(por Felipe Siles)
Esse é um tema muito caro para mim faz um tempo. Desde que conheci o filósofo Byung-Chul Han e seu livro Sociedade do Cansaço comecei a organizar essa constante sensação eterna de que nós, urbanos e modernos, estamos sempre trabalhando, sempre cansados, sempre nos sentindo obrigados a produzir. Segundo o autor do livro: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”.
Como alguém que trabalha com música, com arte, me pego nessa reflexão já faz um tempo. Fico pensando o quanto esse novo capitalismo sucateia o trabalho em diversas classes sociais: para a população marginalizada e com menor escolaridade os trabalhos de motorista e entregador de aplicativo; e para a classe média a ilusão de que vamos “acontecer”, “estourar” por meio da divulgação nas redes sociais, enquanto estamos gerando conteúdo que alimenta megaconglomerados empresariais que a cada dia ganham mais poder.
Só comecei a dar a devida atenção a mais essa faceta da exploração do trabalho, as plataformas de streaming, quando a produtora Que Onda Sound anunciou que estava retirando do Spotify todo o seu catálogo como forma de protesto contra o tratamento e a remuneração da plataforma aos artistas. Entrei em contato com o Thiago Liguori, um dos cabeças da produtora, e desde então passamos a trocar muitas ideias sobre o assunto.
Um pouco antes disso, já havia chamado a minha atenção uma discussão no Twitter, onde o antropólogo e podcaster, cujo trabalho tenho grande admiração, Orlando Calheiros, puxou uma discussão alegando que o Spotify não monetiza os podcasts que hospeda. Como vivo num meio social de muitos músicos, para mim é meio óbvio que a plataforma remunera muito mal os trabalhadores da música, mas a minha surpresa com esse tweet do Orlando foi notar que isso não é tão óbvio assim para o grande público. Não foi baixo o número de pessoas que dizia não saber dessa realidade ou ainda que resolveu assinar o Spotify para ajudar os seus podcasts favoritos, acreditando inocentemente que a plataforma monetizaria os programas de sua preferência. E ainda houve um terceiro grupo, de gente defendendo a plataforma, dizendo que é assim mesmo, que “onde já se viu fazer o que gosta e ainda ganhar dinheiro”, que o Spotify é um espaço de divulgação e deveríamos ser gratos por ele existir, entre outras baboseiras. Inclusive, acho muito curioso o quanto essa dinâmica de fandom predomina na subjetividade de uma galera, principalmente nas redes sociais. Desde tretas como Xbox contra Playstation até a polarização política, o sujeito da internet está disposto a defender com unhas e dentes os seus produtos preferidos, como se sua vida dependesse disso, como se falar mal da sua plataforma de streaming, rede social, banda favorita, político de preferência ou qualquer coisa do tipo fosse ameaçar a própria existência do sujeito.
Outro episódio que me chamou muita atenção: estava um dia na famigerada rede social do Zuckerberg (aquela do livro das faces) e deparei com uma enquete sobre assinatura de streaming de música. Dentre opções como “assino serviço x” ou “não sou assinante de nada e ouço música com as propagandas”, havia uma opção “quem é trouxa de pagar por música hoje em dia”. Confesso que fiquei um pouco “pistola” com quem adicionou essa opção à enquete e fiz um pequeno discurso na postagem que foi prontamente ignorado pelas pessoas. Mas acho muito curiosa a forma como a cultura “lei de Gerson”, de tirar vantagem de tudo, somada a um capitalismo selvagem cria esse tipo de sujeito que não admite a possibilidade de que os artistas que ele ouve e consome vivem, são de carne e osso, precisam pagar as suas contas e colocar comida na geladeira, e se eles não conseguem fazer isso, tal sujeito não tem nenhuma responsabilidade sobre isso. Enfim, esse é um assunto muito extenso, e eu devo ainda escrever muitos textos sobre isso.
Os “Breque dos Apps”, ocorridos no segundo semestre de 2020, me despertaram para a importância da classe trabalhadora precarizada chamar a atenção e sensibilizar o grande público para suas condições de trabalho. Não tenho respostas para o problema, mas convido todos para a reflexão, do quanto é importante garantir sustentabilidade para que aquele que produz nossa arte, nosso entretenimento seja corretamente remunerado. Lembremos do compositor genial Aldir Blanc, que mesmo reconhecido e celebrado como um dos grandes gênios da música popular brasileira, faleceu em condições péssimas, com a família fazendo vaquinha pela internet para pagar o tratamento. Não é raro também encontrar músicos vendendo seus instrumentos na internet, para conseguir sobreviver em meio à pandemia de Covid-19.
Diante de tudo isso, tomei a iniciativa individual de cancelar minha assinatura no Spotify. Não acho que atitudes individuais mudem o mundo, mas acredito que precisamos assumir a nossa parcela de responsabilidade por ele estar como está. Não tenho ainda solução para o tal dilema, não acredito que também precisemos voltar “ao que era antes”. Estou me virando muito bem ouvindo música aqui na minha modesta coleção de discos de vinil, mas acredito que podem existir, sim, boas soluções online e tecnológicas para que as pessoas continuem ouvindo música com praticidade, mas ao mesmo tempo fomentando todo um ecossistema sustentável que remunere dignamente os produtores de conteúdo.
Precisamos nos desapegar um pouco da ideia de que PRECISAMOS ter acesso a toda música produzida no mundo, quando na realidade concreta ouvimos mais ou menos as mesmas coisas todos os dias. E se queremos mais opções, precisamos pagar corretamente por isso. E se não quisermos pagar, tudo bem, mas que tenhamos acesso aos bens culturais às custas da derrubada do sistema capitalista e não da exploração do trabalhador da música, que já tem uma vida bem complicada.
Felipe Siles é músico low profile, professor de música, etnomusicólogo e apresenta o podcast Estação Música