Seção “Um lero pelas esquinas (entrevista)”: Noca da Portela

(entrevista realizada por Fernanda Guimarães em 29/01/2010)

“Os sambistas precisam de escola. A escola precisa de sambistas”

Primeiramente é um prazer muito grande, a gente estar aqui de novo, depois de oito anos, dando continuidade a essa entrevista, não é? A minha história são 55 anos de samba, 77 anos de vida. É uma história de lutas, de respeito às pessoas, de talento; o ser humano não chega a lugar nenhum se não tiver talento. É uma das coisas principais de quem quer fazer uma escola de samba… A vida já é uma escola, e o samba também é uma escola, onde você aprende os procedimentos, para saber se expressar diante das pessoas, respeitosamente, então eu me orgulho da minha trajetória e de fazer todo o possível pra que essa história seja contada. Gosto de ser um cara do bem, me orgulho de ser um sambista do bem. E é a velha guarda do samba que traz isso adiante, esse sacrifício. O samba é uma profissão de guerreiros. Tem que ter vontade de ser sambista, porque se for ser sambista sem nenhuma vontade também não vai a lugar nenhum.

Eu não sou carioca, sou de Minas Gerais – Leopoldina, Minas Gerais – e fui morar no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, ainda criança, com 5 anos. Ali tinha uma escola de samba e com 14 anos eu concorri pela primeira vez, e não é que eu ganhei? Não é que eu tirei nota 10? Minha primeira nota 10… E aí eu descobri realmente que tinha talento para aquilo.

Morei em Botafogo também, participei do bloco Foliões de Botafogo. Era a maior ala de compositores de qualquer agremiação. É! Seus componentes foram pessoas ilustres, todos tinham brasões: Geraldo Babão, Anescar, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Mauro Duarte, Noca, Walter Alfaiate, Niltinho Tristeza, Adélcio de Carvalho, Cachinê. Era, assim, uma ala de compositores de deixar todo mundo orgulhoso. Tinha que ter interesse da mídia em mostrar isso, para a jovem guarda que está aí saber que numa ocasião, em tempos idos, existiu um grupo desses, que agora é escola de samba. Aliás, foi a pior coisa que eles fizeram, transformar aquela família em escola de samba. Como escola de samba eles não… Não acontecem. Escola de samba tem enredo, tem alegorias, tantas coisas, tem quesitos que vão ser apresentados no desfile, e o bloco não, era só a alegria e a motivação, cantavam uma porção de sambas lindíssimos…

Tristeza, por favor vá embora…

Era de lá. Foram tantos sambas lindos, que aconteciam ali e depois iam pro disco, e quando virou escola de samba, sumiu, foi por água abaixo. Agora tem um projeto, em Botafogo, para que volte novamente o bloco Foliões de Botafogo, e vamos tentar fazer uma nova ala de compositores, convocando grandes compositores, para reviver essa grande escola. A história do samba é linda, é cheia de idéias e amizades, coisas de pessoas do bem que têm essa capacidade de captar isso, colocar isso em prática.

Antes de eu ir para a Portela, fui morar em São Cristóvão, com meu irmão mais velho, que tinha uma casinha lá. E lá tinha a comunidade do Tuiuti. Lá é que eu comecei ser feliz, porque conheci a minha esposa, a Dona Conceição, e já estamos com 55 anos de casa. Ela é uma parceira, companheira da melhor qualidade, que sempre me ajudou; eu agradeço, deveras, a Dona Conceição, por ser esse homem consciente, esse chefe de família, essa pessoa que respeita a família primeiramente e os companheiros, os parceiros. Nós tivemos quatro filhos lá e agora a família está crescendo, já tenho seis netos, bisnetos e coisa e tal. Mas lá existiam três escolas de samba: Paraíso das Baianas, Unidos do Tuiuti e uma agremiação chamada… Brotinhos. Aí eu me reuni com a rapaziada:

– Ô, cara, por que três agremiações num lugar só?

Igual ao que acontecia no Salgueiro, na Serrinha… Mas se fizesse uma só, ficava fortalecida e a comunidade não se dividia. Assim fizemos, em 1955, e sou um dos fundadores do Paraíso do Tuiuti. Essa agremiação me deu muita alegria, fui ganhador de muito samba-enredo lá.

Naquele tempo, aqui no Rio de Janeiro, tinha a Festa da Penha, no mês de outubro, e cada agremiação montava a sua barraca. Infelizmente acabou, mas era uma grande festa… Deveriam voltar essas coisas boas, não é? Precisava progredir, mas preservando. Não custa nada, mas as autoridades, infelizmente, não têm essa capacidade de reconhecer que a cultura é uma coisa muito importante para qualquer povo. E preservar as coisas culturais, não só do Rio, mas desse país, é importantíssimo para as novas gerações. O novo Brasil, essa juventude que está aí, que serão os Nocas de amanhã, os Monarcos, os Nelsons Sargentos…

Numa Festa da Penha, um ano desses, o Paulinho da Viola passou na barraca – a comunidade ia toda para a barraca da escola, era uma espécie de um piquenique, sob a égide do samba. Paulinho então passou lá e eu estava cantando o samba que ele tinha ganhado na Portela em 1965. Só fez um, ganhou um e a escola foi campeã e ele nunca mais fez samba-enredo para disputar. Então, eu estava lá cantando e ele aí parou, ficou me olhando – eu já trabalhava na feira, inclusive a mãe dele, Dona Paulina, era minha cliente. Ele foi se chegando, com o Chiquinho, o irmão:

– Oi, você não é o… Aquele… Noca, lá da feira?

– Sou eu merrmo!

– Quê que tá fazendo aí?

– Aqui é minha comunidade, o Tuiuti, rapá.

– Puxa vida, só tem samba bonito, tava ali de longe, escutando… Agora, como é que você aprendeu esse… Esse samba aí, lá da Portela?

– Primeiro, eu adoro a Portela. E tem um feirante amigo meu, que tá aqui também, chamado Matraca. Ele é diretor de harmonia lá da Portela. Ele me ensinou esse samba e nós estamos cantando, em homenagem à Portela e agora a você, que tá chegando aqui agora. Rapaziada, o Paulinho da Viola tá aqui!

Ele novinho… Era Memórias de um Sargento de Milícias:

Era nos tempos do Rei, quando aqui chegou
Um modesto casal, feliz pelo recente amor
Leonardo…

Um samba lindíssimo esse do Paulinho, tinha 48 linhas e todo mundo cantava com uma alegria…. Agora os caras fazem samba com 22 linhas, mas ninguém canta mais porque não faz sentido. É rir pra não chorar. Não tem melodia, não tem sentido, não tem poesia, não tem nada, aí só serve pro cara passar no desfile, depois na quarta-feira de cinzas, alguém pede:

– Canta o refrão do teu samba, da tua escola?

– Ih, rapaz, esqueci, não lembro!

Mas antigamente não era assim. E virei amigo do Paulinho, não é? Então, nessa época a Portela tinha a maior ala de compositores e as pessoas indicavam pro Seu Natal:

– Seu Natal, no lugar tal tem um grande sambista, lá, compositor maravilhoso!

E Seu Natal:

– Manda buscar, lá, pra Portela, trazer pra nossa Academia…

O Paulinho ia fazer a peça Carnaval para Principiantes com Paulo José, Dina Sfat, inclusive o Élton Medeiros estava. Aí, como sempre toquei um violãozinho razoavelmente bem, ele me chamou para tocar violão na peça, com grandes sambistas – Mauro Duarte também estava, e outros grandes sambistas, inclusive do Tuiuti. Então, fizemos essa peça em 1966, aí depois o Paulinho, conversando com o Seu Natal, falando das coisas lá da Portela… O violonista era o Jorge do Violão, mas ele adoeceu, ou coisa parecida, e o Paulinho falou:

– Tem um cara lá no Tuiuti, rapaz, toca um violão bem! Compositor maravilhoso.

Aí o Paulinho veio e me convidou. Aí no dia que eu fui apresentado, lá na Portela, cheguei na Portelinha, lá em Oswaldo Cruz, na Estrada do Portela nos fundos, e o presidente da ala era o… Candeia. Mas antes o Paulinho me levou pro Seu Natal:

– Seu Natal, aqui, esse é o Noca.

– Ah, tá legal, e de onde é que esse menino é?

– É lá do Tuiuti.

– O que é isso?

Aí eu – ha! – eu falei:

– Tuiuti é uma comunidade onde tem uma escola que eu sou fundador, chamada Paraíso do Tuiuti.

– Mas você chama Noca do Tuiuti?

– Não, só Noca.

– Então de hoje em diante você vai ser o Noca da Portela.

O Candeia, que era o presidente da ala dos compositores, veio e disse:

– Pra fazer parte, você vai ter que provar que é compositor. Tô com tempo, até de noite, só vou sair daqui na hora que você fizer um samba. Toma, pega papel e caneta e vai lá.

Aí eu fui e meia hora depois eu tava de volta com dois sambas feitos.

– Cê já voltou?

– Tá aqui.

E mostrei os dois sambas pra ele, era Portela Querida e um outro, ele aí ficou me olhando, desconfiado, só de lembrar já começo a rir…

Eu sou portelense, e me sinto feliz
Quem fala mal da Portela não sabe o que diz

Aí, você imagina, começar logo com um samba desses, louvando a escola? Depois disso eu fui fazer meu primeiro samba-enredo só dois anos depois, em 1968. Seu Natal escutou e disse:

– É esse mesmo, nem precisa fazer disputa.

Seu Natal metia medo em todo mundo, mas assim mesmo eu pedi que a disputa fosse feita normalmente, porque achava aquilo injusto, não é? Seu Natal ficou muito contrariado:

– Ó, se você perder na quadra, com o samba, você vai ser responsável pela derrota da Portela!

– Quê isso?

Nessa época eu já morava lá em São Cristóvão. Aí o Cabana, que era compositor do samba concorrente, chegou, alugou dois ônibus, encheu a quadra lá da Portela, deu dinheiro a eles… Quando nós chegamos não tinha nada, não tinha banda pra entrar, só entramos os compositores. Aí tomamos um massacre na quadra que eu nunca tinha visto aquilo. A quadra inteira cantou o samba deles e o nosso perdeu, do jeito que o Seu Natal tinha previsto. Eu nem queria voltar lá, com medo do Seu Natal. Mas aí eu tinha feito o samba Portela Querida… Depois de um tempo começou a tocar na rádio, virou primeiro lugar na parada, e no mesmo ano o Paulinho da Viola lançou Foi um rio que passou em minha vida. Então, a Portela com duas músicas na parada…. Seu Natal ficou feliz e acabou passando. Essa é uma das alegrias, mais alegrias que tristezas, que eu tive. E essa é a história da minha ida para a Portela.

Depois disso… O samba Portela Querida, por exemplo, é um samba de quadra. Infelizmente não está mais presente nas escolas essa tradição. Samba de quadra era uma aprendizagem pro cara ser realmente um grande compositor. Tanto é que grandes sambas da Portela, que foram gravados pela Beth Carvalho, pela Alcione, pelo Paulinho da Viola, pelo Martinho da Vila, pelo Roberto Ribeiro, foram sambas de quadra da escola de samba. As pessoas esqueceram esse patrimônio, essa riqueza cultural que é o samba de quadra. Pra você fazer o samba-enredo, nas escolas dos tempos idos, você tinha que passar pelo samba de quadra. E através do samba de quadra, tinha conhecimentos da escola. Quase ninguém nem sabe disso na escola:

– Qual o orixá que comanda a sua bateria?

É…

– Qual o orixá que comanda a sua escola?

Os caras, os meninos de hoje não sabem isso. Eles fazem sambas agora que contrariam o orixá. Sabe o que acontece? O samba atravessa na avenida, a harmonia vai pro espaço, porque o cara não pediu licença, não sabe nem o orixá que comanda a bateria. Todas têm seu orixá, você sabe disso? Toda escola tem o seu orixá, toda agremiação, e você aprende essas coisas fazendo samba de quadra. Toda bateria tem o orixá e o compositor nem sabe disso, por não ter mais o samba de quadra, que era uma espécie de vestibular, não é? Agora não tem mais isso, então o cara entra na escola de samba totalmente perdido, aí quando ganha é um desastre na avenida, porque contrariou o orixá… A comunidade toda sabe quem comanda. E tem acontecido isso, por não ter essa preliminar para o compositor ter intimidade com a agremiação, entrar nessa família. O samba é coisa de família! Vem da Tia Ciata, aquela família dos primeiros sambas, com o Ismael, que fez do Estácio a primeira escola, uma família, e isso tem muito a ver com a negritude. O samba era negócio de negros, todos nós sabemos disso. E tinha seus rituais, suas mandingas ou coisas parecidas. A pessoa que entra num lance desses tem que ter um mínimo de conhecimento, para que possa desempenhar bem o seu papel nas suas composições, entendeu? Então, a história do samba tem coisas que têm que ser ditas, as pessoas têm que tomar conhecimento dessas coisas, mas pouca gente tem conhecimento.

O que mais eu posso dizer? A Velha Guarda da Portela, com todas as outras velhas guardas, é a maior referência. Porque a intenção dessa Velha Guarda foi mostrar os grandes compositores da Portela que não tinham oportunidade de se mostrar. O Paulinho da Viola, que é o patrono, começou a juntar os grandes mestres. Eu aprendi muito com a Velha Guarda, quando eu cheguei lá estavam se organizando, então eu tive a honra, o prazer e a felicidade de conhecê-los no auge da sua força de compor. Eu aprendi muito, virei – modéstia à parte – um compositor consagrado, até porque eu prestava atenção, e aprendi realmente, com Chico Santana, Alberto Lonato, Manacéa, Monarco, Casquinha, e tantos outros da Velha Guarda, que me ensinaram bastante. Serei eternamente agradecido a eles. Eu mesmo não participo dos shows da Velha Guarda da Portela, mas é claro que estou entre os compositores que têm história na escola.  O meu negócio é sozinho, se eu fosse para a Velha Guarda, seria pelo ideal. O Monarco me acha muito novo, não quer me passar o bastão. Mas eu também trabalho pela escola, levo o nome dela para frente.

Surgiram outras Velhas Guardas, mas, por exemplo, na Mangueira, não fizeram a Velha Guarda que deveria ser feita, com Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Xangô, Darcy da Mangueira, que já se foram. Também no Salgueiro não formaram uma Velha Guarda com Anescar, Geraldo Babão, Noel Rosa de Oliveira, Zuzuca, e tantos outros. Eles não conseguiram formar essa Velha Guarda que seria a referência legítima da escola. Com exceção da Velha Guarda do Império, que realmente é formada por compositores – o Aluizio Machado, o Ivan Milanez, compositores realmente – a Velha Guarda das outras escolas de samba é denominada Velha Guarda show: são músicos, mas aí não tem referência, é outra coisa. E a Velha Guarda da Portela é o espelho, é a referência, como a do Império também, agora. Até hoje, a Velha Guarda da Portela, sem desfazer das demais, é a mais conceituada, que ainda tem lá compositores como o Monarco, o Casquinha, estava agora vendo o Serginho Procópio, do cavaco, todos compositores ainda representantes do bom elenco de grandes compositores da Portela.

Mas está começando a ficar difícil, os grandes compositores estão falecendo e a gente está, assim, sem opção, sem saber como é que vamos dar continuidade a isso. Por isso é que vem a preocupação de formar grandes compositores. Nós – eu, Monarco, Casquinha – nos preocupamos com essa falta, estamos felizes com o Serginho, filho do Osmar do Cavaco, e outros compositores que estão agora lá na Velha Guarda. São meninos que a gente tem que incentivar e prestigiar, pra que eles se tornem também grandes compositores, como nós somos. Ali parecia uma Academia, só entrava outro quando morria um componente, existia regulamento, mas agora a gente está começando a se preocupar porque não estão aparecendo sucessores à altura da história que esses grandes mestres formavam.

Os grandes compositores eram revelados pelo samba de quadra, que acabou. Então a juventude, a jovem guarda do samba não tem referência. Eu, quando cheguei na Portela, tive que bater continência pra mais de vinte – hoje quem entra na escola não bate continência pro Noca, pro Monarco. Entende? Chegam, como se diz, acabaram de subir no ônibus e já vão querendo sentar perto da janela. É! E ainda tiram onda:

– Eu ganhei do Noca!

– Ganhei do Monarco!

Ao invés de dizer:

– Pô, tenho o maior orgulho, disputei uma final com Seu Noca, com Seu Monarco, e eu ganhei, mas tenho que respeitar a obra deles.

Não, eles ficam com marra. Ainda tem alguns que dizem que a gente não está com nada, já era, já fomos, e coisa e tal, somos do passado, não do presente. Porque eles não aprenderam que tem um samba de quadra, onde eles têm de saber que existe orixá, que comanda a bateria. Isso são coisas de… Negritude, porra! Sem preconceito de cor – o samba é de todos, do branco, do preto, do mulato, do amarelo – agora, tem que ter talento. Tem que ter sabedoria pra compor um bom samba, tem que ter autocrítica, porque antigamente não tinha jurado. Hoje eles colocam o jurado para escolher o samba, já com a nota dada, o cara senta ali fazendo papel de boneco, nas escolas de samba atuais. Já vem com o presidente falando assim:

– O samba que tem que ganhar é esse.

Aí você vai lá, faz o papel de palhaço… Antigamente era o contrário, o compositor chegava a dizer pro presidente:

– Não, o melhor samba é do fulano. Eu tenho amor à minha escola, eu quero o bem da minha escola. Meu samba é bom, mas o do fulano de tal é melhor.

Era assim. Aí ficam esses sambas que todo mundo canta até hoje, não é? Memoráveis sambas. Os deles não… É assim que a banda toca. Isso me deixa muito preocupado. Tem que voltar imediatamente o samba de quadra. Ontem, no festival de samba de quadra, escutamos sambas lindíssimos, bem feitos, com letra, com poesia, com… E a maioria dos compositores era de escola de samba! A Portela?Passou o rodo! Ganhou o primeiro, o segundo e o terceiro. Onde tinha dinheiro, a Portela levou tudo. Só tinha prêmio pra três, os três foram da Portela, e o presidente tem que tomar conhecimento disso, as pessoas da escola:

– Tá vendo, samba de quadra, os caras foram lá, raparam tudo!

E a gente jogando esse tesouro fora… Entendeu?

Se existe ruptura entre a Diretoria e a velha guarda da escola? Em todas elas! A velha guarda não representa mais nada para a escola de samba. As velhas guardas não são escutadas, não têm direito a opinião. Isso é um absurdo, é perigosíssimo, porque vai virar só negócio de Sapucaí, acabou ali e não tem mais nada, vai ter que trocar o nome. Colocar S/A, como fez o samba do Império. Sociedade Anônima. Não é uma escola de samba? O nome é escola de samba. Escola, quer dizer, é o lugar onde você aprende, não é verdade? Hã! Como é que você não aprende mais nada, você já entra, cai de pára-quedas, se diz compositor, você não é contestado, você não é jurado, você não é obrigado a dar demonstração, realmente, de que tem talento pra exercer essa profissão de compositor… Então, não é mais escola de samba. Essas coisas têm que ser faladas. Infelizmente a Globo, quando chama os caras lá, não chama pessoas com essa coragem, com essa sabedoria, eles não fazem isso, eles levam os caras lá, sem nenhum conhecimento de causa… Então, reclamam:

– Ah, escola de samba não tem mais!

E os garotos:

– Pô, o quê que eu vou fazer na escola de samba? Eu vou pro meu funk lá, que lá estamos unidos!

E nós vamos perdendo essa essência do grande compositor, e daqui a dez, vinte anos, não tem mais representante digno.

Dificilmente, sem base, o cara avança. Pra tudo na vida tem que ter base, até pra construir uma família! Mas tem que saber o que é uma família, pra poder administrar essa família, não é? Ensinamento, colocar o amor diante de todas as coisas. Se você chegar no escuro, aí… Impor uma coisa que não existe, se você não aprendeu o básico, como é que pode? Se não tiver o básico, como é que pode dizer que é alguma coisa? Como é que eu vou dizer que eu sou um intelectual, se eu não tive essa base? Eu não sou um intelectual, eu sou uma pessoa que tem sabedoria, eu sou uma pessoa politizada, a escola da vida me deu ensinamentos extraordinários, entende? Eu posso debater e dialogar com qualquer pessoa que chegar e, modéstia à parte, me sair bem. Mas eu tive um ensinamento, eu tive escola. E a escola de samba ensina à beça, inclusive a compor. A maioria dos sambistas nasceru com o dom de compor, mas tem que fazer esse básico, e esse básico é na escola de samba.

Lógico, tem que harmonizar a letra! Ter noção de rimas, e se possível rimas ricas. Tem que ter uma noção musical, pra fazer uma melodia correta, para não criar um choque entre duas notas, entendeu? A poesia bem rimada, com sabedoria; precisa saber usar as palavras. Como ensinava o meu mestre Ataulfo Alves:

– Noca, primeiramente, pra fazer um bom samba, você tem que descobrir uma frase que todo mundo quer expressar, mas não sabe como. Um exemplo: “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia é que era mulher de verdade”. O samba todinho tá nisso, nessa frase só.

– É mesmo, mestre, puxa vida, que sabedoria.

O Noel Rosa falava coisas bonitas, apesar de ser um intelectual, mas era um cara popular, o povo entendia o que ele dizia, hein? Aquilo ele não aprendeu na faculdade, não! Aquilo ele aprendeu na escola da vida. Saber usar as palavras, saber usar a divisão, saber um assunto que interessa a todos; a música não é nada mais do que um assunto que interessa a todos. Quer ver um prato cheio, aí? Falar sobre o mensalão do DEM. Quer prato melhor de que esse? Hein? Dizer que tem grana na meia, na calcinha e na cueca… Ha-ha! É só você dizer:

– Uma grande idéia: Eureka!

Pronto, já começou, já começou a valer:

– Tem grana nessa meia, na calcinha e na cueca.

Pronto. Entendeu? Então música é uma coisa de jogo de palavras, você joga com as palavras, aí depois você vai ter que ver a melodia, então você tem que ter um mínimo de noção melódica. Depois: você tem que correr atrás das rimas, se possível for, das rimas ricas, palavras pouco usadas. Vai lá no dicionário, e tal, e vê essa palavra, o quê que significa, aí você vai achar palavras bonitas, que dão o mesmo sentido, e vai chamar atenção. Tem palavras que a maioria do povo nem sabe que existe, mas vai olhar no dicionário e tem. Apesar de que os compositores de dicionário mesmo são os da elite, que o compositor de samba cria palavras. Cria verbos. Eu fiz um verbo pro Cacique de Ramos:

Olha, meu amor, esquece a dor…

Vou caciquear

Sou caciqueando, são verbos que a gente cria. Essa palavra caciqueando não existia, mas virou verbo: vou caciquear, você caciqueia, ele caciqueia, e por aí afora. Eu fui campeão cinco anos lá no Cacique, garota! Disputei seis anos, ganhei cinco. Agora é que eu não tenho ido, porque o Cacique perdeu aquela razão de ser, não é? O Cacique saía com 10 mil caciqueandos pela rua, depois foi caindo, foi caindo, aí Beth Carvalho levantou o Cacique, através do pagode, e parece que eles estão se recuperando novamente, correndo atrás da tradição, fazendo isso que está faltando, que é samba de quadra. Quarta-feira, está tendo samba de quadra lá no Cacique. Quer dizer que eles estão resgatando aquele básico.

Modéstia à parte, além de ser um cara politizado, um compositor politizado, eu sou um cara preocupado com o futuro do samba. Hoje eu tenho coisas, essa casa é minha, comprei. Foi o samba que me deu. Tudo isso que está aqui, essa família grande, essa coisa toda, tudo isso, esses troféus, essas medalhas, está faltando espaço na parede. Eu não posso ser ingrato ao samba, sabia? Eu não posso virar as costas pro samba, em momento algum. E tem que lutar, apesar das ingratidões, da falta de respeito, das sacanagens que existem, eu não posso virar as costas, tudo que eu consegui na vida foi o samba que me deu, entendeu? O sambista precisa ser, realmente, um defensor do samba, e primeiramente tem que ser politizado. A política está em todos os lugares das nossas vidas, não é? Dentro da sua casa, no seu trabalho, na condução que você pega, tudo… No ar que você respira tem política, e sem inspiração você não canta. Então, essas coisas infelizmente faltam ao sambista, a consciência do que o samba representa pra todos nós. Eu costumo dizer, estou com 77 anos, puxa, mas bem de saúde. Se o samba alimenta o meu corpo e a minha alma, eu sou um cara saudável. Dificilmente eu vou ao médico, quando eu vou lá, ele diz assim:

– Tá fazendo o quê aqui, rapaz? Abre vaga pra outro, você tá ótimo!

Eu digo:

– Doutor, você não tá me enganando não?

– Não, que nada, rapaz, você tá beleza pura, vai embora!

Então isso é uma felicidade, a saúde é uma coisa preciosíssima do ser humano. Não adianta você ser milionário, riquíssimo, coisa e tal, e faltar o principal, que é a saúde.

A casa do samba, eu estou conseguindo isso, com o Presidente da República. Eu fiz músicas para as duas campanhas do Lula. No fim do ano passado, Dona Marisa Letícia fez uma surpresa no aniversário dele. Aí me convidaram, eu cantei um monte de músicas e no fim, quando me apresentei, o Lula ficou emocionado. Depois passamos mais de três horas conversando.

– Noca, sabe que a gente até que é parecido? Eu vim também de longe, no pau-de-arara, o caminhão quase tombou…

Aí eu falei assim:

– É, Presidente. A única diferença é que eu vim de Leopoldina andando quase o caminho todo a pé!

Aí ele perguntou como estava o samba. Eu falei que não estava muito bom, porque o Governador Sérgio Cabral não me atendia. E o que eu queria era pedir para construir a casa do samba. Na mesma hora o homem passou a mão no telefone, aquele direto, assim, ligou pro Cabral, dizendo que eu não estava conseguindo ser atendido. O Cabral disse que não recebeu nenhum recado, mas aí o Lula passou pra mim, e eu mandei na lata:

– Pode demitir a secretária e o assessor, porque eu tô deixando recado e não recebo resposta.

Eu queria estar lá do outro lado pra ver a cara do Cabral! No dia seguinte tocou o telefone, queriam marcar uma audiência, mas disseram que ele não podia atender.

O Prefeito Eduardo Paes também levou esporro:

– Poxa, Noca, podia me ligar direto, mas falar com o Presidente?

– Eu tentei, mas ninguém me atendeu…

Aí eu consegui um pouco mais de R$ 80 mil para organizar apresentações de samba no Terreirão e na Lapa. É pouco! Quando vem o gringo pagam mais de um milhão! Eu aí fiquei de pagar R$ 500,00 para cada um que cantasse algumas músicas. O negócio é que espalharam um boato que eu tinha R$ 600 mil na mão e estava repassando só R$ 500 para cada um. É de uma ignorância isso! Agora estou até querendo desistir e devolver o dinheiro, é mais fácil.

A casa eu não quero dizer que é minha, não quero essa casa pra mim, mas eu falei brincando com o Presidente, ele perguntou:

– Como é que… E o samba?

Eu digo:

– Presidente, o samba não tem casa.

– Como assim?

– Não, é que o samba mora andando.

Ha-ha! E ele:

– O quê? Ô Noca, o quê?

– Presidente, o samba mora andando.

A gente conversando e ele na hora ligou pro Sérgio Cabral:

– O sambista vai ter.

Eu estou lutando pelo sonho do Cartola, que eu tive o privilégio de ser amigo dele e trabalhar com ele. Também o Ataulfo, o Nelson Cavaquinho, o Candeia, todos os sambistas do passado sonhavam que nós teríamos um dia uma casa, onde nós pudéssemos nos reunir. Fazer os nossos velórios, fazer nossas festas de aniversário, fazer o samba ser forte e unido. Parcerias, reivindicações, para isso tudo tem que ter uma casa… Você está me entrevistando aqui, dentro da minha casa, você não pode fazer isso na rua, andando, não pode, tem que dar uma parada, coisa e tal. Eu mandei inclusive um e-mail pro Presidente, mandei: “Presidente, obrigado, em nome do samba, o atendimento do Governador foi… O melhor possível, ele disse que vai se empenhar pro samba parar de morar andando, vai ter a sua casa, e é um compromisso que ele assumiu. Depois o senhor fortalece aí”. Duvido que ele já não tenha ligado, com aquela voz rouca, falando assim:

– Escuta aqui, companheiro Cabral, como é que tá a casa lá, do samba, do pessoal?

Ele cobra, com certeza ele cobra. Então, com isso, a minha missão já está cumprida, não precisa fazer mais nada pelo samba, eu entrego:

– Olha aí, a casa tá aí, é de vocês, fiquem aí agora, se organizem, reivindiquem uma rádio pra vocês aqui dentro, um canal de televisão, uma gravadora, um selo pra vocês poderem gravar as músicas de vocês, que eu já lavei minhas mãos, minha missão já está cumprida.

Claro que eu vou lá prestigiar, mas não quero ser dono de nada, não quero ser candidato a nada. Eu quero sim, que a História conte isso no futuro: “Existiu no ano tal um cidadão chamado Oswaldo Alves Pereira, mais conhecido como Noca da Portela, que a vida inteira foi de luta pelo bem-estar do sambista, pelo respeito que ele tem pelo sambista, pelas coisas que um sambista necessita”. Acho que esse vai ser o prêmio que eu vou ter na vida, realizar o sonho de muitos outros companheiros que se foram. Com toda a certeza, a torcida lá no alto está grande pra que isso aconteça realmente, está todo mundo:

– Até que enfim, chegou um cara consciente das nossas necessidades.

Está lá o Cartola comentando com o outro:

– Tá vendo, aquele menino? Olha lá, tá segurando a nossa bandeira, lá embaixo…

O pessoal antigamente se encontrava na Penha, mas acabaram com isso. Realmente é pra dispersar, isso é feito com intenção, com toda a certeza. Numa festa em que todos sambistas eram solidários, onde você encontrava nêgo da Mangueira, do Salgueiro, do Império, todo mundo se abraçava e contava novidade, comia no mesmo prato, bebia no mesmo copo, entende? E eles acabaram com isso. Então, precisa disso, de uma casa, para que nós possamos voltar a ter esse ajuntamento de pessoas de todas as escolas, de todas as cores, de todas as idades, e um se preocupando com o outro, não é?

O caso do Walter Alfaiate, por exemplo. O Walter está no hospital, com a maior dificuldade pra pagar as despesas hospitalares que ele teve e ainda está tendo. É um desespero danado, a filha dele desesperada, coisa e tal… Nós, nessa casa, temos que ter uma conta bancária nossa, uma caixinha, onde cada um botasse um dinheirinho do seu show, pra quando acontecesse isso… Mas está aí o sambista sendo enterrado como indigente. Precisa reivindicar a aposentadoria, como nós que estivemos em Brasília agora, eu Nelson Sargento, Délcio Carvalho, Wilson Moreira, Agenor de Oliveira e outros, as pessoas antigas, as cantoras também, pedimos uma sessão no Senado, para reivindicar, foram todos os senadores.

Eu, graças a Deus, sou malandro, sempre paguei direitinho, coisa e tal, sou organizado. Minha assistência médica, pago todo mês, meu INPS não pago mais… Hoje eu estou aposentado, eu posso ficar sentadinho aqui, sem fazer nada pra ninguém, e tranqüilo, quando eu subir pro segundo andar, furar a fila, está tudo certo aqui, entendeu comadre? Não vou querer vaquinha pra me enterrar, pra pagar os custos médicos. Mas a maioria dos sambistas, infelizmente, por não ter essas coisas de um alertar o outro, de um conversar com o outro:

– Ô cumpadre, como é que tá a sua aposentadoria? Ô, meu irmão, é melhor… Tu já tá… O sucesso não dura eternamente, a saúde também não é eterna, só Deus tem esse poder, nós estamos sempre numa luta aí…

Então vamos começar, e se tiver uma casa dessas, também vai ter disco, vai poder colocar no roteiro da Riotur. Lá na Inglaterra, lá em Portugal, no mundo inteiro, através do governo, o pessoal tem que saber que tem uma casa de samba aqui, tradicional. Bota a casa do samba aí muito longe:

– Quem é que freqüenta a casa?

– Monarco, Noca, Délcio Carvalho, Nelson Sargento, todo mundo está lá!

É um atrativo, não é verdade? Então, como é que se faz isso? Se organizando. Tendo consciência do que representa o samba pra todos nós. Mas o pior dessas coisas todas, quando você consegue uma oportunidade como eu consegui, rapaz, isso deixa a gente indignado, eu não vou machucar meu coração por causa disso, mas, jogar uma oportunidade de ouro dessas fora? Eu consegui recurso pra fazer um concurso novo e o pessoal começou a dizer que eu ia levar por fora…  É de uma burrice do tamanho de um elefante, de uma baleia! São cabeças totalmente sem nenhuma noção do que é o trabalho. Normalmente são pessoas recalcadas que saem falando isso, não são pessoas que têm consciência do que representa uma coisa dessas. Mas a gente vai continuar lutando, o velho Noca é filho de Xangô. Xangô é justiceiro e não brinca em serviço – hã! É meu orixá, tem lá na Portela: São Sebastião, Ogum, o Império é o quê? É Ogum. São Jorge… Não estou certo? Os caras têm que bater tambor, antes de bater o pé tem que bater tambor, pra respeitar as entidades que tem na escola.

Um dia a Clara Nunes encomendou pro Candeia um samba que falasse da alma feminina. Ele aí fez a melodia de Mil réis e me telefonou:

– Ô Noca, esse negócio de alma feminina eu tô fora. Você bota a letra, que o meu lado feminino é sapatão!

Eu ainda falei:

– Poxa, mas você tem feminino até no nome…

– É, mas você também tem, e o seu é tão poderoso quanto o masculino.

E mandou a melodia. Eu aí fiz a letra:

Hoje tu voltas aqui, com o semblante a sorrir

Esperando que eu te receba e te dê muitos beijos de amor

Esquecendo, afinal, o que entre nós se passou

Foi você quem errou…

É um samba lindo mesmo. Clara acabou nem gravando, mas aí o Candeia decidiu gravar e mudou um pouquinho a letra: em vez de ser a mulher “sentida” falando, ele mudou para “perdida”:

Tentarei te esquecer, perdida

Perdida, porque não honraste o homem…

Pra ele era isso:

– Se ficasse feminino eu não ia conseguir assinar.

O Candeia era tão machão que pegava as prostitutas, levava para a cadeia, botava todas nuas e jogava jato de água fria nelas. Saíam todas correndo quando ele chegava. Candeia era muito engajado também:

Negro, acorda, é hora de acordar…

… todas as raças já foram escravas também

Deixa de ser rei só na folia…

Esse era outro que se preocupava muito com a situação do sambista, procurava resistir. A Quilombo, escola de samba que ele fundou, com Nei Lopes e outros, era isso, para proteger o sambista, para proteger a cultura do negro. Candeia se engajava politicamente, e eu participava da escola também.

É isso, a vida do sambista é riquíssima. Alguém que nunca estudou também pode ensinar muita coisa… Nelson Cavaquinho, por exemplo, fez até o terceiro ano primário e olhe lá, porque ninguém podia completar nem o segundo grau, porque não tinha dinheiro, isso era para a pessoa da classe média, e todos nós vínhamos da classe baixa. E Deus deu esse privilégio, da inteligência, da sabedoria, ao sambista, e são missões. Eu digo que estou cumprindo uma missão, essa coisa que vem lá do alto, é uma dádiva, não só para mim, também para tantos outros que tiveram a dádiva de ser mensageiros do homem lá em cima, não é? Pra ensinar, ser professor.

Eu tenho amigos professores, médicos, que dizem que nós, que eu, sou professor da vida, eu sei mais do que ele, que estudou e fez faculdade nos Estados Unidos. Tem um professor lá no Fundão, o Doutor Roberto Medronho, um dos melhores professores de lá, que reúne os alunos e diz assim, do meu lado:

– Escuta aqui, esse aqui é o Seu Noca da Portela. Eu quero que vocês conheçam, porque é o meu professor. Eu sou professor de vocês, mas…

Aí os caras ficam sem saber:

– Professor de quê?

– De vida. Hoje eu ensino, mas muita coisa eu aprendi que ele me ensinou, e que não está nos livros, está nas coisas da vida, nas histórias. Eu passo esse ensinamento a vocês e vocês vão aproveitar pro futuro, viu?

Aí eu digo:

– Pô, Professor, não faça isso!

– Não, mas eu tô sendo sincero, eu não posso mentir pros meus alunos, eu aprendi muito contigo, poxa!

Ele é um dos caras mais importantes, está sempre na televisão, tem um programa na Rádio Globo, e é meu parceiro de música, do bloco Simpatia É Quase Amor. Ganhamos oito sambas no Simpatia, ganhamos seis no Barbas… É compositor, meu amigo, e através da música nós nos tornamos amigos, confidentes e parceiros, não só na música, mas fora da música. Todo ano eu faço um grande show pros alunos dele, lá no Fundão, e os alunos ficam, assim, felizes, dizendo:

– Pô, Seu Noca, o Doutor, o Professor Medronho tem um respeito, uma admiração pelo senhor, que o senhor nem imagina, e passa as coisas que ele aprendeu com o senhor pra gente…

Ele bota em matéria! Samba, por exemplo, ele bota em matéria, entendeu? Mostra lá um samba com o Noca:

– Olha só a poesia, a diferença desse samba pra esse, esse é do Noca. Aqui, olha a letra, vamos aprender, vamos saber o que é a poesia, o que é jogar com as palavras…

São tantos ensinamentos, não é? Ele tira proveito disso, coloca até tema de família, política. As coisas que acontecem com a gente aí, nessa caminhada, são coisas muito importantes de passar para as novas gerações, é por isso que eu quero lutar pra que o samba de quadra volte em todas as escolas de samba.

Quando eu fui Secretário de Cultura do Estado, eu trouxe de volta o samba de quadra, fiz um concurso em todas as escolas de samba, nas quadras, e dei prêmio, por isso quando vem um dinheiro desses, na época eu gastei R$ 200 e poucos mil, eu tirei como Lei de Incentivo, patrocínio, para premiar os cinco primeiros, e todo mundo ganhou. Teve escola que as pessoas vieram:

– Puxa, Seu Noca, podia ser só um dinheiro pro primeiro, mas o senhor deu pros cinco!

Lá na Mocidade, por exemplo, o compositor que ganhou era um senhor que há 30 anos não fazia, nunca mais tinha feito samba de quadra, e quando teve essa oportunidade fez um samba belíssimo. Aí ele falou:

– Puxa, Seu Noca, o senhor não sabe a alegria que o senhor está me dando, eu ficava pensando dia e noite, “puxa, nunca mais fizeram samba de quadra”, e pra mim deu oportunidade de mostrar o meu talento…

É assim mesmo, o cara chorando, era época de final de ano, todo mundo com seu dinheirinho.

– Seu Noca, e tem mais: sabe há quantos anos eu não faço o Natal pra minha família? Que não tem uma castanha na mesa? Uns oito anos, que eu não tenho dinheiro, e este ano vai ter um Natal na minha casa, pros meus netos, meus filhos.

O campeão na época levava R$ 5 mil.

– Seu Noca, puxa vida, eu vou endireitar meu barraquinho, vou fazer o Natal… Abaixo de Deus, só o senhor.

Eu digo:

– Não faça isso, rapaz!

– Não, precisou o senhor ir pra uma Secretaria pra a gente ter uma oportunidade de mostrar isso, Seu Noca. Esse disco aqui, que o senhor está me dando, aqui, vai ser a festa do meu Natal esse ano!

Coisas assim, de deixar a sua sensibilidade totalmente destroçada, você fazer a felicidade das pessoas, e assim foi em todas as escolas. E teve também a rapaziada nova que ganhou, na Viradouro, na Unidos da Tijuca, um dia eu estava chegando no aeroporto, o cara chegou:

– Seu Noca, eu tô indo lá pra Belo Horizonte!

Ele é músico, compositor de Rio das Ostras.

– Seu Noca, através daquele concurso que o senhor fez, o senhor abriu as portas, eu tô mostrando agora meu talento, tô viajando hoje!

– Mas, o que é isso? Você é de que escola, rapaz?

– Unidos da Tijuca, quem ganhou o samba lá fui eu!

– Poxa vida, você me desculpa, mas é tanta gente, poxa, meus parabéns!

– Não, eu é que tenho que dar os parabéns pro senhor, o senhor me deu uma oportunidade, tô indo agora pra Belo Horizonte! Vou lá, tô compondo, tô fazendo, me deu vontade de compor depois daquilo, ganhei, aí consegui mostrar minhas músicas, já gravei música à beça.

E eu digo:

– Meu Deus, que é isso, rapaz!

– É, Seu Noca, e só me descobriram porque eu ganhei o concurso.

Aí você fica pensando: por que as pessoas que estão no poder não prestigiam essas pessoas? Por que as autoridades não prestigiam a comunidade pra descobrir talentos, por que as escolas de samba, que tinham uma mina de ouro, que era a Ala dos Compositores, não têm a iniciativa de descobrir novos talentos? Estão se acabando os grandes compositores. Os caras estão indo pra um samba desses, fácil de ganhar dinheiro, esquecendo que a poesia é que tem que prevalecer. A poesia, a coisa mais bela do mundo é a poesia do samba de verdade, a poesia pura, sem mistura. O cara não tem necessidade de ser um intelectual para fazer rimas ricas, e isso tem a ver com os governantes, eles têm que manter essa chama acesa, das coisas poéticas que o nosso Rio de Janeiro, que o Brasil todo tem, você anda por esse país afora e escuta.

Eu fui umas vezes em Teresina, pensei que lá não tinha samba. Cheguei lá, em cada esquina tinha uma roda de samba, sambas maravilhosos, e o desfile de escolas de samba deles tem alegorias que muita escola do Grupo de Acesso daqui não tem. Lá em Teresina! E a cultura deles é o samba, e a maioria do país não sabe. Belém do Pará tem o carimbó, a Bahia tem o axé, Pernambuco tem o frevo, Maranhão tem o bumba-meu-boi, Manaus tem, todos têm o seu ritmo próprio, e Piauí não tem.

Eu sou ídolo lá. É! A escola mais antiga, chamada Nossa Cara, tem 40 ou 50 anos, é a maior escola e nunca tinha ganhado um título, porque não tinha ala dos compositores, nem tinha compositor, tinha samba, mas samba-enredo não sabia fazer de jeito nenhum. Aí, fui fazer um show lá, inclusive foi com esse médico que eu falei, o Doutor Medronho, que diz que eu sou professor de vida dele. Chegando lá, os caras da escola de samba, o presidente da escola de samba, foram todos me receber no aeroporto, fizeram uma festa, aí o presidente da Nossa Cara me chama num canto:

– Poxa, Noca, nós fazemos tudo pra ganhar o Carnaval!

– Por que não ganharam ainda?

– Noca, falta o principal, que é o samba! Nossa ala dos compositores é formada só de intelectuais, eles fazem um samba com uma dificuldade danada! Botam palavras que o povo não sabe nem cantar! A língua fica presa!

E eu digo:

– É mesmo?

– Deveras, Noca! A maior alegoria é a nossa, a melhor alegoria, a melhor fantasia é a nossa, mas falta o principal, o samba.

É a escola da elite lá.

– E qual é o tema?

– Não, não é tema, não, é falar da Nossa Cara.

Eu digo:

– É merrmo, é? É só isso?

– É.

Aí eu fui pro hotel:

– Logo mais você vai lá que eu vou dar o samba pra você.

E fiz:

A Nossa Cara tem a cor da nossa raça

Que não disfarça tudo que esse povo é

Uma mistura de bravura e de bondade, apesar da tempestade

É um jequitibá de pé

O meu sentimento veste duas fantasias:

É Pierrô durante a noite

Arlequim durante o dia

A minha casa tem…

…tem arruda e tem magia

E o samba é companhia na alegria e na dor

Tem uma luz em frente ao quadro de Maria

Pois Jesus também foi feito do jeito que eu sou

Eu sou café, mandacaru e Raoni

Sou chimarrão, sou ouro em pó e bem-te-vi

Sou Pantanal e sou guerreiro desde 22 de abril

O criador me batizou: Brasil

Pronto, acabou o samba. Aí eles foram campeões. Eu estava com Monarco e Walter Alfaiate na Costa do Sauípe, que todo ano a gente faz show lá na competição de tênis, e daqui a pouco o celular fez esse barulho, esse toque de batucada que ele tem tcha-ca-tum-ba, e eu fui atender e o barulho de batuque continuou, aquela gritaria, e eu digo:

– O quê que é? Alô? Quem tá falando?

– Ô Noca! É aqui de Teresina!

– Mas o quê que houve? Morreu quem?

– Noca, fomos campeões!

– Quê isso, rapaz!

– Sério, Noca! Agora só falta você, onde você está?

– Na Costa do Sauípe, fazendo um show logo mais, pro Guga!

– Ô Noca, semana que vem, dá pra vocês darem um pulinho aqui?

– Vocês que sabem…

– Não, me dá seu nome aí que eu vou comprar uma passagem, você vem pra cá festejar! Afinal de contas, 50 anos sem ganhar nada, é brincadeira, né?

Luiz Carlos da Vila, antes de morrer, gravou esse samba[1]. Luiz Carlos da Vila, conheceu? Foi cedo, esse foi. Acho que tinha 50, 51 anos.


[1] Cor da minha raça (Noca da Portela, Toninho Nascimento e Tranka) é a faixa 3 do CD Uma festa no samba, de Luiz Carlos da Vila, lançado em 1997. [faixa 25 do CD anexo]

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