Dona Ivone Lara: sua formação, seu canto e os conflitos da sociedade brasileira – Parte 2

III. Nascida pra cantar e sonhar: a senhora da canção

Apenas num esboço analítico: a música de Dona Ivone imaginou uma comunidade e deu forma a essa utopia. Quando falamos dela estamos também pensando capítulos importantes da história do Brasil sob outro ponto de vista: dos pobres e negros partícipes da cultura brasileira, embora excluídos da história oficial. A imaginação da compositora tem força a ponto de “fundar uma cidade”. Seu canto cria o efeito encantatório, a poesia divagante, “natural”, em forma de canto vocálico ou silábico. Há letras em que o próprio encanto sublime conflita com o bruto: “afivelaram meu peito”; “existe uma lesão que vive em mim”; “fiquei desesperado quando a praga [insistente] apareceu”; “você destruiu o que era seu”; ou ainda em Doces Recordações “doces recordações e muitas aflições, turvando meu olhar”[1]. Fato é que o efeito conflitante dos vocábulos “brutos” ganha resolução posterior no efeito melódico que desenlaça a narrativa e a harmonia e a eleva para um outro lugar. Vemos que praga [insistente], destruir, afivelar o peito, lesão, aflições que turvam o olhar ganham sobrepeso denotativo por mais que haja abertura para entendermos, por exemplo, a conotação de “afivelar o peito”. A dama do samba inaugura outra via lírica melódica e verbal no samba, com toda a força feminina.

É sabido, pela biografia da cantora e por sua criação e interpretação musical, que tudo o que ela criou musicalmente tinha a relação entre experiência e cultura. Fez da sua expressão artística não uma conformação/conformidade com certo tipo de samba industrial, mas sim com a própria voz de uma resistência cultural ao avanço da modernidade, ao passo que arrancou dela aquilo que lhe podia valorizar; o improviso tem força encantatória, além de ser uma mulher negra, mais velha, com um timbre doce e firme, voz de contralto que, quando subia para os tons agudos mostrava o chão do terreiro, a voz ligeiramente ficava rasgada.

Fez de sua performance, no universo do espetáculo, a figura desprovida de espetacularização uma vez que, no palco, trazia a força da ancestralidade, dos orixás. Dizia que era o palco seu maior prazer. Seu corpo estava inscrito na tradição de uma comunidade que se fez por resistência à violência cotidiana do Estado. Cantar foi sua possibilidade de sonhar outro mundo.

         Arrisco-me a dizer que a dama do samba criou artisticamente aquilo que Villa-Lobos buscara: um “magma sonoro”[2], pois realizou na música popular, a música negada pelo projeto nacionalista de Vargas: experimentos vocálicos dentro do sistema tonal e para além da tradição do samba moderno, caracterizado pelo paradigma do Estácio[3]. Suas vocalizações, mesmo o ataque das notas mais fortes não estão ‘estacatas’ no tempo do samba moderno, alçam o canto para o lirismo de um canto fluido (e aqui vai muito além de qualquer significado comum de amor, digo o lírico como expressão de uma interioridade), o qual parece flutuar sobre o ritmo da modernização de seu tempo. Segundo Mário de Andrade, isso poderia corresponder psicologicamente a valores de sensibilidade coletiva. Ela eleva seu canto a uma necessidade composicional profunda ou intensa, de tendência ou capacidade coletiva. E o que canta tem o poder da “força da imaginação / na forma da melodia / não escurece a razão / ilumina o dia-a-dia”. Porém, vale destacar: o “magma sonoro” de que Villa-Lobos pretendia estava numa dicotomia entre folclore x erudito, num projeto ideológico de Estado. A virada de uma artista como Ivone demonstra a luta dos significados de nossa tradição. Seu magma não vem de dicotomias, mas de contradições.

Segundo Mário de Andrade, “quando muito o que se poderá lembrar é que, havendo incontestavelmente nos negros, não uma indiferença pelas palavras, como diz White, mas uma preferência pela improvisação nascida das coisas comezinhas que os olhos veem, que os ouvidos ouvem, essa mesma preferência frequentando o jongo e o refrão dos cocos, prova nestas danças a origem africana próxima ou remota”[4]. O caso aqui é atravessar as coisas comezinhas, sem desprezá-las, para “dar mais vida à vida”. Dona Ivone ultrapassou a palavra, não por menos que seus lararaiás são muito marcantes no canto e no contracanto. Muito daí não vem do canto orfeônico, com vozes disciplinadas para criar uma massa sonora, vem do jongo, onde corpo, lúdico, religião e tradição Bantu se cruzam. É memória afetiva/subjetiva dando sentido a uma tradição em seu tempo histórico; é a força lírica que se traduz no épico (refiro-me ao distanciamento do eu para o que se canta), o qual trabalha sua matéria-prima para renovar significados. Como diz o pensador Gyorg Lukács: “dessa luta emergem as experiências francamente épicas do tempo: a esperança e a recordação (…) a visão que colhe esta unidade é a intuição e o pressentimento do significado não alcançado e, portanto, inexprimível da vida”. Porém, vale salientar que toda manifestação artística é uma forma de unidade de sentido. Nesse caso, vou além de Lukács, esta manifestação intuitiva sob forma de canto teve forma expressa e significado alcançado por sua memória, do jongo, das rodas de samba, do partido alto, do choro. Sem hierarquização, tudo isso composto como experiência elaborada artisticamente.

Entretanto, é impossível pensar essa manifestação artística sem ser atravessada pelos meios técnicos da modernidade. O avanço da indústria cultural na década de 70 e início de 80 dava os ares da espetacularização do samba (o vídeo do programa Fantástico de 1979 ilustra o que digo). Segundo Ecléa Bosi, “o receptor da comunicação de massa é um ser desmemoriado. Recebe um excesso de informação que saturam sua fome de conhecer, incham sem nutrir, pois não há lenta mastigação e assimilação” (p.87). Se a indústria produziu artistas do samba e os divulgou, seria possível esse magma cultural  das camadas de baixo serem assimiladas como experiência para os consumidores? Diria que quase impossível, uma vez que a tendência à banalização do produto cultural está intrinsicamente relacionada ao consumo da mercadoria. Esses artistas certamente ultrapassaram a “atrofia da experiência” moderna, como diz Walter Benjamin, mas o público, não.

Dona Ivone e outros sambistas cuja trajetória tem lastro experiencial na vida do negro e em sua comunidade, fizeram do palco a forma de atuação pela qual mantinham vivas as expressões que já tinham sido praticamente soterradas pelo processo de modernização brasileiro, material e culturalmente. Alimentou de poesia, para além do consumo, a pobreza de experiência do público massivo cantando e encantando com sua voz – tomo essa ideia no sentido mais amplo possível: do seu particular à voz negra abafada na história brasileira. A memória de Dona Ivone e outros negros tem função social de desenterrar aquilo que está soterrado seja pelo discurso oficial da história seja pelo esvaziamento de sentido da indústria cultural. Mesmo que a indústria fonográfica não queira o improviso e o espontâneo, ela o fazia até o fim de sua vida, com voz miúda. Era a dignidade de sua memória e trajetória, sem medo, enfrentando as imposições da lógica do mercado, cuja mercadoria não pode causar estranhamento aos ouvidos em relação àquilo que consumiu ou está acostumado a consumir.

Katia Santos diz: “Dona Ivone Lara é uma prova viva do quão fracassados foram os projetos de europeização, também, das “camadas baixas” da população brasileira (…) Os arquitetos de todos esses projetos acreditavam sincera e ingenuamente que teorias e cabrestos forjariam um novo país, um novo povo. O grande erro foi os mesmos não terem levado em consideração o material humano de que estavam tratando”[5]. Talvez, a indústria fonográfica tenha levado em consideração. E ainda: que o projeto é fracassado, difícil haver discordância. Mas como pensar a fatura artística de Dona Ivone Lara sem pensar a influência da cultura europeia em nossa música, inclusive no samba? Não seria produtivo, portanto, pensarmos como as camadas de baixo imprimiram de revés na cultura brasileira marcas indeléveis mesmo sem os recursos materiais da camada dominante? A intuição musical de Dona Ivone Lara está totalmente atrelada ao seu artesanato da voz, a um tempo e a uma história muito prometida e que nunca se efetivou neste país. Não por menos que resignação (e me lembro aqui da música cujo título é esse, cantada pelo Fundo de Quintal e com um lararaiá belíssimo e com contracanto) seja um dos temas centrais de Dona Ivone. Chama-se o coro para cantar coletivamente um tema lírico e social. Avista-se, pelo sonho, um outro horizonte coletivo possível; ao mesmo tempo que a camada dominante ceifa brutalmente possibilidades de transformação social. Portanto, resignação mais do que amor, é política. E sobretudo: projeto político. E a dama do samba soube cantar essa contradição. Quando sonhar ainda era possível.

Muito embora açambarcado pelo projeto getulista e pela indústria fonográfica, o samba é o abalo decisivo[6] do projeto que creditava o popular no meio urbano como algo degradado, como uma deformidade. O samba, por esse projeto, seria a imagem da brasilidade ideológica: alegria a qualquer custo. É o flagrante desmentido, pois a contradição entre projeto e o que o samba produziu em nossa tradição é evidente, assim como a história dos negros e pobres brasileiros. A experiência elaborada artisticamente de Dona Ivone e de muitos outros sambistas demonstram a relação entre cultura e experiência, a qual Benjamin se refere. O ouvinte, independentemente de seu lugar social, que tenta se desatrofiar pode atentar-se à essa relação e criar o interesse comum em conservar a memória que está sendo passada, não por mera conserva, mas para produzir a história de seu tempo.

O canto da “rainha de Angola”[7], de raízes Bantu, carrega o imprevisível, por vezes melismático[8], maleável; o seu contracanto é a síntese de um povo que pretende sua superação no tempo devir, como uma esperança no seu poder de transformação e de criação, ao mesmo tempo que é oprimido cotidianamente. Talvez esta última oração seja minha única intuição mais correta neste texto. O restante é dúvida e rabiscos.

à benção, Dona Ivone.


[1] Os exemplos são vários.

[2] Expressão de Leopoldo Waizbort usada no artigo O ideólogo do folclore para Folha de S.Paulo, 2009. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1511200912.htm

[3] Confesso que careço de exemplos substanciais. Deixo aqui apenas uma intuição.

[4] de Andrade, Mário. Aspectos da Música Brasileira: Com notas e comentários de Mário de Andrade (Locais do Kindle 3663-3666). Unknown. Edição do Kindle. 

[5] Op.cit. p.27

[6] Compactuo com o argumento de Squeff & Wisnik in: Música. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

[7] Assim foi chamada na viagem de artistas brasileiros (Chico Buarque, João Nogueira, Clara Nunes, Zezé Mota, Dorival Caymmi, Djavan e muitos outros) a Angola, projeto Kalunga, em 1980.

[8] Tradição em que uma mesma sílaba é entoada por notas musicais diversas.

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