– Beto, a saideira! Eu juro que prometo! Brahma, por favor!

– Seu Nei, faz horas que você tá aqui. Só eu e você. Preciso ir pra casa…o bar vai reabrir pra você e pro Seu Otacílio, quando vocês quiserem…! – suspirou lamentoso o garçom que tinha feito daquele bar a sua casa.

– Betão, meu querido, se eu te contar umas histórias boas da semana, você desce mais uma? É tipo terror com necrofilia e esperança falsária…

Nei sabia que aquele era o ponto fraco do seu companheiro mais leal de bar. O bom garçom tem um quê de escuta atávica que o faz tornar confidente do cliente e guardador de histórias secretas e difusas. Beto pensou, sentou-se à mesa e o gesto de seu corpo largado do trabalho de um dia todo fez com que o velho Nei começasse:

– Imagina a cena, Beto, só imagina: lá em Recife, a terra da açucarocracia, uma madame sinhá, em seu apartamento mau caráter, decide fazer as unhas durante a pandemia. Chega a manicure e sugere o esmalte vermelho; a sinhá diz que foi o tempo do vermelho ser chique ou erótico, agora era só coisa de comunista, que tinha que limpar o Brasil dessa corja.

O garçom faz um gesto com a mão pra desenrolar logo a história.

– É isso, Beto! Traz a saideira…tem mais.

– Ah, Nei! – baixou a cabeça e soltou: – Vai cagar! Levanta a bunda e se serve, pelo amor do seu cu e do meu!

O velho Nei se levantou, um tanto intimidado pelo tratamento. Tempos de pandemia….mas pra contar o restante da história valeria gelar a guela.

– Beto, imaginou a sinhá fazendo as unhas de sei lá qual cor, né? Agora imagina a unha do dedo do meio com muita cutícula, de herança, a vista para a Recife antiga, e uma criança preta caindo do 9º andar do prédio em que ela morava. Agora imagina a criança estatelada lá no térreo, com os olhos esbugalhados, ainda respirando, e chega a mãe dela tentando acudir o anjo morto depois de ter passeado com os cachorros da sinhá. Agora imagina que essa mãe sempre cuidou dos filhos da sinhá e confiou seu filho por um único momento, uma única vez a sinhá. O sobrenome da desgraçada era Corte Real, e esses assassinos vêm da época da chegada da família real no Brasil, se perpetuam no poder e matam mais que o vírus. O marido é prefeito de uma cidadezinha lá em Pernambuco. E a safada se safou por 20 mil reais!

– Porra, vai tomar no cu, Nei! –  naquele momento qualquer licenciosidade se perdera. Como a empregada podia confiar assim na desgraçada da patroa? Com 30 anos de casa, nem eu confio tanto assim no meu patrão…

– Calma, Beto – um grande gole da canela de pedreiro fez cair uma lágrima do olho de Nei – …o servilismo no Brasil não é coisa pra amador.

– Ué…a vida do muleque tem valor, baixo, né?; a da nobreza podre tem valor até na bolsa de valores.

– Sim – concordou, Nei – Nem queriam divulgar o nome da safada que colocou o moleque no elevador enquanto queria fazer sua cutícula. Beto, essa biboca de país tá cheia de cutícula, e ela tem nome: pobre e negro, se for negro-pobre, fodeu mais ainda. Não precisa só da polícia pra matar, quem sempre dominou faz sua parte há séculos! E a burguesada se acha as mãos e os pés desse país! Na verdade, a cutícula são eles. E eles fazem todos acreditarem no contrário. É como dominar leão no circo: pouca carne, chicote, sedativos e truques baratos. O domador coloca a cabeça na boca do leão porque sabe que o público, embora queira sua cabeça estraçalhada, não quer o fim do espetáculo, pretendem ser os domadores! E essa raça é que devia sangrar até o fim! tem sobrenome, tem terras, tem a lei e tem o jeitinho, o jeitinho é deles, Betão! Sempre! …porra, isso me mata por dentro! E ainda a empregada pegou coronavírus por causa dos escravocratas. E continuou trabalhando! Quer me falar se isso não é extermínio? E ainda vem o presidente querendo atrasar relatórios do Covid pra não atender à rede Globo? É um conluio de loucos e insanos pelo poder! A Globo e esse miliciano desgraçado…!

Pra tentar desviar a choradeira do bebum, Beto soltou:

– Você lembra do Neymar vestido de macaco?

Nei olhou de esgueio, deu mais um gole. Afirmou que lembrava sem entender muito por onde iria. Beto continuou:

– O menino famoso da internet disse que o boleiro deveria se posicionar sobre as merdas racistas e o antirracismo, porque é negro também. Aí veio um pessoal do movimento negro e calou o menino, com ar de patrão, dizendo que ele não poderia cobrar um negro porque era branco. Sei lá…parece meio estranho. Jogador de futebol é a raça mais dominada porque gostam de glória, são embranquecidos nas ideia, sabe, Nei? O nosso atual craque é bolsonarista, tá se lixando pro mundo, ganha dinheiro só de aparecer na internet…aí vem uma blogueira branquela e diz que racismo é natural e instintivo porque negros cometem mais crimes! Eles são a cutícula e se acham as mãos, mesmo, Nei.

– Beto, e nos EUA que a polícia matou o Floyd e a galera foi pra rua quebrar tudo? Me lembrou o Duke Ellington, um pianista negro americano, que gravou Echoes of Harlem. Já ouviu? Ouve e veja a imagem de Nova York pegando fogo! Mas, sei lá, parece que todos os protestos lá ecoam para que o capitalismo só se adeque um pouco mais. Os EUA virou a porra de um lugar que dá o norte de dominação. Eles radicalizam nos atos e não nas ideias, sabe? O macarthismo foi pesado.

– Nei, se liga: aqui os caras sempre tiveram medo da revolta generalizada do negro. É maioria, é maioria pobre e fodida. Nego tem consciência da vida que leva, sabe? Sabe quem escreve as desgraças da desigualdade e quem rege a batuta pra banda tocar como querem.

– O batuteiro da vez, o miliciano eleito, ainda teve a astúcia de vetar um projeto que direciona bilhões para o combate o coronga. Quer o quê? Rebanho? Rebanho pra ele é rato comendo rato. E ainda estamos sem ministro da Saúde. O preferido pelo miliciano disse que vai ser totalmente cloroquinada sua gestão. Enfia cloroquina no rabo de todo mundo. Elimina uma parcela. Darwinismo social, tá ligado, Beto? Esse papo de que só os fortes sobrevivem. E ainda bem que a Xuxa disse que vai se aposentar depois da pandemia…eu não sei se isso é desgraça ou alegria, quem sabe quando esse trócio vai acabar nesse país? É a primeira onda eterna, um tsunami infindável…quem não sobreviver a isso, tá eliminado, tipo Big Brother.

– Nei, se liga: A Xuxa caiu no colo do Pelé, queria ser jornalista e virou sedutora de criança e benevolente. Essa gentalha canta pra sonhar, canta a esperança, conta uma historinha de vida de pobreza, convence os pobre, dá esmola e ainda sai por cima!

– Você viu que o dólar caiu? O pessoal lá fora tá animado porque tem voltado a produção, os serviços etc. Esses investidores são tipo animação de festa infantil. Não aguentam muito tempo o pobre palhaço mal pago macaqueando e logo querem matar o palhaço com gritos e estribeiras. Não tem mais como o mundo crescer, a conta não fecha mais.

– Falando em conta, paga suas cervejas. Já fiz muito em prosear com você. Aqui a conta precisa fechar, senão patrão me esculacha.

– Beto, a saideira! Eu juro que prometo! Dá qualquer uma que eu vou…

– Qualquer uma? Tempos difíceis, heim, Nei?

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