Seção “Um lero pelas esquinas (entrevista)”: Wilson das Neves

(entrevista realizada por Fernanda Guimarães em 11/10/2009 / foto de capa: Daryan Dorneles)

Eles estão modernizando, mas modernizar não é deturpar, não é? Você pode melhorar aquilo que está fazendo sem deturpar, como diz o Paulinho da Viola – não me mexe no samba tanto assim, né? Isso já se vem falando, mas ninguém presta atenção.

A escola de samba, para mim, perdeu a sua finalidade principal, que é fazer o quê? Formar sambista. Hoje se “importa”: tem uma porta-bandeira boa lá na Unidos Não Sei De Onde, mandam buscar. Não tem mais aquele amor. Outro dia eu estava conversando com Nelson Sargento, que é meu parceiro, da Mangueira, que dizia que antigamente era feito com amor, hoje é feito com dinheiro. Então a coisa mudou muito, sabe? Se perdeu aquele prazer, aquela honra de carregar a bandeira da sua escola. Culpado disso é quem paga, não é? Quem começou com isso de importar foi o Natal da Portela. Ele levou uns dois mestres-salas do Império, contratava, pagava, e isso foi crescendo, foi mudando e as escolas todas começaram a fazer a mesma coisa para poder concorrer. Então esse amor pela escola morreu, só existe na velha guarda, na bateria e alguns compositores.

Não tem duas escolas, não, eles continuam lá, gostando da escola como antes. Os outros, que ganham dinheiro, também gostam, mas são profissionais. Todo mundo ganha dinheiro em escola de samba, menos o sambista, que paga para sair. Eu acho tudo errado, mas voltar atrás, não volta. Isso até acabar, porque daqui a pouco vai virar outra coisa. Vão botar efeitos não sei de quê e vai mudando, vai mudando, deixa de ser escola de samba pra ser show bizz.

Hoje só vem alegoria, cadê o povo? Aliás, um samba do Império, o Bum bum praticumbum, diz “escondendo gente bamba, que covardia!”, quer dizer, o sambista ninguém vê! Vê carro alegórico, do tamanho de um prédio, com as mulheres lindas lá em cima, e daí? E cadê o samba? E cadê o passista? Não tem. Coisas importantes da escola a televisão não mostra, só mostra o que interessa a ela, o artista da novela, pra promover a novela; não mostra mestre-sala e porta-bandeira, a dança deles, o momento mais importante do desfile. E a bateria é o que segura, não tem baile sem orquestra, tem? Se a bateria parar, vira o quê? Mas eles dão valor à rainha de bateria. Será que lá no morro não tem uma crioula que era só dar um banho de loja nela e botar ela lá? Na hora que ela pode ser rainha, ela vira escrava de novo.

E não vale nada aquilo, mas as rainhas pagam pra sair ali. Elas se vestem e pagam pra sair, porque dá ibope, capa de revista. Ninguém presta atenção na bateria, ficam atrás da rainha de bateria, que às vezes até atrapalha. Você quer andar com a bateria e não pode, há milhões de câmeras, elas se exibindo… E a bateria, que é o que conta ponto? Atrapalha. Ninguém reclama porque quem manda é o Seu Fulano, e fica nisso.

Isso que está aí não é mais escola de samba. É tudo igual, passa correndo, parecendo que está tocando marcha, não se entende nada. Ninguém canta o samba do ano passado. Ninguém lembra mais, porque não tem conteúdo, não tem nada. É marchinha! Primeira, segunda e acabou, vem o refrão… É fácil, todo mundo aprende, mas não guarda. Aprende na hora, pra cantar, mas na hora de lembrar, vai cantar o quê? O de 1950. Escola de samba desfila feito boi: toc-toc-toc-toc-toc, e vamo, vamo, vamo, como relógio, as escolas não evoluem. Na evolução, as alas entravam umas nas outras, isso é que era evolução, e não tem mais. Então pra mim acabou, ou melhor, virou outra coisa. É tudo muito igual, a única coisa que muda de uma escola para outra é a cor da bandeira. Antigamente se uma escola era verde e branco, tudo era verde e branco. Um tom de verde mais claro, mais escuro, mas era tudo verde e branco. Hoje é um arco-íris… São todas iguais, não tem diferença. A única diferença é na cor da bandeira e na cor da escola.

Eles estão modernizando, mas modernizar não é deturpar, não é? Você pode melhorar aquilo que está fazendo sem deturpar, como diz o Paulinho da Viola – não me mexe no samba tanto assim, né? Isso já se vem falando, mas ninguém presta atenção. Cantam o samba e não sabem o que é que o Paulinho está dizendo: “eu aceito o argumento, mas…”. É o que eu estou dizendo, eu aceito, mas não precisa ser radicalmente! Por exemplo, não pode ter instrumento eletrônico, é proibido, mas daqui a pouco vai ter uma orquestra lá. Se não botar funk, DJ, bota a bateria em cima de um carro, que é pra passar mais depressa, porque as escolas de samba estão sendo dirigidas por quem não conhece de samba. Conhece de administração e dinheiro, mas quem põe dinheiro quer mandar, quer ser o dono do negócio. Só que isso é de uma ignorância, porque para ser um bom administrador eu tenho que me cercar de gente em quem eu confie, que eu saiba que tem competência pra resolver o que eu não sei fazer. O pessoal acha que sabe tudo, é presidente, é carnavalesco, é compositor, junta o samba de um com o do outro[1]… Eu acho que é errado isso. Eu tenho uma concepção pra fazer um samba e você tem outra, quem é que vai julgar e aonde é que vai juntar? Mas os compositores não reagem nada, por causa do dinheiro.

Wilson das Neves em sua casa. Foto: Fernanda Guimarães, jan. 2011.

O samba tem dez compositores, mas precisa de dez pra fazer um samba? Não precisa. Então o que você subentende ali? Um paga o prospecto, o outro paga a cerveja, o outro paga a alegoria, outro paga o ônibus pra levar a torcida e assim vai, e todos fizeram o samba. Aí tem dez no samba; quando ganham, aquele dinheiro é dividido pelos dez. Antigamente não era assim – eu tenho quarenta anos de Império Serrano, sei do que estou falando. A gente ia ao museu, à biblioteca, eles davam um tema e a gente ia lá, estudava…. Hoje tem uma fôrma, joga ali e sai, fica tudo igual.

Mas não vai voltar atrás, seria como querer acabar com o computador! É o que eu digo, as coisas são mal usadas. Você pode melhorar sem deturpar nada. Só que aqui tem um modismo. Alguém diz “é isso”, e tudo é isso. Conjunto de pagode, por exemplo, tinha quinhentos: pirraça, com graça, sem graça, desgraça, sem desgraça, com preconceito, sem preconceito – quinhentos. Perdeu porque era tudo igual, não tinha diferença, a gente escutava:

– Quem é que está cantando?

– Não sei, conheço as músicas. Pra mim é o pirraça.

– Não, é o desgraça.

O Império tem uma gomazinha que agarra a gente, quando você vê já está lá. Digo sempre que nasci imperiano, apesar de o Império ser mais novo que eu: em 1947, quando foi fundado, eu tinha mais ou menos 8 anos, mas não era muito ligado. Minha mãe se tornou baiana da escola, então aquilo veio, só se falava em Império Serrano e acabei gostando, como clube de futebol. Foi a primeira escola de samba em que eu entrei na vida. É muito engraçado escola de samba. Você se apaixona, passa a fazer parte da vida.

Eu era músico bem atuante, gravava todo dia, viajava muito, então não podia ir lá, mas era sócio. Quando finalmente eu me emancipei, parei de fazer aqueles trabalhos brabos de carnaval, aí eu passei a freqüentar a escola e a sair na bateria, tocando tamborim. Saí lá uns quatro, cinco anos, aí me escolheram para ser Vice-Presidente Cultural da escola, aí eu já não tocava mais, mas a minha ligação com o Império é na bateria. Fui presidente da ala de compositores, sou benemérito da ala de compositores, sou compositor da escola e, lógico, sou baluarte da bateria. Para lá é que eu carrego os meus filhos. Aprendi muito no Império Serrano, sobre a nossa vida de músico, como fazer e como não fazer, entende?

Sempre fui músico, nunca fiz outra coisa, não, e quando eu servi ao Exército, com 18 anos, eu comecei a estudar música. Aí quando eu saí do Exército já estava tocando, fazendo baile. Mas a experiência na escola vem desde criança. Eu ia lá pro candomblé do Joãozinho Dagoméia e os atabaques me fascinavam, aquela coisa, eu sempre gostei de percussão. É que eu tinha que ser músico mesmo.

Porque tem uns que são músicos. Minha neta, por exemplo: botei esse piano aí para ela estudar. Escuto tudo, menos o piano. Não estuda nada. Pode ser que meu bisneto vá tocar, porque nenhum deles é músico. Um filho meu está na fila de espera, o outro, Vinícius, pai dessas duas meninas, trabalha com futebol. É dessas empresas que compram e vendem jogador. É a mesma coisa com o samba: tem escritório para fazer samba-enredo. Você encomenda. Eles fazem dez, vinte sambas. Tem ala de escola de samba que paga carnê o ano inteiro. Estou dizendo a você que escola de samba acabou! Não é mais aquilo, e nem vai voltar atrás, se já tem escritório fazendo samba. De encomenda! Samba hoje é encomenda. No Império não tem encomenda, porque eles também não têm dinheiro pra pagar ninguém. Começa por aí.

Velha Guarda é o seguinte: existe a velha guarda da escola e a Velha Guarda “show”… O que eles dizem que é Velha Guarda da Portela, com o Monarco, aquilo ali é a Velha Guarda show. Mas velha guarda mesmo é a que sai na avenida com setenta, oitenta coroas dançando, entendeu? Não é porque é velha guarda que é compositor, às vezes não toca nada, mas desfila na escola, entendeu? É o mesmo amor, mas no show são dez, no máximo doze pessoas. No Império também tem, gravou um disco bonito, tem um repertório muito bom.

Entrei para a Velha Guarda do Império há algum tempo. Eu viajava muito e todo mundo perguntava:

– Das Neves não vem?

Tinha seu Fuleiro, Aniceto, Mano Décio, Carlinhos Vovô, Nilton Campolino, Tio Hélio, Djanira… Foram todos morrendo, só ficaram o Tio Hélio e o Campolino. O pessoal sempre perguntava:

– Mas cadê o Império?

Eu disse:

– Então vamos fazer, retomar.

E fizemos uma nova Velha Guarda. São todos velhos também: Aluizio Machado, Fabrício… E eu tive a ideia, não era pra eu ficar, só que pediram e acabei ficando.

A Velha Guarda é complicada, de vez em quando as pessoas não levam muito a sério. E dirigir Velha Guarda é um problema: velho é cheio de mania. Eu não quero dirigir; se tem show, eu vou, mas tomar conta é complicado. Velho é pior que garoto. Pergunta pro Monarco! Pra dar uma ideia: a gente vai lá fazer show. O dinheiro tem que dividir certinho: vai dar quinhentos e vinte e três e cinqüenta pra cada um, tudo bem, vamos lá. Na hora de pagar, se fica faltando o trocado, o sujeito fala:

– Não, me dá meus três e cinqüenta

– Não, mas depois eu te dou.

– Depois não, eu quero agora!

Velha Guarda é assim.

– Eu quero meus cinqüenta centavos, me dá.

Aí tem problema, ele não entende que você não tem trocado, que o cara que pagou não te deu trocadinho. É bobagem, mas tem isso. Isso aporrinha, chateia. Não tenho paciência pra isso, não, trazer moeda de cinqüenta centavos… Na hora do show eles se empolgam… Mas são detalhes, assim. Roupa, por exemplo: a camisa é pra fora das calças.

– Ah, mas eu não quero, quero botar pra dentro!

Tudo é problema.

– Ah, mas eu não gosto, minha camisa eu só uso pra fora.

Bom, então ou todo mundo bota pra fora ou todo mundo bota pra dentro. Tem essas coisinhas. No fim já não fala um com outro, já fica emburrado, reclamando… Cheio de mania, cheio de sistema, não é? O Monarco conta que eles foram pra Brasília, isso há muitos anos, e chamaram para almoçar com o Presidente. Aí Seu Alberto Nonato – é Nonato, com “n” – falou:

– Não, mas eu não tenho compromisso com o Presidente, eu tenho compromisso com a Portela

Isso é o que eu estou sabendo, fora outras coisas que acontecem e que a gente não sabe.

Seu Alberto era muito engraçado, brancão, sambando, eu achava ele gozado pra cacete. Ele, Jair, na Portela eram todos meus amigos… Jair, Argemiro, Manacéa, Rufino, esse povo. Na Mangueira conheci Cartola, Carlos Cachaça, Jurandir, um monte deles. A Portela tinha uma ala de compositores braba. Mas você vê, nenhum deles faz mais samba-enredo. Por quê? Não adianta: se for dizer a eles como é que deve fazer, eles dizem:

– Então faz você.

Entendeu? Porque aquele pessoal da antiga, Lonato, essa turma, não está mais aí. Os mais velhos compõem o samba de meio de ano, mas samba de enredo não, nem samba de quadra. Porque precisa investir dinheiro em samba de enredo pra ganhar dinheiro, e samba de quadra não dá dinheiro. Eles não fazem mais, aqueles compositores antigos não fazem mais. Ficam de lado.

Sempre teve trânsito entre escola, sempre teve.Mas o compositor de uma não vai para outra, isso não tinha. Como é que eu vou falar “Mangueira, meu amor”? Isso era sujeira na roda. Você é Mangueira lá, Império é aqui, Portela é lá. É assim, não tinha esse negócio não. Agora eles mudam. Fazem um samba aqui, perdeu, vai para não sei onde. É assim… David Corrêa foi pra Mangueira, ganhou, foi pra Vila Isabel, ganhou, foi pra Imperatriz, ganhou, foi pro Salgueiro, ganhou, quando foi pro Império, dançou. Fez o samba, mas lá é ruim, hein? Pra todo lugar que ele foi ganhou, quando ele foi pro Império não deixaram, não. O samba dele não era o melhor, tinha melhor do que ele, e no Império é ruim de aceitarem esse tipo de coisa imposta. Bota um diretor de bateria no Império que não é da área pra ver como fica? Mas nem presidente fica, o cara se manca e vai embora sem ninguém falar nada. O Império é muito… É aqui, é daqui, não tem que chamar ninguém. Quem é de fora quer vir, venha, mas não vai levar nada.

O Império só não tem o dinheiro que os outros têm. O Império é uma escola democrática, o presidente é eleito pelo povo da escola. Todo mundo vota.Parece eleição de política. E na Portela é a mesma coisa, é eleito. Já nas outras escolas são consagrados… Aclamados… É diferente. Aí fica uma coisa meio desigual, não é? Porque você não tem esse respaldo… E eles não põem dinheiro, eles põem aval. Digamos que eu seja presidente do Império Serrano, vou comprar madeira lá, o sujeito quer cash, quer que eu pague à vista. Aí Castor de Andrade compra da mesma madeira, manda receber no escritório dele. E eles dão. Não é por intimidação, não: é o nome.

– Doutor Castor é homem poderoso

E tal, e pro Presidente do Império é:

– Que nada, amigo, se não pagar não leva!

A diferença é essa.

Se escola de samba não gerasse dinheiro eles não brigavam assim, desse jeito, pra ganhar samba-enredo. O único que não ganha dinheiro é o sambista. Esse vai lá, compra a fantasia, caríssima, e às vezes os caras dão até “volta”, ninguém recebe fantasia nenhuma. Escola de samba agora é outra coisa, é show pra estrangeiro. O próprio brasileiro não tem direito a ver nada, porque paga uma fortuna pra sentar no camarote. Quando eles compram ingresso é pra concentração, o cara não vê nada, vê concentrando. Quem vai é japonês, é americano, alemão, inglês, e brasileiro que pode bancar. Mas não existe diferença, as escolas de samba são todas iguais. A única diferença é que uma tem e outra não tem – dinheiro. Só isso.

Mas é a mesma coisa que existir Vasco e Flamengo: não pode ter uma escola só, se não a Portela ia desfilar pra quem? Sozinha. Não ia disputar com ninguém. E a Mangueira, que é mais velha que a Portela? Só eram essas as duas poderosas, ganhavam tudo. Aí veio o Império Serrano, ganhou quatro anos seguidos. Já começou a encrenca, porque aí tinha rixa. O Império é a junção de três escolas de samba pequenas: Unidos da Congonha, Prazer da Serrinha e Unidos da Tamarineira. Porque não adiantava, três não chegavam a lugar nenhum. Salgueiro também: era Unidos do Salgueiro e Azul e Rosa do Salgueiro, uma coisa assim. Juntaram as duas, fizeram a Acadêmicos do Salgueiro. Paraíso do Tuiuti também: era Unidos do Tuiuti e Paraíso das Baianas, no mesmo morro. Juntaram e fizeram a Unidos do Tuiuti. Unidos de Lucas também. Vila Isabel não, Vila Isabel sempre foi Vila Isabel mesmo, Unidos de Vila Isabel. E o que mais? Mangueira também! Cada um tinha uma escola de samba lá em cima, juntaram pra fazer a Mangueira.

Tinha o morro, não era uma cidade que é hoje. Então a coisa era mais ou menos dividida. Uns faziam, outros faziam, tinham seus blocos, começava com bloco e ia virando escola de samba. Por um motivo ou outro:

– Ah, não gosto de lá não, vou fazer a bossa aqui.

No fim chegaram à conclusão de que tinham que juntar. Eu não sei se a Portela juntou, porque a Portela era um bloco… A Portela não é de Madureira, não, ela é de Oswaldo Cruz. O Império também não é de Madureira, é de Vaz Lobo. O delegado de polícia é que botou o nome Portela, quando se tornou escola. Eles foram registrar, porque apanhavam quando saíam na rua, aí virou Portela, por causa do nome da estrada. Pergunta ao Monarco, ele conta essa história. Monarco foi criado ali desde garotinho… Sabe muito, acompanhou os bambas lá, aqueles compositores maravilhosos que tinha lá. Que a Portela tinha uma ala de compositores maravilhosa, o Império também tinha. Osório Lima, Avarese, Silas de Oliveira – o maior deles todos –, Nilton Campolino, seu Rufino, Aniceto, Seu Manel.

As mudanças no samba, isso é problema de mídia, de gente que foi dirigindo o samba pra isso, porque depois que a coisa foi gravada, o samba-enredo foi gravado, começou a ter dinheiro, então na rádio não tocava o samba quilométrico, como chamavam. O samba-enredo tem que contar uma história, você tem que contar por que aquilo; cada ala, ou cada quadro da escola, tem que contar o que vai acontecendo. O que estão cantando, está acontecendo. Escola de samba é o resumo da ópera. Só o Brasil faz isso, tocar, cantar, sambar, tudo ao mesmo tempo. Onde tem um espetáculo desses? Só aqui, e é o resumo da ópera, ópera é isso. Mas virou profissional, negócio de disco, aí a rádio não toca porque o samba é muito longo. Aí veio esse negócio de fazer samba de empolgação, que levante a arquibancada, mas se você prestar atenção nas letras dos sambas que estão concorrendo, falam a mesma coisa, do mesmo jeito. A sinopse não é pra você copiar, é pra você interpretar. Mas eles copiam, do jeito que o cara escreveu a sinopse o outro bota no samba. Fora as barbaridades que você ouve…Teve um samba no Império que o cara dizia: “lá em Guararapes, onde tudo começou…”. Guararapes é o nome da guerra, começou o que? Aí você vai falar e o cara acha que você é que está errado, não tem discussão. Porque não é compositor, é comprôsitor. Aí geralmente você vê que sempre os mesmos ganham.

Silas de Oliveira ganhava tudo. Por quê? Porque era o melhor. E tinha cara bom lá, hein? Tinha cara bom, mas igual a ele não tinha. E você é culpado porque você é o cara? Pega as músicas dele, estão sendo cantadas até hoje aí. Já o do ano passado… Ninguém lembra! O samba empolgação, o samba de quadra, o samba que esquentava a quadra que era assim, um refrão, um verso, um refrão, um verso. E passou a ser o oficial, tiraram a história. Aí o camarada tem que falar em três estrofes uma história, aí ele fala o quê? Perde a inventiva, a pesquisa, a imaginação viajando pela história.

Getúlio Vargas foi quem liberou a escola de samba no Brasil, mas como contraproposta tinha que falar da História do Brasil. Hoje já tem astronauta, rainha do Egito, não sei o quê, isso não tem nada a ver com o Brasil. Eu sou nacionalista… Pato Donald, o que é que isso tem que ver com a História do Brasil? Hoje o Governo do Ceará bota o dinheiro, aí o filho do Governador sai trepado no carro, a mulher do cara, o neto… Aí é que eu digo: é uma covardia. Na hora que o negro lá do morro pode ser rei, aí você fala:

– Não, tu vai empurrar a minha alegoria, cara.

É assim. E quem construiu aquilo? Foi ele, e ele não tem direito a coisa nenhuma.

Tem uma família de sabiá aqui em casa. Ah, aqui eu vou lá pro terraço, é um escândalo. Tem muito passarinho solto aí. Eu faço minhas músicas, gravando. Tem hora que pinta, tem hora que demora. Eu começo, mas não acabo, faço a música e dou pros parceiros, tenho muitos parceiros mesmo. De parceiro eu não estou mal, sou parceiro de Chico Buarque… Paulo Cesar Pinheiro, Aldir Blanc, Ivor Lancelotti, Claudio Jorge, Carlinhos Vergueiro, Nei Lopes, Nelson Sargento, Toninho Nascimento, Délcio Carvalho, fiz um pro Monarco botar a letra, mas ele não botou, o Elton Medeiros também não. Eu gravo na fitinha e dou pra eles. Canto, faço um cavaquinho sem vergonha, pra me acompanhar, e mando pra eles…Aí eles põem a letra. Quem dá o nome é quem põe a letra, geralmente. Às vezes pinta uma ideia, aí eu digo:

– Ó, tu põe a ideia assim, pra essa música.

O Nei é craque nisso. Falei pra ele fazer um samba em homenagem à Elizeth. Ele fez a letra. Em homenagem a Ciro Monteiro, ele fez, e à Velha Guarda do Império, que está nesse meu disco novo aí, que vai sair, dia 3 de dezembro, estou lançando. Pra gente fazer mais um samba. É uma música minha com Paulo Cesar Pinheiro que dá título ao disco. Dia 3 de dezembro no Teatro Tom Jobim, um dia depois do dia do samba. Dia do samba é dia 2. É a semana do samba, querem aproveitar isso para lançar meu disco. Estou gostando, está muito bom. Eu não corro atrás de nada não, deixo escorrer… Sou a matéria-prima, né não?

Nunca fiz samba-enredo não, Deus me livre, isso é pra arrumar inimigo de graça. Imagina eu fazer samba pro Império Serrano. Aí eu vou começar a escutar conversa fiada e eu não estou aqui pra investir, eu não ganho dinheiro pra investir em samba-enredo. No fim sabe quanto que eles gastam, cada um? Dez, quinze mil. Tudo é dinheiro. Por isso que eu digo, voltando ao princípio da conversa, escola de samba… Muda o nome. Pra mim não é mais, não. Por que é que eles botam a velha guarda no fim da escola? Pra não verem as coisas erradas, senão eles iam reclamar.

Eu não uso a escola. Eu eu sou músico profissional, acabei me tornando compositor, me deram oportunidade de mostrar minhas músicas, graças a Deus estou gravando, aí já fiz disco cantando, e tal, então eu não vou esquentar a cabeça. Tocaram pra mim um dia:

– Ah, seu das Neves, eles tão querendo que o senhor venha aí pra participar do júri, tão chamando os beneméritos…

Eu disse não. Tem um que não é compositor. Maurição é parceiro do samba, o outro é o realce. Eu, por exemplo, não tinha coragem de assinar uma coisa que não é minha. Também não vou deixar ninguém assinar o que é meu, não. O samba é meu, como é que vai enfiar o outro que deu o dinheiro? Não, não precisa dar nada.

Mas isso já vem desde Francisco Alves, que comprava samba. Nelson Cavaquinho vendia todos. Tem uma história do Nelson Cavaquinho com o Cartola, que eles só fizeram um samba juntos. Só um, conhecido. Aí ele fez o samba e Cartola botou a letra, e Nelson fez a melodia. Um dia o Cartola passou no Buraco Quente, tinha um cara cantando o samba deles dois, aí o Cartola falou:

– Ué, o samba é meu…

E o outro ia dizendo:

– O samba é meu, é meu e teu!

Ele aí foi falar com Nelson:

– Que é que estão cantando o nosso samba?

E o Nelson falou:

– Já vendi a minha parte, agora tu acerta a tua.

Não é mentira não, Cartola contava isso. Nunca mais fizeram, foi o primeiro e último. Tava duro, dizia:

– Eu tô com um samba bom, aí, meu e do Cartola, quer comprar a minha parte?

O Nelson vendia, quantas músicas são dele e ele vendeu, ninguém sabe. Ismael e sua turma tinham dinheiro, não é? Os caras escutavam e…

– Isso é sucesso! quanto tá?

– 100 cruzeiros, paga uma sopa e tá tudo certo.

É a vida de sambista.

Isso de sambista se juntar, exigir, é uma coisa muito complicada. O povo brasileiro, a gente vive dessa maneira porque ninguém junta nada. Aqui cada um quer saber de si e ninguém quer saber de nada. Não importa se o vizinho está passando fome, isso aí é problema dele, daqui a pouco vai chegar aqui. Entendeu? Não tem essa consciência de que sozinho você não chega a lugar nenhum. A escola é a escola, não tem nada a ver com a vida particular de ninguém, que ninguém deixa. Todo mundo pensa “ah, mas a escola…”, mas a escola não agrega ninguém. Antigamente se juntavam porque não tinha como, hoje tem um que banca, então não precisa de mais ninguém.

Antigamente se cotizavam. A comissão de frente da escola de samba antigamente, na Portela até pouco tempo, quem é que vinha na frente? Era a velha guarda. Antes, escola de samba tinha o livro de ouro, que era a contribuição dos comerciantes do bairro, que ajudavam com aquela importância pra fazer o carnaval, eles eram a comissão de frente. Porque eles tiravam o chapéu e diziam pro povo:

– Esse é o carnaval que nós pudemos fazer.

Essa era a finalidade da comissão de frente, não é isso que está aí. Por isso que eu digo a você: mudou tudo. Comissão de frente vinha andando, vinha mostrando a escola, geralmente a velha guarda, geralmente senhores, os administradores, diretoria, era isso. Hoje bota mulher grávida, bota mulher não sei aonde, o cara entra com uma caixa de som, é comissão de frente, mas não é autêntica. Você pode melhorar, mas não deturpar desse jeito. Mas eles acham que é tudo coreografia, e escola de samba não tem passo marcado, coreografia, a ala que fazia isso era a Sente o Drama, no Império, e só. E agora, comissão de frente dá salto mortal, e está apresentando o quê? Aqueles senhores que apresentavam a escola, e vinham andando, sambando. Geralmente usavam chapéu, paletó, gravata, e hoje o negócio está todo errado.

Faz outra coisa e diz o quê que é, mas não fica mexendo numa coisa que já é aquilo, não tem que mudar. Tem que melhorar aquilo, não mudar, isso sim. E quando a Viradouro botou a bateria trepada num carro? Como é que você vai tocar um instrumento? Tem que estar amarrado. O sujeito tocando surdo, o carro anda… Aí eles sentiram esse drama, ficava parado aquele carro, aí eles passavam por cima, saía, eles passavam pra cá… Quer dizer, bateria não pode parar, na bateria só se julgam três coisas: cadência, característica e não atravessar. Cada uma tem a sua característica, se ela começar assim tem que terminar assim, e não atravessou? Então é dez. Aí foi a Unidos do Cabuçu e disseram:

– Bom, a escola está bem: 9,8.

Isso é uma covardia! O que é que você viu pra tirar dois décimos? Então tira logo um ponto, sabe? Porque não tem o que tirar. Pra mim bateria já é hors-concours, porque são todas boas. Não existe bateria ruim, existe diretor de bateria ruim, incompetente, porque inventa coisa, quer aparecer. Mas não tem bateria ruim. Se elas pararem, acabou a festa. Não ganham nada e ainda fica o camarada atrapalhando o trabalho deles. Botam aquelas mulheres lá na frente, você querendo andar.

Mestre Marçal era diretor de bateria da Portela e disse:

– Não pode, quero andar com a bateria, mas tem aquela vagabunda!

Aí elas disseram que ele não gostava de mulher, ele respondeu:

– Não, eu gosto sim, mas não é na frente da bateria!

Saía empurrando:

– Quero andar com a minha bateria e não consigo!

Aí fica aquele buraco. Vem aquela mulher rebolando, pára tudo, fica clec-clec-clec-clec-clec, tirando fotos, e você quer vir, mas como é que vai vir, cadê?

Natal levou Marçal para a Portela por causa de um pé de sapato. Isso aí é do meu tempo de garotinho, Marçal foi até capa de disco. Na hora de pegar o sapato deram dois pés direitos pra ele. Muito fácil de resolver, mas ele tomou aquilo como se estivessem dizendo que era aleijado. Aí ele foi falar com o presidente, que disse:

– Não cria problema…

E ele:

– Então fica com a tua escola aí.

Isso deve ter mais de cinqüenta anos. Aí ele entrou para a Portela, Natal quis empurrar uma cativa de diretor de bateria lá. Mas ele morreu imperiano, mesmo. A família dele era toda do Império, a mulher dele. Antes de morrer, voltou, veio de volta. Claro, porque ele não estava em escola nenhuma. Falei:

– Pô, vamos voltar pra casa.

– Ah, não, que os caras vão querer problema comigo, que eu larguei pra lá…

Que nada, chegou lá, o povo todo batendo palma pra ele. Mestre Marçal.

Agora o filho dele está aí. Marçalzinho é meu afilhado, e eu sou um bom pai. Ele está na Itália, vai pra Itália, esses dias aí. Ih, é o percussionista que mais trabalha com Martinho, trabalha com esses cantores todos aí, João Bosco e não sei quem, todo mundo chama, e tem o bloco dele, o Sorri Pra Mim, que sai da Vila Isabel.

E eu estou aí, no meu Império Serrano, não tem jeito, não dá, não tem como mudar, não. Tudo aqui é verde – essa imagem de meu pai Ossain, que eu ganhei, não é bacana? Um amigo lá de Belo Horizonte, chamado Alexandre Segundo, mandou fazer e me deu. Ele tem sempre um galho de folhas na mão.

Mas diga.


[1] Por exemplo, Lopes (1981, pp. 42-45) e Mussa & Simas (2010, p. 74) mencionam – o primeiro com mais riqueza de detalhes – o episódio em que o carnavalesco Joãozinho Trinta, então no Salgueiro, copidescou o samba vencedor da disputa na escola para o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração, apresentado em 1974.

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