(Opinião: Seção Zumbidos, por Guilherme Lie)
Sim, meu caro leitor, nossa menta inventiva consegue traçar paralelos entre o grego Sófocles, o último imperador alemão e nosso destabocado presidente.
Primeiro, vamos relembrar quem foram Sófocles e Guilherme II.
Sófocles é o autor das peças de teatro da Grécia clássica que têm o maior impacto sobre nossa cultura hoje. Mais de 2.500 anos nos separam de seu nascimento (496 a.e.c) e seus textos têm hoje influência tão grande, ou até maior, que tiveram em sua prolífica, longeva e pública vida. Para provar a influência deste poeta eu pergunto a você se já ouviu a seguinte frase: “- Freud explica”? Se não a frase em si, ao menos já ouviu falar sobre Freud e a psicanálise, e neste contexto deve lembrar que a teoria mais conhecida deste médico-psiquiatra austríaco é o famoso “Complexo de Édipo”. Teoria que penetrou em todos os diálogos de toda nossa sociedade (você gostando ou não) após a primeira década do séc. XX. Para conseguir explicar nossa formação psicológica Freud recorreu à tragédia Édipo Rei. Posteriormente, Carl Gustav Jung explica o “Complexo de Édipo feminino” através da tragédia Electra, criando o termo “Complexo de Electra”.
Édipo Rei, Electra e Antígona são três das sete obras de Sófocles que sobreviveram ao tempo e chegaram até nós, outras 120 teriam sido produzidas, porém perdidas nos últimos 2.500 anos. Sófocles foi extremamente ativo na vida pública, tendo exercido diversos cargos administrativos, militares e religiosos em Tebas. Otto Maria Carpeaux o classifica como “grandíssimo artista. Artista da palavra, dono de extraordinário lirismo musical, sobretudo nos coros. Mas foi também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da arquitetura dramática, da exposição analítica do enredo”.
Enquanto Robert Baag celebra Sófocles como um grande inovador teatral pois “ele criou algumas importantes mudanças técnicas no teatro, incluindo a introdução da pintura cênica e o aumento dos membros do coro para 12 a 15 pessoas. Sua inovação mais importante foi a inclusão de um terceiro ator. Isto permitiu diálogos com três caminhos e um drama que se concentrasse na complexidade das interações e relacionamentos entre os indivíduos” (tradução livre).
Guilherme II (Wilhelm II) foi o último imperador da Alemanha e que nos levou à fatídica 1ª Guerra Mundial e o inacreditável saldo de 10 milhões de mortes. Com sua personalidade autoritária, racista, sexista, megalomaníaca, messiânica, aliada à sua ideologia ultranacionalista, conduziu mudanças na política internacional alemã que arrastaram a sua nação, os países vizinhos e depois outras nações à guerra que durou de 1914 a 1918. Após o fim da guerra Guilherme II perde completamente o apoio político, inclusive dos militares alemães, e abdica ao trono, sendo exilado nos Países Baixos até sua morte em 1941.
Feitas as devidas apresentações, vamos ao que interessa.
Antígona é uma peça de Sófocles em que o governo da cidade de Tebas é assumido por Creonte após os dois herdeiros naturais, os irmãos Polinice e Etéocles, matarem um ao outro na luta pelo trono. Creonte assume o poder e sua primeira decisão é determinar que um dos irmãos (Etéocles) receberia homenagens e um funeral de herói, enquanto o outro seria deixado na terra, sem direito a funeral ou sequer enterro, para servir de alimento para as aves carniceiras e os cães esfomeados. Se alguém transgredisse a lei e enterrasse o corpo de Polinice seria punido com a morte. A lei subitamente promulgada por Creonte afronta a lei maior que governa a cidade desde sua fundação que é a lei de Zeus (a lei dos deuses, algo como a “constituição” da época), e com essa premissa Antígona (irmã de Etéocles e Polinice) se insurge e convida sua irmã Ismene para ajudá-la no devido funeral do irmão de ambas. O enredo vai nesta toada e, para resumir, devido ao comportamento tirânico, autoritário e irresponsável de Creonte, ao final suicidam-se seu filho, sua esposa e sua sobrinha Antígona.
Durante toda a obra de Sófocles cria o personagem do líder autoritário, fascinado com o próprio poder, que exige de todos a seu redor uma submissão completa às suas opiniões e vontades. Como fica claro na conversa que tem com seu filho, quando este tenta persuadi-lo da decisão de condenar à morte, Antígona diz: “este não é o parecer da cidade de Tebas”; Creonte responde: “A cidade por acaso me dirá como agir? Por vontade de outros devo governar esta cidade ou por minha vontade? A cidade pertence a quem a governa!”
Esta postura que mistura o papel do líder, que deve respeitar as leis, com o papel de ditadores autocratas que acham serem os “donos” dos países e das pessoas que lá vivem já era criticada por pensadores públicos desde a antiga Grécia há 2.500 anos e nos faz lembrar de outros autocratas como o Rei Luis XIV da França (“ O Estado sou Eu”), o nosso destabocado com a frase “Eu sou a constituição” (dita em 20/04/2020) e o Kaiser Guilherme II, que nas palavras dos historiadores da Hourly History (tradução livre):
“era arrogante e egocêntrico. Tinha um temperamento explosivo e muito impulsivo. Ofendia seus pares (líderes de outras nações) e a sociedade. Ele prejudicou sua reputação repetidas vezes por ser ele mesmo e mostrar sua personalidade temperamental. Enquanto outros líderes antes dele trabalharam duro para tentar estabilizar a Europa e manter as pazes com seus vizinhos, Guilherme procura trabalhar incansavelmente para acirrar conflitos com os países vizinhos da Alemanha, assim como em outras partes do mundo. Ele geralmente ignorava a opinião pública, dizendo que a sua opinião era a que importava”
Na análise acima, se trocarmos o nome de Guilherme por Bolsonaro e Alemanha por Brasil, é incrível como o encaixe é perfeito.
Na dramaturgia grega, Creonte, com seu autoritarismo, leva toda sua família à ruína, na história recente Guilherme II com o mesmo comportamento levou a Alemanha e muitos outros países à guerra e ruína.
Não podemos apoiar comportamentos autoritários do nosso destabocado, pois o resultado pode ser catastrófico e a história será vivida, registrada e contada por nós mesmos.
27/05/2020
Leituras recomendadas:
Antígona, Sófocles. Leitura rápida (aprox 90 min) de uma obra que trata de tema extremamente atual apesar de ter sido escrito há mais de 2.500 anos. Como o autoritarismo traz a ruína do governante e seus governados, sempre.
The Norton Anthology of World Literature (volume A), Martin Puchner (Norton University), 1969. A parte dedicada ao poetas clássicos gregos traz uma breve biografia, análises críticas e as condições políticas e econômicas na época de Sófocles e outros.
História da literatura ocidental, Otto Maria Carpeaux, 1959. Na nova edição impressa pela Editora Leya em 2012 o 1º volume é dedicado à Literatura Greco-Latina.
Wilhelm II: Volume 2 Emperor and Exile, 1900-1941, Lamar Cecil. O imponente trabalho de Lamar, feito em mais de 30 anos de pesquisa, sobre esta figura que se não é lembrado como um dos grandes líderes mundiais é um dos líderes mais importantes para a definição da história do século XX.
Kaiser Wilhelm II: A life from beginning to end, Horly History, 2018. Um breve texto sobre a vida de Guilherme II e como suas decisões definiram os rumos da história.
Konflikt zwischen zwei Reichen: GroBbritannien und das Deutsche Reich auf Konfrontationskurs, de Torsten Heirich, 2015. Para quem lê em alemão um livro curto (30 min) que pode introduzir à história da 1ª Guerra Mundial.