Especial Aldir: O mercado e os bêbados e equilibristas (por Léo Pereira)

Quando Regina Duarte, a queridinha revanchista da direita, disse em seu discurso de posse que os artistas teriam de voltar a “passar chapéu”, como se fosse um gesto de humildade e costumeiro dos artistas antigos, ela não mentiu, dada a situação de precarização da classe artística brasileira fora do mainstream. Muito além do “pum do palhaço”, com que muitos se indignaram pela concepção reduzida de cultura apresentada, ela colocava a nu a situação dos trabalhadores da arte. E poucos se indignaram. Continuaram a criticar o caricato e óbvio, a querer fumar a cortina de fumaça, como se isso fosse contestação efetiva. E por quê? Em parte essa precarização é resultado histórico da falta de organização dos artistas em associações ou sindicatos e mesmo da falta de crédito atualmente dessas organizações como representantes da classe trabalhadora. Aliás, muito artista nem trabalhador se acha, como se o tal do “dom” assegurasse sua vida material e não o seu trabalho. Noutra parte, há a crença neoliberal de muitos artistas-empreendedores: “batalho pelas minhas conquistas (agora em lives, youtube e afins) e aí que me sustento”.

Vimos durante 15 dias a família de Aldir Blanc pedindo auxílio financeiro para que ele pudesse ser internado na UTI a fim de um tratamento digno. Agonizava no leito de morte não só Aldir, mas toda sua luta política também. Não era para um dos maiores letristas de nosso país (com dezenas de sucessos globais, inclusive) estar nessa condição espúria. Foi enviado à UTI pelos bons contatos que tinha – e ainda bem que houve solidariedade. Mas ele não precisaria disso por toda obra que criou, SE ele tivesse devidamente seus direitos autorais repassados.

Atenção: salvo Nei Lopes, não li nem ouvi ninguém falar, repito: ninguém!, falar da luta política de Aldir Blanc pelos direitos autorais e apresentá-la, no mínimo.

Artista empenhado nas questões políticas de nosso país, seu posicionamento político não pode ser visto apenas em suas letras e crônicas, está além. Na década de 70, participou da criação de entidades importantes,  tais como  a  Cooperativa de Músicos e Autores,  nascida no ambiente do Sindicato dos Músicos do RJ, e inspiradora do movimento Sombrás, do qual surgiu, na década seguinte,  a AMAR-SOMBRÁS. Vinculada ao Ecad, talvez ela tenha perdido sua força justamente aí. Mas isso é uma experiência política que não pode ser esquecida.

Qual artista hoje faz um questionamento como este (?):

“(…) um artista que se recusou a ver sua criatividade inalienável virar objeto de trocas espúrias e de tráficos mesquinhos; que se recusou a confundir-se com esse mesmo objeto; que preferiu correr o risco enriquecedor do erro, ouvir o apelo altissonante da alma e expor-se à chama inquietante da paixão de criar, sem perder o respeito por si mesmo, primeira condição para respeitar o público.” (Aldir Blanc, Direitos Já, 6 mar./abr./1988)

O mercado, que se tornou mais natural que a lei da gravidade, nunca é rejeitado, porque os próprios artistas sabem da condição de enredamento total em compadrios e “gentilezas” que podem ser cobrados em um futuro, caso determinada atitude do artista não esteja de acordo com as regras morais do mercado. Por isso, atitudes políticas contra o establishment não são bem vistas. As que são a favor, são vangloriadas, assim como vimos os sertanejos se reunirem com Bolsonaro para cortar a meia-entrada de estudantes. São reacionários que estão dando as cartas. E a esquerda artística ainda insiste em lutar por bordões “lula livre”, “fora, temer”, “fora, Bolsonaro” que mal repercutem para além do circuito fechado da própria esquerda. Desgastam-se como gritaria em festa infantil.

De fato, Aldir não cantava com esse coro de inconformados-contentes. Poucos debatem publicamente o sistema capitalista de produção e o consumo da música. Quando debatem este último nunca falam na própria produção; portanto, viram debatedores do mercado para o mercado. Quem se volta contra os interesses práticos dos produtores fonográficos, das emissores de rádio e TV e das empresas que dominam as redes sociais na internet? Ou ainda: do monopólio da mídia no Brasil? Aliás, todos sabem a cantilena: tantas famílias dominam os meios de comunicação…blá, blá, blá…a informação escancarada pouco motiva politicamente os artistas a se engajarem de forma coletiva.

A luta da Amar, na década de 80, era de que o problema autoral deveria confrontar esses “intermediários” entre artista e povo (sim, povo é luta política!; não é conceito imutável, senão é abstrato tanto quanto a luta para esse povo, tornando-se demagogia à direita ou à esquerda).

Portanto, vendo que a luta de artistas é simplesmente achar que a Regina Duarte, a revanchista, deveria dar dinheiro à classe artística, não é de se estranhar que o horizonte político da esquerda esteja quase nulo. Desde quando, na situação que estamos, podemos esperar algo do adversário político fascista? Aldir, de fato, faz falta. Vendo essa situação política da esquerda, ele poderia trazer o Simpatia-é-quase-amor para ironizar a situação de artista com vontade de mainstream; poderia ironizar em suas letras o baile fajuto que a esquerda armou para dançar com seu povo abstrato no salão subterrâneo da direita porca e tacanha.

Não é de se estranhar, portanto, que pouco se fala nesse Aldir militante, bem posicionado politicamente, a favor de sua categoria de trabalhador. Querem despolitizar todo o estofo de vida do autor empenhado em cutucar o poder. Falam de seu bêbado e equilibrista da ditadura sem pensar que bêbados e mal-equilibrados estamos nós nesta situação. De que adianta dizer que brasileiro não tem memória se quando lembram querem colocar o artista no museu, despolitizando e despotencializando sua crítica à sociedade?

O museu midiático é a oficialização das ideias, que não permite ir contra a própria arquitetura que o incorpora.

O bêbado e o equilibrista é imagem do artista que na sua “paixão inquietante de criar” contesta tudo aquilo que coloca o lucro como intermediário da criação. Seu equilíbrio não vem da conciliação, vem da contestação irrequieta de todas as amarras do sistema capitalista de produção e consumo.

Que a lucidez e a força política de Aldir Blanc e seus companheiros de luta se perpetue!

Por Léo Pereira

Para quem quiser saber mais sobre a luta dos direitos autorais no Brasil, indico:

  • “Dois pra lá, dois pra cá” (documentário que também trata a luta de Aldir Blanc sobre os direitos autorais, dirigido em 2004 por Alexandre Ribeiro de Carvalho, André Sampaio e José Roberto de Morais)
  • “Arrogantes, anônimos e subversivos – interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira” (Rita de Cássia Lahoz Morelli, Ed. Mercado das Letras);

(foto: Leo Martins / Agência O Globo)

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