Mingo Silva é sambista brasileiro. A afirmação vem repleta de toda magnitude e densidade que a alcunha compete. Um caso cada vez mais raro no seguimento, de um sambista pronto para os palcos, estúdios e tudo mais que conjugue o artista profissional ao sujeito com os dois pés fincados na rua, nas esquinas, nas quadras, nos terreiros e nos salões; características, a meu ver, indispensáveis para o sambista brasileiro, o bacharelado. Não basta cantar samba, tem que ter chão, tem que ter roda e foi em uma dessas rodas que o Mingo pisou forte e fez morada, mais precisamente no Andaraí, no Samba do Trabalhador, provavelmente a reunião mais representativa e significativa do gênero, há 15 anos. Moacyr Luz, o líder do sindicato, sábio e sensível como sua própria obra sugere, notou de cara que não estava diante “só” de um sambista de chão, ruas e esquinas, mas também de um excelente músico, compositor de rara inspiração, cantor pronto. Não à toa, Mingo foi recrutado para o seleto grupo de trabalhadores do sindicato de Moa; todos com características artísticas diferentes e igualmente brilhantes, como pedras preciosas, escolhidos a dedo pelo mais velho.
Mingo é Percussionista e Batuqueiro, Compositor e “caneta nervosa”, cantor e cantador, é ao mesmo tempo o Teatro Municipal de Niterói e a quadra do Renascença do Andaraí. Outra característica do artista, cada vez mais rara hoje na cena artística e para mim fundamental, é a extensa formação musical, as referências. Tratando de samba, as vertentes são várias e é cada vez mais comum encontrar artistas que empacam em algumas delas e não conseguem, ou não querem, ao menos percorrer outros caminhos. Mingo, por sua vez, bebeu de todas as fontes e soube reunir e expressar essas influências com características e qualidades singulares. Como dizem, esse tem assinatura. O pandeiro de Mingo é Bira Presidente e Jaguara; é Ivan Milanez e Paulinho da Aba; mas sobretudo é o pandeiro de Mingo Silva. Essa analogia se estende para todo o mais e é isso que se ouve no primeiro trabalho solo do sambista “Arte do Povo” , lançado pela Biscoito Fino e produzido por Alessandro Cardozo.
“Arte do Povo” (Baiaco/ Paulo Franco/ Mingo Silva) abre os trabalhos e dá o recado direto pedindo respeito não apenas àquela velha turma que torce o nariz para o gênero como para os que se colocam a falar em nome dele. Destacando o lado lúdico e inexplicável dessa “arte do povo” e reforçando o que disse acima sobre o próprio autor, é preciso conhecer a história; o dom e a espontaneidade, porém, nem a faculdade consegue explicar. O samba traz também a frase emblemática “o tempo envelhece, o samba permanece novo” que diz tudo sobre o poder inexplicável de superação do gênero a despeito dos adversos e das adversidades.
A já consagrada e festejada “É Lenha” (Mingo Silva/ Mosquito/ Nego Álvaro) dá sequência ao disco. A primeira vez que ouvi essa música foi na gravação do álbum do Samba do Trabalhador Ao Vivo no Pirajá, em São Paulo. Lembro-me do impacto que a música causou em mim e em outros ali presentes. O samba era inédito até então e após a gravação cheguei a comentar com o produtor Max Pierre que ali tinha um sucesso (no momento exato não me recordei do samba). Fiquei impressionado com o alvoroço causado pelo partido-alto pra frente e com a suntuosidade daquele trabalho com participações especiais de artistas como Leila Pinheiro, Teresa Cristina, Zeca Pagodinho entre outros; e ainda: os sambas fantásticos de Alexandre Marmita, Gabriel Cavalcante e as parcerias de Moacyr Luz e Aldir Blanc.
Porém, a despretensiosa “É lenha” roubou a cena e virou, mesmo sem mídia, febre nas rodas de samba – onde o verdadeiro sucesso se perpetua. Esse partido-alto diz muito sobre Mingo Silva: a atenção e o trato que o compositor dá à melodia, provando que partido-alto pode, mas não necessariamente precisa, ser uma sequência simples e mastigada para se responder versos em cima de um refrão. A beleza do partido está no que parece simples, mas muitas vezes também no inusitado. O samba eleito pelo povo, pelas rodas, sem articulações midiáticas, o verdadeiro sucesso que Mingo terá de cantar até o resto dos seus dias, é parceria com o sagaz Mosquito e o talentoso e promissor Nego Álvaro, parceiro de batucada no Trabalhador.
Outra parceria interessante do disco é “Gira” (Flávia Uva, João Martins, Mingo Silva), um samba que convoca uma aparente melancolia, mas que exalta a alegria, a resistência em ser feliz perante a adversidade, neste caso figurado por uma desilusão amorosa, e a fé na cura através do tempo que roda e gira. A faixa conta com a participação do craque João Martins, coautor e um dos principais representantes da nova geração do samba.
Em “Amor Verde e Rosa” (Mingo Silva) o partido-alto tradicional chega acompanhado de muita poesia e versos inspirados, características incomuns hoje em dia nas confecções desse tipo de samba cada vez mais “boi com abóbora” e mecânico. Mingo, como já dito, é diferente e por ter (e compreender) referências diversas, tem um fino trato com qualquer modalidade de samba. No plano do conteúdo o enredo shakespeariano é batido: o caso de um casal em que um é Portela o outro Mangueira (No Rio Escola de Samba é coisa séria) e um dos lados cede em benefício do amor ou intensifica o impasse como em “Eu não quero saber mais dela” (Almir Guineto/ Arlindo Cruz/ Sombrinha). O Romeu e Julieta de Mingo tem final feliz, vence e se diferencia dos demais pela poética elaborada do compositor que ”invade o morro com disposição” armado de um buquê de flores, engatilhado pelo coração carregado de amor guardado. De quebra, Mingo cria e aplica na Mangueirense sonhada o infalível “artigo vem cá”. Inteligente e inspirado. Mingo convida para os versos ícones da nova geração na arte do improviso, Chacrinha, Juninho Thybau, Baiaco, o craque Mosquito e Gabrielzinho do Irajá que, deixam transparecer um entrosamento natural de quem já virou muita noite juntos na Lapa, fazendo verso, na calçada, NA RUA!
Na faixa “Julgamento” (André da Mata/ Inácio Rios/ Mingo Silva) a verve MPB do sambista vem à tona. Sem conferir, chutaria tratar-se de uma parceria com Moacyr Luz e Zé Renato, ou algo do tipo, talvez pela proximidade da estrutura musical com elementos inseridos por Moa na roda do Trabalhador – inclusive é uma música que vestiria bem qualquer canário daquele grupo. A partir de um tema atual, Mingo clama pela educação fazendo paralelo com o futebol. Uma frase da letra chama a atenção: “o mestre orienta, a vida atormenta” traz a reflexão sobre o “extra campo” dos jovens e adolescentes que mesmo tendo algum contato com alguém que lhe transmite experiências sobre o mundo, tem em seu cotidiano universos hostis e desfavoráveis, uma critica indireta e (talvez) inconsciente à meritocracia. Um golaço do sambista!
Zeca Pagodinho chega na parada para dividir “Devagar Coração” (André da Mata/ Eduardo Chaves/ Mingo Silva) samba romântico com arranjo de Rildo Hora. A levada das caixas popularizada por Zeca, há cerca de 25 anos em sua ida para Polygram, deixam o convidado à vontade, além da admiração de Zeca por Mingo, perceptível nessa e em outras ocasiões.
Em “Formosa” (Alexandre Chacrinha/ Anderson Baiaco/ Mingo Silva) o francês Nicolas Krassik deita e rola com seu violino passeando pela belíssima e inspirada melodia. A voz ancestral de Mingo é um caso à parte nesta faixa: traz para primeiro plano o intérprete brilhante, a voz que se diferencia na roda, no samba, a faixa exige e Mingo cumpre lindamente. Confesso que ouço Sereno (Fundo de Quintal) nessa melodia, nos melhores momentos da parceria com Mauro Diniz, quem me conhece sabe que isso é um elogio sem tamanho.
Outro destaque do trabalho é “Flor da Lua” (Anderson Baiaco/ Mingo Silva) que traz a história de um moleque danado, como todo bom amante (seja homem ou mulher) do samba foi um dia. Não sei se o testemunho é particular, mas a narrativa vem para quebrar paradigmas e certos preconceitos em relação aos “escolhidos pela lua” (e pela rua também). O garoto é bom de bola, bom na escola, tem família, tem e dá carinho, é bom de trabalhar; enfim, uma figuração de malandro, o bom malandro. A vida do samba também é feita de bons malandros, embora muitos se espantem.
Seu Zé Pilintra como protetor e malandro das ruas, não poderia deixar de figurar no trabalho de Mingo Silva. Ele chega por meio da faixa “Rei da Madrugada” (Luiz Carlos Máximo/ Wanderlei Monteiro) uma das duas faixas não autorais do disco. O Zé retratado no samba não poderia deixar de ser o malandro carioca emblemático dos anos 30, que se veste com chapéu panamá, terno de linho S 120 e mar sapato bicolor, rei das madrugadas, muito associado ao bairro da Lapa onde Mingo e outros de sua geração (inclusive muitos compositores presentes nesse disco) ajudaram a reestruturar como bairro boêmio/musical nos anos 2000. Seja Paulo da Portela ou Wilson Batista, são heróis civilizadores de um país que nunca se civilizou. Os compositores são muito felizes fazendo referência, no início do samba, ao Seu Zé vindo de Alagoas, cultuado no catimbó, antes de chegar ao Rio e assumir a figura que representa a malandragem.
Na penúltima faixa, Mingo presta reverência ao seu padrinho de Chão.
Podemos considerar Moacyr Luz um padrinho artístico, dele e da maioria dos integrantes do Samba do Trabalhador. Porém, como comentei no inicio, o chão é importantíssimo, tanto ou mais que o palco, a esquina, o beco, a noite; as tramas e os dramas não se aprendem com qualquer um e Mingo teve um malandro maneiro em sua vida quando decidiu atravessar a “poça d` água” (Baia de Guanabara) e ir de Niterói se aventurar como músico no Rio. Esse padrinho foi Ivan Milanez (1946-2019). Um dos integrantes da Velha Guarda do Império Serrano, percussionista de primeira linha, ex-integrante da Banda Muleke (Banda que acompanha Zeca Pagodinho), testemunha ocular de toda cultura negra do morro da Serrinha e figura ímpar na malandragem carioca. Milanez recebeu Mingo na boemia carioca, lhe deu conselhos e senhas. “Boiadeiro Navizala” (Ivan Milanez/ Edimar Silva) é um aboio gravado pelo próprio Ivan em seu álbum “Maneiro” de 2012. Fiquei emocionado ao deparar-me com essa faixa no disco, eu estava ouvindo, depois de muito tempo o disco de um Sambista!
“Povo do Aye” (André Jamaica/ Luis Caffé/ Mingo Silva) encerra os trabalhos e é um capítulo à parte no álbum e talvez na carreira de Mingo Silva. Um samba seríssimo, repleto de ancestralidade, que evoca o melhor do compositor brasileiro. Além de excelente percussionista, é cantor. Sua voz de lamento tem Clementina e Candeia vibrando lá dentro da alma. O arranjo do talentoso Rafael dos Anjos é terno feito por alfaiate, de linho S 120, como o de Seu Zé Pilintra para vestir com perfeição esse samba fantástico. Se fossem vivos, Clara Nunes, João Nogueira e Roberto Ribeiro entrariam em conflito para gravá-la.
O time de músicos é de primeira linha: Paulão e Carlinhos Sete cordas, Ubirany, Rafael do Anjos, Cláudio Jorge, Rixxa, Oswaldo Cavalo, companheiros de Samba do Trabalhador, como Luiz Augusto e Nego Álvaro entre outros.
O primeiro álbum solo de Mingo Silva pode ter demorado a sair, mas isso não importa mais nada neste momento, principalmente após me deparar com um álbum completo de um Sambista completo. Se foi esse o tempo necessário, que seja! O importante é que temos diante de nós a certeza de que o samba tem seu porto seguro, que já está em boas mãos, que temos um professor para dar a continuidade nessa história secular, pronto pra ensinar os melindres, os “menos é mais” das esquinas, terreiros e ruas; e também uma referencia artística de palco, profissionalismo, educação musical e social, a nobreza de um artista do samba, de um sambista que está na veia de seu país. Entre tantas linhas diversificadas que o samba tem, Mingo Silva é o aparelho que todas elas resolveram baixar, para lembrar ao povo a sua verdadeira arte!
Um Puta Abraço!
Cassio Guerreiro