Ao contrário do que muita gente acha: o choro é expressão afro-brasileira sim. Mas não procurem o afro apenas nas arquiteturas musicais, embora ele ali também esteja. Apesar de formatado para se tornar uma música séria, camerística, quase uma música erudita ou semi-erudita brasileira, o choro jamais perderá a sua raiz, o seu chão, a sua linha ancestral. O choro é música feita em roda, para celebrar, para unir, para encontrar.
Por Felipe Siles
23 de Abril de 2020
Segundo as anotações de Alfredo Viana, nasceu no dia 23 de abril o filho que herdou o seu nome. Mas não foi esse o nome que o imortalizou. Devido a uma epidemia – como a que estamos vivendo agora, só que de varíola (também conhecida popularmente como bexiga) – que assolou o nosso herói de rosto africano, ainda garoto, surgiu o apelido que foi se transformando e sofrendo variações: Bexiguinha, Pexinguinha, Pixiguinha, Pizindim, até chegar em Pixinguinha, o hoje patrono do Choro.
Dia 23 de abril, dia de São Jorge, é uma das grandes celebrações populares brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro. O Dia de Jorge para o sincretismo religioso carioca traz significados valiosos, é comparado até ao Natal, como bem dizia Orlando Calheiros no podcast Benzina, totalmente dedicado a Ogum. É dia de celebrar, encontrar os amigos, é dia de tomar cerveja e comer feijoada. É dia de Ogum, já que a figura de São Jorge foi ressignificada nesse contexto sincrético criando ligação e correspondência com o orixá guerreiro. Mas não “apenas” guerreiro, Ogum é rei, o senhor do ferro, criador das ferramentas, da tecnologia. A partir de Ogum é possível existir civilização. E é importante ressaltar, ao contrário do que diz o senso comum colonial, as africanidades que aqui desembarcaram no território brasileiro trouxeram consigo verdadeiros projetos civilizatórios, como sempre ressalta o pensador Luiz Antonio Simas.
Podemos fazer a ligação do choro com o clima de festa e encontro presente na festa de Jorge, ao nos depararmos com o depoimento do próprio Pixinguinha, encontrado no livro “Cor, profissão e mobilidade” de João Baptista Borges Pereira:
“Naquele tempo não haviam (sic) clubes dançantes. Os bailes eram feitos em casa de família. Em casa de preto a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de preto havia o baile mais civilizado na sala de visitas, o samba nas salas do fundo e a batucada no terreiro. Era lá que se formavam e se ensaiavam os ranchos. A maioria dos sambistas e dos chorões era de cor. Branco quase não havia.”
O choro das rodas, do encontro, da festa, da alegria, da dança, da bebida é um projeto civilizador. Pixinguinha, frequentador da Casa de Tia Ciata – um território afro-civilizador – sabia muito bem disso. O choro, que foi consolidado como gênero com a ajuda de Pixinguinha, mas que antes dele teve a contribuição de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Irineu Almeida, Anacleto de Medeiros, Joaquim Callado e tantos outros. Mas tal qual Ogum, que funda uma civilização pela criação das ferramentas, Pixinguinha funda um gênero pela sua criatividade e genialidade musical. A matéria-prima já estava dada, mas nosso herói de rosto africano faz uma verdadeira alquimia, criando uma substância que chega até Paris, com a turnê dos Oito Batutas, e vai ganhar praticamente todo o território brasileiro, onde em cada canto do país vão surgindo novos chorões.
Ao contrário do que muita gente acha: o choro é expressão afro-brasileira sim. Mas não procurem o afro apenas nas arquiteturas musicais, embora ele ali também esteja. Apesar de formatado para se tornar uma música séria, camerística, quase uma música erudita ou semi-erudita brasileira, o choro jamais perderá a sua raiz, o seu chão, a sua linha ancestral. O choro é música feita em roda, para celebrar, para unir, para encontrar. Foi o choro que me acolheu, quando cheguei na hostil metrópole de São Paulo, vindo de Campinas em 2010. As inúmeras rodas de choro que frequentei nesse período foram essenciais para a minha integração e socialização na nova cidade.
É um gênero que se construiu com a contribuição de muita gente: Jacob do Bandolim, K-Ximbinho, Severino Araújo, Paulo Moura, Esmeraldino Salles, Garoto, Luperce Miranda, Radamés Gnattalli, Altamiro Carrilho, Tia Amélia, enfim… a lista é interminável. É o gênero que continua recebendo contribuições de Hamilton de Hollanda, Hércules Gomes, Wanessa Dourado, Elisa Meyer Ferreira, Danilo Brito e tanta gente boa por aí. É o gênero que é fortalecido por territórios (físicos e virtuais) e instituições, como a Escola Portátil de Música, a Revista do Choro e pelos Clubes do Choro espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Em tempos de pandemia e distopia, faço um apelo para olharmos também para o choro, enquanto projeto civilizatório que deu certo. Quem sabe isso nos inspire na construção de uma nova civilização. Encerro, passando a palavra mais uma vez ao Mestre Pixinguinha, e seu Auto-Retrato, que retirei do ótimo livro “Filho de Ogum Bexiguento” de Marilia T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho, que inclusive inspirou o presente texto. Não é coincidência o 23 de abril celebrar o Dia Nacional do Choro, o aniversário de Pixinguinha e o Dia de São Jorge. Viva o Choro! Viva Jorge, Ogum e Pixinguinha! Ògún ieé!
Eu também nasci chorando
Como todo mundo nasce
E embora a chorar vivesse
Não chorei o que bastasse
No choro a vida passei
Com prazer e na labuta
Sustentei mulher e filho
Chorando fiz-me um batuta
Chorei muito choro alheio
Toquei maxixe e marchinha
Alfredo sou por batismo
Mas no choro Pixinguinha
Fiz música fui maestro
Fui Ingênuo Carinhoso
Soprei meu triste Lamento
E o meu riso mais gostoso
E assim o ciclo se fecha
Pois cumpri o meu papel
Plantei o choro na terra
Pra colher risos no céu