeconômica é: sonhar, esforçar-se e dom – não nos esqueçamos de que o desígnio divino é seleto.
Mas qual seria o intuitivo tão aclamado de Dona Ivone Lara? Seriam os contracantos em regiões inusitadas para o samba. E isso chamou a atenção dos maestros da gravadora Odeon desde sua primeira gravação, afirma Adelzon Alves, produtor e amigo da cantora[2]. Seriam “adornos musicais” nunca feitos anteriormente. Adornos sob certo ponto de vista; em busca de outro sentido tento, porém, trazer isso para outro campo de discussão.
Esses discursos engessam não só a trajetória pessoal do negro como sujeito em nossa sociedade, mas também a relação com sua comunidade, a validade de sua experiência, a relação com sua história e com uma história que o discurso dominante deixa em suspensão (sabe que existe, mas não fica no plano da realidade, digamos, no chão do discurso) e também sua capacidade de criar.
Ilustrando novamente pela música. Temos boas histórias da desconfiança de maestros que tinham que gravar com esses negros intuitivos e surpreenderam-se com a viravolta no momento da gravação[3]. Com o advento do rádio e com a chegada de gravadoras internacionais, a figura do maestro/arranjador era a que enquadrava, no estúdio, essa intuição para os moldes das regras musicais. Certamente não é a figura do maestro de estúdio que está em jogo. Desvalidar isso seria um erro absurdo para pensar a música brasileira. O que trato aqui é de uma composição de forças discursivas e materiais que sempre enquadraram o negro menos numa lógica de pensamento do que a própria lógica de exploração do capital. São hierarquizações que definem o controle da produção cultural. Ou seja, o intuitivo serve aos interesses de uma história de branqueamento e de exploração máxima dos pobres. Mas, sem rodeios, fiquemos com o questionamento: se a questão central é apenas o estudo e a técnica, por que alguém que estudou não realizou o que os “intuitivos fizeram”?
Dona Ivone Lara tem uma genealogia musical invejável a qualquer músico, estudado ou não: bisneta de angolanos e, muito embora diga não ter influência da avó, jongueira da Serrinha e fã de partido-alto, sua música contradiz essa negação; diz ter sido mais influenciada por seu tio Dionísio, chorão, violonista 7 cordas, cujas rodas de choro eram frequentadas por Pixinguinha, China, Donga, Jacob do Bandolim etc; sua mãe, de voz soprano, falecera quando Lara tinha 12 anos, foi crooner do maior rancho carnavalesco do Rio de Janeiro, o Ameno Resedá. Aprendeu cavaco com anuência de seu tio, seu mestre musical, e aos 15 anos já participava das rodas de choro dele. A única mulher no “meio de um monte de velhos”, dizia. Apenas tocava cavaco ao lado de seu tio[4]; no entanto, também sabia dar suas escapadas e fazer samba com seus primos, um deles era Mestre Fuleiro, fundador da Império Serrano, aquela que seria a escola de coração da primeira dama do samba. Também fora o momento de começar a escrever seus próprios sambas. A sambista morou em Tijuca, passagem da Zona Sul para Zona Norte e berço de muitos sambistas e chorões, além de um dos recantos da boemia carioca. Durante esse período, a jovem Yvone (ainda com Y) presenciou o desenvolvimento do samba e da canção, além do avanço dos meios de comunicação de massa (rádio e cinema). Enfim, Yvone da Silva Lara presenciou momentos decisivos da “invenção da brasilidade” em diferentes etapas históricas.
O avanço da técnica denotou, em plano geral, o que Walter Benjamin afirma como pobreza de experiência. Sendo bem breve: a experiência que antes era oral e partilhável, após a primeira guerra era desmentida (em vários planos, mas, sucintamente, pelos detentores do poder). Certamente seria escabroso fazer a relação sem um versinho tupiniquim. Vamos lá: se Walter Benjamin pensa na 1ª G.M. como marco de uma experiência coletiva terrível, tem-se na história tupiniquim, na “Cidade Maravilhosa”, capital federal, de Pereira Passos, a experiência da brutal modernidade, em termos conceituais a gentrificação da região central carioca. Ou seja, pobres e negros expulsos, formando as primeiras favelas cariocas[5]. Assim, o Morro da Serrinha, entre Madureira e Vaz Lobo, tornou-se um dos refúgios dessa população, alijada de formação escolar e calcada fortemente na tradição oral. Lá era onde a família de Dona Ivone morava. Partido-alto, jongo e samba, cruzavam tradições ancestrais dos Banto, Nagô e Jejé. Ivone, diferentemente da maioria da favela, teve formação escolar completa, fez curso de enfermagem – em que a presença de mulheres negras era constante – , e seis anos depois iniciou o curso de Serviço Social, tornando-se Assistente Social e especializando-se em Terapia Ocupacional. Fase célebre em que acompanhou Dra. Nise da Silveira em sua luta contra o tratamento psiquiátrico tradicional (lobotomia, eletrochoque etc.). A assistente social participou da elaboração de processos musicais que ajudariam os párias dos sanatórios a resgatarem a saúde psíquica. Talvez essa tenha sido uma experiência de luta política que circunscreveu o canto de Dona Ivone – mas isso a gente deixa pra desenrolar numa próxima.
II. Dona Ivone Lara e o canto orfeônico de Villa-Lobos
O maestro Villa-Lobos, conhecedor das tradições populares e folclóricas, participa do projeto de nação brasileira que tentaria criar unidade, no nível cultural-ideológico, a um povo. “Villa-Lobos se aproveitou do fato de o governo estar interessado nisso [a música], e o governo se aproveitou do fato de ele ser o grande nome que poderia ser usado para essa política [cultural]”, diz o crítico musical José Ramos Tinhorão em entrevista à Folha[6]. A formação musical orfeônica fora instituída no ensino secundário; o canto orfeônico era uma das propostas pedagógicas criadas pelo maestro modernista. Ele via no uso do folclore uma maneira de levar às massas a cultura que realmente tinha valor, seria uma maneira de elevar o nível cultural do povo. Segundo Garcia (2008)
A valorização do elemento nacional promoveu um incremento dos estudos de folclore, como uma maneira de apropriação da cultura popular – associada ao ambiente rural – pela cultura hegemônica, no intuito de construir uma identidade ‘capaz de representar o espírito nacional, em detrimento do universo urbano degradado, corrompido, visto como ameaça a esta unidade’[7].
Músicas da tradição popular como marchas, cantigas de ninar e canções de roda foram arranjadas pelo maestro para o canto coral. Seria a roupagem civilizacional dos costumes e do lazer calcados, obviamente, no nacionalismo. E é nessa que a jovem Ivone Lara aparece. “Admirada por suas professoras de música no colégio, Lucília Villa-Lobos, esposa do maestro Villa-Lobos e Zaíra Oliveira, primeira esposa de Donga, foi indicada para o Orfeão dos Apinacás, da Rádio Tupi, cujo regente era Heitor Villa-Lobos”[8]. Estava, junto de Tinhorão e outros milhares, no memorável coral de 40 mil vozes de estudantes de escola pública regidos por Villa-Lobos no estádio de São Januário no Rio de Janeiro, em setembro de 1940. O maestro comandando o coro segurando em suas mãos, em vez de baquetas, bandeirolas desfraldadas do Brasil; isso seria a representação do poder institucional naquela etapa histórica.
Em 1985, em entrevista a TVE, a sambista dizia ter aprendido no colégio interno, desde os 10 anos, a ser simples, perseverante e a se conformar com as coisas. O que podia alcançar, muito bom; o que não podia, conformava-se. Mal sabia que suas próprias palavras deslocavam de revés o sentido material de sua vida para a sua experiência cultural. O negro humilde como figura vencedora na vida via trabalho era a preferida pelo governo getulista, por um lado; protelada, na vida material, por outro.
O ousado plano [educacional] faria uma cirurgia plástica na alma dos pobres, que já traziam a deformação geral de seu caráter como resultado de mazelas herdadas desde os primórdios do país. E neste sentido, a escola seria o lugar ideal para começar a lidar com o “problema”. A música erudita elevaria o espírito de todos os indígenas, “indigenados”, os afrodescendentes, e os mestiços em geral[9].
Mas, de fato, não avancemos mais nesta ideia e na biografia de Ivone Lara, pois a expressão artística, por vezes, contraria a própria visão de mundo do autor.
Uma das etapas do repertório do canto orfeônico seria a improvisação vocal e instrumental com base em pesquisa sonora abrangente. Sendo assim, a intuição desta negra bondosa, docilizada ideologicamente, conformada com o que a vida dá, tinha trabalho formal, além de vasta experiência musical em diversos lugares sociais. Walter Benjamin se contrapõe aos escolásticos modernos: “de que nos serve toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela?”.
Apesar de o caráter ideológico do período getulista poder ter sido introjetado no discurso da resignação da pessoa Ivone Lara, sua estética ultrapassaria as barreiras formais do samba na indústria fonográfica, até hoje. Haveria lastro em sua formação que iria além da disciplina cívica e, em etapa posterior, além do que o samba produzira até então como registro melódico. Conjugam-se aí, portanto, experiência social e fatura artística.
[1] Em parte esse debate já fora feito na tese de Katia Regina dos Santos, Dona Ivone Lara: voz e corpo na síncopa do samba.
[2] Ela estreara em 1970 no disco “pau de sebo” Sargentelli e o Sambão, que lançavam um par de artistas para a gravadora ver o que pegava no povo. O povo agarrou-a como uma voz única.
[3] Refiro-me por exemplo a quando Beth Carvalho chama o Fundo de Quintal para gravar o disco “Pé no chão”, em 1978, e Rildo Hora tem certa desconfiança da capacidade deles dentro do estúdio; Cartola é um caso a parte, pois fora de certa forma tutelado pela nata do choro, dando-lhe de antemão um status elevado.
[4] Seu primeiro samba gravado foi “Sem cavaco não” no disco citado acima.
[5] Vale a referência para o livro Revolta da Vacina, Cosac & Naify, de Nicolau Svecenko.
[6] Extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1511200911.htm
[7] NORONHA, Lina Maria Ribeiro de apud GARCIA, 2008. O canto orfeônico e a construção do conceito de identidade nacional. Simpósio Internacional Villa-Lobos na USP, 2009.
[8] In: Dicionário Cravo Albin. Link: http://dicionariompb.com.br/dona-ivone-lara/biografia
[9] SANTOS, Katia Regina da Costa. op. cit., p.22.
Foto: A cantora e compositora de sambas Dona Ivone Lara se apresenta no Rio de Janeiro em maio de 1979 — por Domicio Pinheiro/Estadão Conteúdo/Arquivo