O dia em que virei Noite Ilustrada

por Valdir Mengardo

A bem da verdade, não me lembro com segurança da primeira vez em que encontrei o Mário. Tenho quase certeza de que foi numa cidade do interior de São Paulo – Atibaia -, onde outro bamba, Sílvio Caldas, passou seus últimos dias. Mas o Marcão, o grande fotógrafo da noite, jura que foi no Guanabara, lá no Anhangabaú. Só pra me espezinhar, Marcão ainda descreve a cena do bonde Payssandu chegando e Mário, de terno risca-de-giz, descendo todo esbaforido.

Em todo caso, o resto da narrativa parece ser consensual. Estava empenhado em ajudar o Marcão a produzir uma série de shows, nos quais ele procurava mostrar a carreira de grandes nomes da música brasileira através das fotos que marcaram suas vidas. Era uma coisa quem me entusiasmava muito, poder falar com Germano Mathias, Carlinhos Vergueiro, Oswaldinho da Cuíca, Doris Monteiro…

Quando encontrei pela primeira vez com Mário, percebi seu jeito franco: um negro decidido a enganar a morte: “Desculpem o atraso. Eu fui até o médico, coisa de rotina. Ele me disse que tá tudo bem comigo. Cem por cento.”

No bolso do paletó, uma revista amassada chamava a atenção. Parecia um exemplar de O Cruzeiro ou da Manchete. Estava aberta nas palavras cruzadas, seção que Mário adorava. E aí, matando a curiosidade contou: “Sabe, fui cantar no programa de calouros do Zé Trindade[1] – vocês sabem quem é, não sabem? Pois é…quando chegou minha vez, ele perdeu a ficha. Só viu lá no fundo do camarim um negão, franzino, meio nervoso, com uma revista Noite Ilustrada no bolso. Aí o Zé começou a gaguejar: ‘Agora vamos chamar o…ah…é…Entra aí o Noite Ilustrada!’. Aí me empurraram e entrei. Sabe que depois disso ninguém me chama mais de Mário?! É só ‘Noite Ilustrada’ pra cá, ‘Noite ilustrada’ pra lá…Eu já nem sei o que faço”.

E perguntei dando o pontapé da nossa entrevista: “Mas daí pra frente foi só sucesso, não foi, Noite?”

“Graças a Deus! Depois foi um contrato com a Rádio Nacional, com a Mocambo e aí ninguém segurou mais!”.

Noite Ilustrada lembrava da tarde em que entrara no estúdio e Ataulfo Alves, vendo-o gravar a sua Lagoa Serena, irrompeu no set de gravação e começou a declamar a letra. Isso ficou registrado no disco, junto com a maestria do compositor de Mirai. O que pouca gente sabia, e Noite ficava até constrangido em contar, eram os percalços das pastoras do Ataulfo, mulatas que ele fazia questão de apresentar no palco sempre muito perfumadas. Para isso ele pegava uma daquelas bombas de inseticida (Flitz ou Detefon, como a gente costumava chamar), e borrifava nas escurinhas antes de começar os shows.

Conversa vai, conversa vem, Marcão lembrou a minha profissão de jornalista. Pressenti um brilho nos olhos do Noite. Parecia que havia encontrado a solução para um grande problema: “Rapaz, você vai me quebrar um grande galho. É que estou lançando um novo disco – tá uma beleza! -, produzido por Fernando Faro. Tem uma música inédita do Adauto Santos, que ele fez pra mim…Só que a gravadora está me pedindo um texto pra colocar no tal do display de divulgação. Eles querem uma coisa meio autobiográfica, sabe como é que é…Como se eu estivesse escrevendo a minha história. Tô com a maior dificuldade de produzir essa coisa. Será que você não poderia escrever o texto pra mim? É curtinho, uns dois, três parágrafos”.

Fiquei meio atrapalhado. Embora já tivesse feito vários tipos de texto no jornalismo, era a primeira vez que me pediam para ser ghost writer. “Mas eu sei muito pouco da sua vida, Noite! Eu posso escrever um punhado de besteiras e isso vai comprometê-lo”.

Noite insistiu: “Bobagem! Eu te conto algumas histórias e você passa para o papel do seu jeito que eu nem sei que é bom”.

Meio a contragosto, aceitei. Para falar a verdade, estava muito contente pela confiança que uma figuraça como o Noite depositava em mim. Pensei que teria um tempo para elaborar o texto e pesquisar, mas ele foi tirando papel e caneta do bolso e me intimando a escrever ali, no ato.

Enquanto o Marcão elaborava junto com o Noite o roteiro do show, fui rabiscando ideias. É claro que não eram somente as impressões do cantor; eram muito mais as lembranças de um ouvinte da Rádio Nacional de São Paulo…nos céus do Brasil, Parada de Sucessos”, com Hélio Alencar, apresentando hoje mais um sucesso, gravação Phillips, com o grande Noite Ilustrada, Volta por cima, de Paulo Vanzolini…Chorei, não procurei esconder, todos viram, fingiram, pena de mim não precisava”…Este é o programa Manoel da Nóbrega, transmitido todos os dias pela Rádio Nacional, sempre ao meio-dia, e não se esqueçam: neste sábado, trinta de outubro, na cidade de São José do Rio Preto, a caravana do Peru que Fala, apresentando Ronald Golias, Carlos Alberto da Nóbrega, Noite Ilustrada, o Regional do Rago, Venâncio e Corumbá, Anastácia e grande elenco”.

Pondo a modéstia de parte, como diria o Paulo Vanzolini falando sobre Napoleão, acho que o texto ficou bom. Minha impressão era corroborada pela cara de contentamento do cantor que havia se identificado com o texto. “Parece que você adivinhou o que eu queria dizer!”, disse o meu retratado.

Mas tudo era muito esquisito. Aquelas memórias tiveram sempre um valor predominantemente de uso. Elas serviam como lembrança de momentos em que, ao meio-dia, eu largava o garfo de lado, arregalava o ouvido, tirava a chiadeira do rádio e batucava no copo uma cantiga de Elza Laranjeira ou um samba rasgado de Germano Mathias.

Agora elas estavam ali, expostas ao distinto público…iam fazer com que um disco saísse das prateleiras e engordasse os bolsos do dono da voz. É claro que era uma causa justa, e o sorriso do Noite Ilustrada não me deixava duvidar. Se o texto ajudasse na venda do disco, além de ser bom para o dono da gravadora, também ia sobrar algum para as próximas rodadas de suco do Noite. Mas como acreditar nisso se, nos tempos bicudos do pós-modernismo, até sorriso vira valor de troca? Mas, enfim, do que é que é feita a matéria do jornalismo senão da fabricação cotidiana da mercadoria?

Fiz.

O show foi muito bonito. Ainda hoje escuto a gravação que fizemos daquela hora e meia maravilhosa com o Noite Ilustrada.

Perguntei ao cantor pelo tal material de divulgação, que eu havia feito. Disse que ainda não havia sido impresso.

Acho que foi a última vez que falei com ele.

Depois, só a sua voz nos vinis, nos CDs e nas conversas inevitáveis de botequim. Numa delas um estudante de comunicação contou-me como conhecera o negão: “Estou começando agora a me enfronhar nessa coisa de samba, mas só quero saber do samba de raiz! Tava passando lá pelo Centro, quando vi um cartazinho numa loja, que anunciava esse Noite Ilustrada. Gostei do que o cara tinha escrito e comprei no ato. E não é que o samba do sujeito era de primeira?!”

Não falei nada para o garoto. Passou por mim uma sensação estranha, um misto de satisfação (pois alguém conhecia uma das maiores lendas do samba paulistano por meio de um texto escrito por mim) e de frustração (por saber que involuntariamente havia “ludibriado” alguém – com todas as aspas que se queira colocar na palavra).

Veio-me claramente a imagem do Total Recall, aquele filme baseado na história do Phillip Dick, em que o Schwarnegger tem implantada uma memória artificial em seu cérebro. Embora o estudante tivesse a memória de um sambista em sua cabeça, ela também era, em parte, um pouco da minha memória, que agora transformava um conceito pré-estabelecido.

Ah! O que esta indústria cultural nos obriga a fazer!

Saí do bar remoendo aqueles pensamentos, entre a lembrança de Toalha de Mesa e Pedra Noventa, entre o vozeirão do Noite e os agudos de Ataulfo Alves, esperando talvez que o taxista que me levava pra casa, outro negro, que tocava cavaquinho nos momentos de menos movimento no ponto, encontrasse naquele seu rádio alguma emissora onde estivesse cantando Jackson do Pandeiro ou Jorge Costa, “um samba só por Deus Nosso Senhor!”, como dizia Sidney Miller.

Inútil! Depois de procurar um bom tempo entre vozes de pastores de araque e DJs estressados, deixou-se ficar, meio que por inércia, numa estação barulhenta, na qual um cara contava as maravilhas de um conjunto de pagodequalquercoisa, que sabia tanto de samba como eu de física quântica. Felizmente minha casa estava ali, ainda viva na minha memória conturbada: “Embica no último portão de ferro à esquerda”, disse eu, para que o motorista não errasse. Nem precisava: ele já sabia de cor o caminho para minha casa.

Este texto foi publicado originalmente na revista Cultura Crí-ti-ca, nº 2 – 2º semestre de 2005.

[1] Noite Ilustrada, nome artístico de Mário Souza Marques Filho, nasceu em Pirapetinga, Minas Gerais, em 10 de abril de 1928. O pseudônimo  foi dado em 1954. O mineiro foi para o Rio, nos anos 50, quando fazia shows em circos e parques de diversões ao lado de Geraldo Pereira, Blecaute, Risadinha, Moreira da Silva e outros. Em 1956, foi em excursão a São Paulo com Jaime da Portela, e acabou sendo o único a não voltar: depois de dar uma canja em uma boate, foi contratado pela Rádio Nacional e, dois anos depois, lançou seu primeiro disco “Cara de Boboca”, pela gravadora Mocambo.

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