Sensação – Trem Brasil (1996)

Formado a partir das lendárias rodas de samba do Butiquim do Camisa, evento que ocorria no final dos anos 80, aos sábados, na quadra da Escola de Samba Camisa Verde e Branco o Grupo Sensação é um dos maiores expoentes do samba de São Paulo. Um grupo de pagode, formado por sambistas – não me pergunte a diferença agora, a famigerada questão é complexa para leigos, e tão simples para quem é do balacobabo, que chega a ser complicada, pode e deve ser papo pra outro chopp. Por hora, fiquemos com a definição do Excelente Zeca Pagodinho em entrevista de 1995 ao extinto programa Jô Soares Onze e Meia , “é a mesma coisa mas é diferente” –  o trabalho do Sensação evidencia bem essa “diferença na igualdade”.

Tido como expoente do “pagode 90” o grupo deixa claro uma diferença de estrutura harmônica e de enredo na construção da sua obra para os demais nomes daquela época. Particularmente acho que, no caso do Sensação, enquadrá-lo apenas no sistema “pagode 90” é minimizar a grandeza e a importância da obra e dos integrantes (todos são sumidades unânimes em seus respectivos instrumentos) para o samba, sem qualquer pré-conceito com o termo ou “movimento”, mas também pelo o grupo ser, de fato, maior que qualquer segmento datado, embora esteja incluso e seja nome recorrente deste “pagode 90”. Ele é, mas não é (só isso). É samba, mas é pagode; enfim, é igual mas é diferente.

Em 1996, o grupo já vinha de dois bem sucedidos discos, o inaugural “Mais uma Paixão” (1992) que presenteou o mundo do samba com sucessos como “Malas Prontas” (Noca da Portela/ Toninho Nascimento/Tranca), “Apelo” (Prateado), “Um dia” (Arlindo Cruz/Carica/Reinaldinho), “Resto de uma saudade” (Carica/Prateado), e também o clássico “Oyá” (Carica/Prateado). O segundo LP, “Canto Nacional” (1994), um disco de repertório avassalador e definitivo, traz destaques como “Coral de anjos” (Carica/Prateado/Dedé Paraíso), “Sacode/Já é Alvorada/ Na palma da mão” (Carica/Prateado/Luisinho SP) e a faixa título, o samba de protesto (uma das marcas fortes do grupo) “Canto Nacional” (Carica/Prateado/Luisinho SP) entre outros talvez menos populares, porém não menos interessantes.

Com os sucessos, o grupo recebeu o convite para fazer, o que seria o seu terceiro disco pela multinacional Continental (Warner Music), ainda sob o selo da Chic Show Five Star. O orçamento aprovado para o novo trabalho foi acima do convencional no gênero samba/pagode da época, o que proporcionou a feitura de um disco não só grande em tamanho (são 16 faixas na versão Compact Disc), mas grandioso em qualidade, com muitas horas de estúdio e a possibilidade de recursos de instrumentação e instrumentistas. A liberdade criativa conquistada com a consolidação dos dois trabalhos anteriores proporcionaram que o grupo do Bairro do Limão, juntamente com o produtor carioca Wilson Prateado, arriscassem seus maiores devaneios tanto em termos de arranjos como de composições, coisas que talvez fossem impossíveis de colocar em um trabalho inaugural ou, principalmente em um segundo disco que costuma ter o papel de catapulta ou âncora para a discografia da maioria dos artistas. Os pianos foram divididos entre Jota Moraes, músico habituado ao samba e pagode, e Luiz Avellar, pianista arranjador de nomes como Djavan, Gal Costa e Milton Nascimento. É de Luiz Avellar por exemplo, a Introdução de “Meu Sorriso” (Carica/ Prateado), feita de improviso como sugestão de arranjo, mas que ficou definitiva. Esta faixa, um dos maiores sucessos deste disco e consequentemente do grupo, é um samba que foge ao mais comum, pois começa em tom maior e chega ao refrão em tom menor, um exemplo da liberdade criativa, sobretudo do produtor Prateado e de Carica, principal compositor do grupo, alinhada às expectativas depositadas naquele trabalho, talvez o primeiro com metas comerciais.

“Meu Sorriso” é a segunda faixa do disco, a primeira é a avassaladora “Se o samba começar” um sucesso imediato. Partido-alto, como diria mestre Monarco, sem agrotóxico, arranjo de percussão pra “sambista orgânico” nenhum botar defeito, com prato e faca, garrafas, tamborins e agogôs o samba explode num refrão forte que rapidamente chegou às rodas de samba da época avisando que o “sangue que vem lá de Angola esquentou e eu não vou embora”. Outro partido-alto do disco é o pout-pourri “O pagode não pode parar/ Botando pilha/ Manaceia” três “sambas de quadra” do Camisa Verde e Branco, outra característica que ficou marcante no decorrer da obra do grupo que foi a inclusão dos sambas de terreiro do Camisa e de seus compositores; em “Manaceia” aparece Soró como co-autor, grande compositor da escola da Barra Funda.

O disco segue com “Desencontro” (Carica/Prateado) outro enorme sucesso radiofônico daquele ano e outro grande exemplo de experimentação da dupla Carica e Parateado em relação às modulações menos comuns. O samba começa lá em cima, na cabeça, o que seria um refrão para um samba comum, consagrando Marquinhos como um dos principais vocalistas do seguimento. “Trem Brasil” (Carica/Prateado) dá nome ao álbum e é sem dúvida uma das melhores músicas dos grupos da década de 90. Apesar de não ter feito sucesso, afinal nunca fora trabalhada em divulgação do grupo em shows e rádio. Ela vem ressurgindo 25 anos depois como grande joia rara perdida no repertório do Sensação por meio de memória afetiva dos que curtiram a época e curiosidade dos mais novos que vão rebuscar a obra do grupo. “Trem Brasil’ vem na continuidade das músicas de protesto do grupo, iniciadas com a anterior “Canto nacional” e seguidas por outras como “Crianças do Brasil” (Pra Gente se Encontrar de novo, 1997) e “Zumbi” (Brilho de Felicidade, 1998) em discos subsequentes. Uma analogia do país com uma locomotiva, com seus avanços a custo de retrocessos e o brasileiro como maquinista condutor. A letra que cita Henfil, José do Patrocínio, Pelé, Lupicínio Rodrigues, Gilberto Gil, Guaranis e Caiapós é um ijexá na sua concepção; porém, em liberdade plena de experimentos, aplica-se um banjo e um pagode no decorrer da faixa, sem deixar a divisão rítmica inicial de ijexá descarrilhar. Um destaque especial também para a bateria de Rick Batera “Lobisomem” que com seu chimbal faz as vezes da cadência da trajetória de um trem no decorrer da música e com pratos de ataque no final simulando o som de uma locomotiva em atrito com os trilhos de ferro enquanto um coro apoteótico chancela o mantra do brasileiro em tom de lamento, lamento em tom maior! Uma aula de arranjo conceitual do então jovem produtor Wilson Prateado.

“Louco Apaixonado” (Carica/Prateado/Paquera) também foi outro sucesso, esse nem tanto nas rádios mas nas rodas de samba caiu no gosto da rapaziada e principalmente dos pandeiristas que já ficavam ansiosos para dar aquele tapa no refrão à lá João do Pandeiro. Grande samba, com a marca romântica do Sensação. “Cara do Gol” (Carica/Prateado) é outro partido-alto com o selo de qualidade Camisa Verde e Branco. Diferente. No refrão e nos versos sem rima, uma introdução de solo de banjo (vejam só!) e um coro feminino no melhor estilo “As Gatas” traz toda a malandragem da Barra Funda daqueles “sambistas pagodeiros”. “Enchente” (Arlindo Cruz/Franco) é outra primazia deste repertório. Uma poesia branda e direta, linguagem típica do pagode daquele momento. porém com uma harmonia fantástica e rebuscada, diferente de tudo o que se fazia no mesmo pagode, naquele mesmo momento. No final da faixa, outro coro fantástico brilha em tom maior, dialogando com o fraseado do violão de 6 cordas, mais uma bela interpretação de Marquinhos.

Estranhamente o álbum lançado em LP contém apenas 12 músicas; enquanto o CD contém 16 faixas. Entre as que ficaram de fora do LP está “Paixão o que é isso?” (Sereno/André Renato/Isaias). Neste belo samba de salão o destaque vai para toda a ginga e swing empregados pelos solos de banjo que, em um trabalho convencional seriam feitos por bandolim, violão tenor ou mesmo cavaquinho, mas como estamos falando de Trem Brasil, o convencional não tem vez. O fraseado é simplesmente espetacular!

Completam o disco outras parcerias de Carica e Prateado como “Nossa Procura”, “Monalisa”, “Descobri o Mundo”, “Te fiz uma canção de amor” todas elas legadas ao lado B da obra do conjunto –  mas também pudera!, em um disco de 16 músicas seria impossível, por uma questão de tempo (naquela época a maioria dos artistas, principalmente os que tinham contrato com gravadora, fazia um disco a cada ano, no máximo a cada dois) executar o álbum na íntegra. Mas todas elas interessantíssimas, com belíssimos arranjos de cordas, assim como todas as faixas do LP.

Trem Brasil foi a dose perfeita entre a batucada pesada de Reinaldinho, João, Cogumelo e Gazú (talvez a mais impactante depois do Fundo de Quintal) com a musicalidade de Carica, a leveza da interpretação do Marquinhos e a sensibilidade e arrojo dos arranjos de Prateado.

A capa do disco é um caso a parte. Pra mim, uma das mais belas capas do samba. Um piano numa favela dá a pinta, em uma só imagem, do conteúdo do álbum, o que é muito bacana e raro. Curto muito o conceito de todos os elementos de um disco se conectarem. É uma capa muito forte e curiosamente criada por Carica. O recado está dado todo ali, o Brasil, o popular e o erudito juntos; a qualidade que o samba e a favela têm; a denúncia; os arranjos em perfeita harmonia com a batucada; Luiz Avellar; está tudo ali, uma foto que resume, inclusive, o que é o próprio grupo. Em vez do óbvio que seria uma imagem de um trem talvez, um piano com as inscrições “Trem Brasil” na boca de uma favela, pra mim beira o genial.

As fotos da capa e contracapa foram feitas na comunidade da Vila Santa Catarina, curiosamente na Zona Sul, região oposta a dos integrantes do grupo. A ideia da locação partiu do integrante Reinaldinho (tantã) que, oriundo da Zona Norte havia se mudado para Zona Sul, segundo ele “sempre, por causa da mulher” na comunidade da Vila Santa Catarina. A casa de Reinaldinho foi usada como Camarim para os partícipes que figuram nas fotos de contracapa e encarte que entre eles, além de obviamente os próprios integrantes do grupo, estão o produtor Wilson Prateado, Mano Brown (Racionais MC’s) e Edinho (Filho de Pelé e goleiro do Santos na época) um bonde “Mucho doido” e, no mínimo, interessante.

O disco é dedicado à rapaziada da Vila Santa Catarina (onde as fotos foram feitas), à escola de samba “Flor de Liz” (que na época tinha sua quadra sediada no local das fotos), a Luiz Avellar “pela viagem nas cordas”, a Arlindo Cruz, Ubirany, Sereno e aos “Manos de Fé” Edinho e Mano Brown.

Gravado no Rio de Janeiro no estúdio Companhia dos Técnicos, “Trem Brasil” foi um marco na produção de samba/pagode dos anos 90. Serviu de referência a músicos e produtores para trabalhos subsequentes e mudou o patamar de como se fazer um disco de samba dali em diante. Apesar do enorme sucesso comercial do álbum (o maior do grupo até então), o auge fonográfico do Sensação viria no ano seguinte no também excelente “Pra Gente se Encontrar de Novo” (WEA, 1997) com músicas do mesmo quilate de “Trem Brasil”. Outros bons trabalhos foram lançados pelo Grupo até o inicio dos anos 2000, mas a instabilidade do mercado,  a mudança na forma de se consumir música a partir da Internet e as eventuais carreiras solos de Marquinhos e Carica criaram um buraco na discografia do grupo (assim como na de muitos artistas) que se reúne eventualmente até hoje, conciliando os encontros com projetos individuais dos integrantes. Mas, a magia contida em “Trem Brasil” vive fortemente até hoje na memória afetiva de quem acompanhou essa fase e nos ouvidos dos sortudos que descobrem essa grande obra do pagode, do samba, da Música Brasileira, sei lá… não importa! Viva o Sensação!

Um Puta abraço!

Cassio Guerreiro

Essa Dichavada é dedicada à Carlos César Mateus (Carica) por toda criação e a Reinaldinho Rocha pela força nos trabalhos!

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