Seção “Um lero pelas esquinas” (entrevista): Serginho Procópio

(entrevista realizada por Fernanda Guimarães em 20/07/2010 / foto de capa: Barbara Alejandra)

“A velha guarda tem uma convivência de respeito… Eu fico vendo: a velha guarda, no geral, não é só a musical, são aqueles que trabalharam na escola, por isso são chamados de velha guarda.”

Minha história na música vem desde pequenininho; meu pai era músico, meu avô também foi músico, compositor de chorinhos. Alguns gravados, como Gadu Namorando, que foi gravado pelos Carioquinhas e mais um montão de gente. A minha história na música vem por aí, meu pai tocou com Candeia muitos anos, pertencia à Velha Guarda da Portela e, depois do falecimento dele, me convidaram pra entrar no lugar dele, porque eu já era músico, já era compositor também, já tinha músicas gravadas e tocava por aí. Eles me convidaram pra entrar e eu aceitei.

Mas até lá, ainda teve minha história como pequenininho, minha mãe conta que quando eu era pequeno, eu sempre arrastei um cavaquinho, e meus tios falavam:

– Quê que cê quer tocar quando crescer, rapaz?

– Eu vou tocar ca-vaco…

Tinha até uma tia minha que só me chamava de Cavaquinho, era meu apelido na família, e essas coisas de criança, sambar com o braço cruzado:

– Samba aí!

Aí tinha que – ha! – tinha que sambar, era coisa muito engraçada. A minha vida foi, mais ou menos, crescendo em torno da música, do samba, né? Com meu pai, sempre acompanhando os mais velhos.

Eu também fui seminarista, eu queria ser padre, porque eu freqüentava muito a igreja católica e, durante uma parte da minha vida, eu achei que era a minha vocação, então resolvi entrar no Seminário. Fui seminarista durante dois anos e meio. Terminei o 2º grau lá e ainda fiz meio período de Filosofia, quando eu desisti. Mas nesses dois anos, a música, o cavaquinho, sempre me acompanharam. Tinha uma viola lá no Seminário, com um montão de cordas, uma viola espanhola, e dali eu fiz um cavaquinho, botei a viola com quatro cordas e fiz um cavaquinho… E nas missas, a música de Ação de Graças era um samba do Luiz Carlos da Vila, Por um dia de graça. Era uma revolução dentro do Seminário, isso em… 1982, 81, por aí. Era:

Um dia, meus olhos ainda hão de ver
na luz do olhar do amanhecer…

Era a música de Ação de Graças da gente lá. Dali eu desisti, e aí a música, o samba, foi tomando mais corpo na minha formação.

Sempre morei em Marechal Hermes, no mesmo endereço. Mas, nessas minhas andanças aí, morei no Seminário, em Bragança Paulista… Eu vinha para cá nas férias. É até engraçado: acho que meu pai pensava que eu ia ser meio afeminado, então, quando eu chegava e ia com ele pro samba, ele queria me apresentar tudo quanto é mulher ao mesmo tempo. Ele pensava que o filho dele ia jogar pro outro time…

Eu nunca tive medo de me arriscar na vida, e o Seminário foi uma coisa nova. Eu participei de um encontro vocacional e descobri que ali as pessoas eram exatamente do jeito que eu era, então eu achei que era a minha vocação. Acho que foi a primeira grande decisão da minha vida, comecei a caminhar com as minhas próprias pernas a partir dali. No Seminário eu vinha pouco em casa. Morava e estudava lá, mas eu aprontava, também, bastante. Aprontava muito, muita coisa. Achava que era a minha vocação, mas depois eu fui descobrindo que, além de não ser, eu estava tirando vaga de alguém. Aí eu resolvi desistir.

Para entrar no Seminário, na minha época, você participava de um encontro vocacional, decidia se queria ser, ou não, e ia ver conforme as vagas que dessem na sua faixa de escola, pela sua escolaridade. Lá dentro a gente tinha os horários: horário de acordar, oração, café da manhã, horário da escola, horário de trabalho, horário para tudo. Isso no Seminário Menor, que é até o 2º grau. Já no Seminário Maior, você começa a participar de outras coisas, você tem as aulas de Filosofia e fica mais ligado aos trabalhos dentro da comunidade. Se bem que, no Seminário Menor, você tem as suas responsabilidades com a comunidade, com a igreja, mas no Seminário Maior, você já fica mais ligado a outros tipos de trabalho dentro da comunidade. Conforme você vai avançando na sua formação, seriam quatro anos de Filosofia, depois quatro de Teologia. Aí você vai se aprofundando mais, dentro da sua religião, da Ordem a que você pertence. Minha Ordem era agostiniana, eu pertencia aos seguidores de Santo Agostinho. Aí você ia se aprofundando mais, ia aprendendo mais coisas e, depois disso, você ainda tinha um ano de noviciado. Até ver se realmente queria ser padre, dava uns dez anos, por aí.

Minha mãe é ao contrário, minha mãe é mãe de santo, ligada à umbanda. E ela nunca foi contra, ela sempre me levou para a igreja. Eu não sei como é, é engraçada essa junção entre essas culturas. Não sei explicar isso aí. Mas eu acho que vem… Essa formação das pessoas serem umbandistas, ou religiosas de espiritismo, junto com a igreja… Todo mundo é batizado, quase todo mundo é batizado na igreja católica. Mas depois se criou um conflito dentro da minha casa, porque depois de um tempo meu pai passou a ser crente. Aí ele com minha mãe – eles sempre moraram juntos – entravam em discussões por causa de religião, mas os dois se gostavam, se davam bem. Mas quando tinha alguma coisa:

– Você adora imagem!

Esse tipo de coisa. Acho muito engraçado, mas não sei explicar. Minha mãe é viva, e está sempre procurando os centrinhos dela lá, de umbanda.

Frequentar a Portela era uma coisa mais do meu pai, minha mãe ficava mais em casa com a gente. Ele saía muito, minha mãe não, minha mãe nunca foi de sair muito. Ia às vezes num show da Velha Guarda, no Teatro João Caetano… Meu pai, além da Velha Guarda, tocou com muita gente, Candeia, Elza Soares, Clara Nunes, João Nogueira, um montão de gente, então, às vezes, nos shows que ele ia, a gente, minha mãe ia junto. Quando era essa coisa mais teatral, assim. Negócio de clubes, grandes festas; de noite, ela não acompanhava.

Minha mãe só aprecia música. O meu avô, pai dela, era responsável por Folia de Reis. Minha mãe é de Miguel Pereira e o pai dela tinha, lá em Miguel Pereira, a Folia de Tião Costa. Diz ela que, quando as pessoas viam a Folia de Tião Costa, nêgo corria por dentro do mato; se viesse outra Folia, eles corriam, porque o meu avô, eu não sei como é que é isso, mas acho que quem cantasse primeiro num sei o quê lá, a outra Folia tinha que saudar todos os santos para poder passar. E meu avô tinha muita coisa, assim, de reza. Ele tinha reza para a dona da casa abrir a porta para a Folia dele tomar café, tinha muita coisa. Minha mãe era muito ligada a isso aí. Até acho que a minha formação musical também é por causa disso. Meus dois avôs músicos, ligados a cultura, meu pai… O meu outro avô também tocava violão, tocava cavaquinho, o pai dela. E a minha mãe é mais ligada a essa cultura aí. E ela não gosta de dizer, mas eu tenho certeza que minha mãe canta bem. Ela canta os pontos… Eu lembro mais ela cantando pontos de macumba, mas ela cantava bem. Até hoje em dia quando eu estou perto dela eu forço para ela cantar, ela: “Ah, eu não!”.
Fica meio com vergonha. Mas eu tenho certeza que ela seria uma boa cantora. Certeza.

Eu não continuo sendo católico, mas tenho uma religião, eu sou espírita também, sou muito mais freqüentador de candomblé… Não posso nem dizer que hoje em dia eu tenho uma religião, mas tenho alguma religião ainda. O brasileiro não tem só uma religião. Eu sou muito ligado, eu gosto de frequentar o León Denis[1], eu freqüento candomblé e também a igreja católica, nem sempre nessa mesma disposição um ou outro, e nem sempre, sempre. Mas eu sou muito mais ligado a isso, hoje em dia.

Tenho três filhos, duas meninas e um menino. E uma neta, né? É, essa minha mais velha, ela já, também não está mais morando aqui. Ela teve uma menina há pouco tempo, ela está com… 16 anos. Não foi o que a gente queria para ela, mas foi o que ela achou para vida dela. Deus nos deu essa pequenininha e a gente está ajudando no que pode.

Desde criança, eu sempre ia à Portela com meu pai. Lembro de Natal, meu pai naquela maré braba, pedia dinheiro emprestado ao Natal. Depois ele ia pagar, mas o Natal não queria receber, não recebia. Mas meu pai sempre com aquele negócio de ir lá pagar, falava com aquela voz assim:

– Tenho que pagar o Seu Natal…

E me lembro desde pequenininho, frequentando a Portela. Mais em dias de festa, porque eu era pequeno… Eu sou o penúltimo de uma família de seis; abaixo de mim, só tem meu outro irmão. E meus irmãos mais velhos freqüentaram mais a Portela, negócio de ir à noite, eu ia mais em dia de festa, lembro da Dona Vicentina… A gente chegava, já ia por trás – meu pai era muito olho grande, comia muito – então a gente ia por trás para já almoçar, e depois participar da festa. Eu me lembro mais da casa do Candeia, onde a gente ia mais. E ele estava sempre lá, na porta de casa, chamando meu pai. Parava com o carro lá na porta, eu brincando ali na frente, e ele:

– Osmarzinho, vai lá chamar teu pai!

Eu já sabia que era pra sair, então ficava perturbando meu pai:

– Pai, deixa eu ir com o senhor!

Meu pai nem respondia.

– Deixa eu ir com o senhor!

Aí me fazia levar:

– Leva meu cavaquinho.

Até lá na frente, eu levava o cavaquinho dele, aí ele saía e eu ficava chorando. Às vezes eu ia com ele, lá para a casa do Candeia, muitas vezes, aí, participava daquela roda de samba, via as coisas acontecerem, Casquinha, Seu Jorge do Violão, eu lembro muito disso, eles cantando partido-alto, versando, isso é uma das coisas que eu lembro. Fui crescendo nesse ritmo.

Depois do Seminário eu, por intermédio do meu pai, conheci um músico chamado Paulão 7 Cordas, que hoje é o diretor da banda do Zeca Pagodinho. E esse músico, Paulão – isso foi em 1987, 1988, quando eu estava entrando na faculdade –, eles estavam fazendo um disco em homenagem a 10 anos sem Candeia, esse disco saiu até pela Funarte, onde eu conheci Tuninho Galante. E eu fui com meu pai, porque meu pai era um dos maiores conhecedores da música do Candeia, pela afinidade que ele tinha com o Candeia, de tocar junto. O Candeia fazia uma música e ligava logo pro meu pai ir para lá, pagava um…

– Ô Osmar, pega um táxi aí, pega o Jorge e vem pra cá.

Então, quase que diariamente ele ligava lá pra casa. Meu pai também era estofador, então estava trabalhando lá, aí parava o que ele estava fazendo e ia lá para a casa do Candeia, quase sempre. Na semana, vamos supor, a semana de segunda a sexta, são cinco dias, em quatro dias acontecia isso. Então ele estava sempre lá, e essa afinidade fez com que a gente fosse convivendo com os bambas, né? Aí quando foi fazer esse disco, o meu pai, como grande conhecedor, foi passando as músicas, até para passar pros produtores, como é que era a música, o ritmo, a letra, a melodia… Então meu pai, como conhecedor, passava para eles, e numa dessas reuniões, que foi lá na casa do Carlinhos Vergueiro, lá no Jardim Botânico, o Paulão estava. Estavam o Paulão, a Cristina Buarque, o Carlinhos Vergueiro, eu e meu pai. Acho que foi até a última vez que eu vi o meu pai tomando um copo de cerveja na vida. Meu pai bebia muito, e quando saía com o Candeia, então… Todos eles, naquela época, bebiam muito. E meu pai resolveu que ia parar de beber, nesse dia foi a última vez que eu vi ele beber, ele parando e eu começando. Nesse dia a gente parou no bar, ele aí:

– Ó, vou pagar a do Serginho aqui.

Ele tomou um, meio copo de cerveja. Daí eu nunca mais vi meu pai bebendo. Acho que ele parava ali e eu começava… Hoje em dia eu também não estou bebendo. E eu lembro que o Paulão estava lá, me deu o telefone dele e falou que ia me ensinar a tocar. E realmente aprendi música com o Paulão, violão… Eu já tocava cavaquinho, mas não era nada profissional, tocava de ouvido. Aliás, o que eu sei de cavaquinho, apesar de eu ter aprendido violão com o Paulão, muitas coisas, no cavaquinho, eu aprendi sozinho, vendo, ouvindo… E através da música que eu tinha aprendido com o Paulão – porque a música é uma coisa só – eu aprendi e passei pro cavaquinho, fui descobrindo, acabei aprendendo a tocar. E daí minha vida começou a andar, eu toquei com o Agepê durante 10 anos…

E Serginho Procópio foi começando a caminhar sozinho. Porque muito tempo da minha vida eu fui o filho do Osmar, mas aí eu comecei a aparecer sozinho, conheci o Zeca Pagodinho, por intermédio da Velha Guarda também, na casa do Argemiro, a gente começou a fazer música, aí eu comecei a gravar, apareceram outros parceiros… E antes eu assinava só como Serginho, mas por causa de negócio de direito autoral – Serginho tem um montão aí, na hora de você receber seus direitos autorais, nem sempre pode vir pro Serginho, só. Coloquei meu sobrenome, como meu nome artístico, Serginho Procópio, foi aparecendo, fui gravando, dando seguimento à minha vida.

E eu sempre fui fã da Velha Guarda. Lembro muito de um vizinho nosso, o Seu Alvaiade, que na Portela ele era como se fosse o substituto do Paulo da Portela. Mas ali eu sempre me lembro daquele senhor que todo dia de manhã chamava meu pai lá em casa, Seu Alvaiade. E a minha casa era sempre freqüentada por eles ali. Antigamente não tinham muitos músicos que tocavam cavaquinho, então como meu pai tocava, e tocava bem, a maioria dos compositores, para fazer fita, procurava meu pai. Iam à minha casa com gravadorzinho, pro meu pai acompanhar, e a gente estava sempre acompanhando, era Wilson Moreira, Alvarenga, Alvaiade, e a gente foi crescendo nesse meio musical, eu e meus irmãos. Eu mais, porque além de tudo eu tinha aquela vocação natural para a música, né? Da minha família, dos meus irmãos, fui o único músico, apesar de sermos seis. Tenho outro irmão que toca, mas não profissionalmente. O único que levou a vida da música como profissional fui eu. E dali, a gente foi crescendo, sempre acompanhando a Velha Guarda, por causa do meu pai também, e sempre crescendo… O Monarco, essas pessoas, nos viram pequenos. Eu então, que estava sempre acompanhando o meu pai, e depois fui ser músico…

O meu pai era também autodidata, então, depois de eu ter estudado com o Paulão, muitas gravações que apareciam, principalmente quando era o Paulão que produzia, ele já mandava as cifras, aí eu explicava ao meu pai como é que era, para quando chegasse na hora de gravar, não perdesse muito tempo, entendeu? E assim fui crescendo, aí, infelizmente eu vim a perder meu pai. Por mim ele estaria tocando até hoje lá, na Velha Guarda, mas eu também me sinto muito orgulhoso de poder tê-lo substituído. Que ali, parece que é uma coisa de família, eu tenho muito orgulho de dizer que, apesar da pouca idade, eu pertenço à Velha Guarda. E aí fui crescendo nesse meio musical, fui aparecendo para a música, já não era mais o filho do Osmar do Cavaco, já era o Serginho Procópio, e as coisas apareceram naturalmente, não foi nada forçado, fui crescendo naturalmente, conforme as pessoas da minha idade iam aparecendo, assim.

A gente morava em Marechal Hermes, praticamente perto da Portela, que fica ali entre Madureira e Oswaldo Cruz. Aquela região é dominada por portelense. É Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Marechal, essa região é região da Portela.

O meu pai apareceu na Portela porque o meu tio desfilava lá, na Ala dos Impossíveis, onde o Candeia também desfilou. E o meu pai, como aprendeu a tocar cavaquinho, por causa do meu avô… Meu avô tocava aquele banjo tenor. Reza a lenda que meu vô não queria que meu pai saísse para tocar por aí, porque músico, naquela época, era tido como cachaceiro, essas coisas, e meu avô não queria que meu pai bebesse cachaça. Quando ele percebeu, meu pai já estava tocando, às escondidas, aí ele falou pro meu pai, com a voz grossa assim:

– Ah, você já tá tocando bem, agora vê se não vai beber, sair por aí bebendo cachaça, hein, rapaz?

Foi tudo que ele fez. Tudo que ele fez.

E meu pai começou, a primeira escola em que ele desfilou foi Império Serrano, não sei como, mas ele já estava ligado no pessoal da música. E meu tio era quem desfilava na Portela. Então, por intermédio do meu tio, meu pai começou a aparecer na Portela, tinha irmão que tocava cavaquinho, e dali conheceu Casquinha, esse pessoal, Candeia, e daí foi ficando, ficando… E ficou. Quando foi ver, já era um coração portelense. Não é que ele fizesse parte da fundação da escola, não foi nada disso, ele apareceu na escola, como tantos outros também apareceram, e dali foi ficando.

Na época em que foi formada a Velha Guarda, em 1970, meu pai já desfilava na escola, então aquela formação, muitos bambas ali já poderiam ter integrado a Velha Guarda, mas nem todo mundo fazia parte daquele grupo de show. O Paulinho da Viola foi que montou mais ou menos aquele grupo, e convidou meu pai, porque o Jair do Cavaquinho, que era pra ser o cavaquinista da Velha Guarda, tinha outro grupo, outros compromissos. Ele tocava muito com Zé Keti, lá para baixo, então não tinha tanto aquele compromisso de estar ali, e o Paulinho da Viola convidou meu pai para fazer parte. Como já estava na Portela mesmo, foi ficando, e já tocava com Candeia… E fez parte desse seleto grupo de acompanhantes.

A velha guarda tem uma convivência de respeito… Eu fico vendo: a velha guarda, no geral, não é só a musical, são aqueles que trabalharam na escola, por isso são chamados de velha guarda. Vieram muito antes, trabalharam, foram diretores de harmonia, ou mestres-salas, ou da ala das baianas, esses todos antigos são chamados de velha guarda. São pessoas antigas dentro da Portela, por isso são chamados de velha guarda. Esses que são chamados de Velha Guarda musical, ou Velha Guarda show, além de trabalharem, tinham um outro trabalho, que eles compunham sambas, digamos assim, aqueles sambas desinteressados, sem aquela forçação que tem hoje em dia, da gravação, era um samba para ser cantado, ali dentro, no dia a dia, numa brincadeira, entendeu? E esses criaram, como eles chamam, samba de terreiro. Era o Seu Manacéa – o Monarco era o mais novo deles – Alvaiade, Mijinha, irmão do Manacéa, e tantos outros que também faziam parte daquele grupo ali, mas não se integraram ao grupo show… Chico Santana fazia parte, Alcides Malandro Histórico, que todo mundo hoje canta o samba dele aí:

Eu vivia
isolado do mundo…

Também era desse grupo e da formação da Portela, mas não fazia parte da Velha Guarda show. O que era mesmo que eu ia dizer?

Então esses aí, que trabalharam e ainda criaram coisas, eram chamados de Velha Guarda show, porque eles cantavam a criação deles, o Manacéa cantava Quantas Lágrimas era, muito bonito:

Ah, quantas lágrimas…

Não tinha coisa mais bonita. Então eles, além de trabalharem ali dentro, eles ainda criaram coisas. Agora, a outra velha guarda é o pessoal que trabalha mais, dentro da escola, tem uma função ali dentro. Eu posso dizer que hoje em dia eu estou comendo o filé mignon, porque os outros ralaram lá atrás. Antigamente, quase não tinha nenhum show da Velha Guarda, era um show por ano, e eles ralaram pra criar aquele nome, para agora a gente estar com o filé. Mas alguém tinha que fazer isso, e nada mais justo do que a gente também, que foi criado ali dentro, eu, Áurea, Mauro Diniz… A gente acompanhou a nossa vida toda a Velha Guarda da Portela. Então eu acho que ninguém ia dar mais valor do que a gente ali, que viu, e que considera isso a nossa raiz.

O Mauro Diniz pode fazer parte da Velha Guarda, ainda não está, mas ele sabe que é, ele já fez parte, uma época. Aí depois, ele tem os projetos dele, tem a vida dele, particular, o Mauro é um maestro, é compositor também, tem o disco dele, então não dá para ele sempre estar com a gente, mas sempre que pode, e sempre que a gente também precisa dele, ele está ali. O Mauro é um reserva de luxo, digamos assim, que não é reserva. A hora que ele quiser ser titular, ele é.

Hoje em dia, o que mais me deixa triste é saber que um dos nossos não está podendo mais trabalhar, não está podendo ir, ou então que a gente está perdendo, como perdemos Jair do Cavaquinho, perdemos Argemiro… Durante muito tempo na escola, não foram criados sucessores pra eles. Não apareceram, porque a geração deles era uma formação natural. Infelizmente, digamos assim, foram aparecendo todos numa mesma geração… Hoje em dia a gente não vê sucessores para eles, não tem. Quem tinha, a gente já aproveitou, foi o Edir, que agora também faleceu… Não tem craques, que nem eles, ali.

Agora, pode ser que esteja aparecendo aí uma nova geração, eu digo, essa nova geração da qual eu também faço parte, porque eu tenho 42 anos. Estou na Velha Guarda, mas eu sei que a minha geração não é essa, eu estou substituindo alguém, entendeu? Mas tem o Wanderley Monteiro, que está surgindo aí, é um bom compositor, um bom músico, pode ser, futuramente, uma boa aquisição para a Velha Guarda. No momento eu acho até que não, mas futuramente, tenho certeza que vai fazer parte, que é uma pessoa que vai saber respeitar aquilo ali.

Na Velha Guarda tem uma coisa, que é muito maior que a gente… Ali a gente não tem a vaidade de… Eu não tenho a vaidade de chegar ali, cantar sambas meus, mas tenho a responsabilidade de guardar os sambas daqueles antigos, que ficaram. Porque a nossa responsabilidade é mostrar a nossa cultura, aquilo ali é que eles mostraram antes, e aquilo não pode morrer. Eu acho o seguinte: quando a gente não tiver mais o que mostrar deles, aí é que a gente começa a mostrar nossa história, porque foram eles que fizeram isso aí, então a gente não pode deixar morrer aqueles sambas. Quando a gente não tiver mais o que mostrar deles – até paralelamente a gente pode ir também mostrando coisas nossas – mas a gente tem que mostrar essas coisas que ficaram lá para trás, que estão sendo esquecidas, esses verdadeiros sambas.

Infelizmente não tenho fita com meu pai tocando, porque as pessoas gravavam, mas eles levavam a fita. Meu pai ia lá, acompanhava. Eles gravavam, porque os interessados eram eles, era música deles para eles mostrarem. Era uma coisa natural, a gente não tinha esse pensamento, que hoje tem “poxa, se pudesse ter gravado isso…”. Hoje em dia era uma riqueza, mas a gente na época não tinha esse pensamento que poderia acontecer com a música. Até então, o samba não era nem tão valorizado assim, né? A gente não sabia que… Hoje em dia tocam no rádio, essas músicas, como essa que a gente está ouvindo aí, isso aí tem época para acabar, são coisas que a gente sabe que não vai passar dois anos e a gente não vai cantar isso aí mais. Se a gente soubesse que essas coisas que a gente escutou iam durar, a gente ia guardar, muito mais.

Para fazer o repertório da Velha Guarda tem muitas coisas gravadas. A pessoa que mais lembra as coisas da Velha Guarda é o Monarco. O Monarco tem uma memória… Que é impressionante, ele sabe o ano que foi e tudo. Daqui a pouco ele força a cabeça dele aqui, lembra a música, lembra um pedaço, daqui a pouco ele vai lembrar a música toda. Esse documentário, O mistério do samba, mostra isso, ele lembrando um samba do Manacéa, daqui a pouco ele lembra mais, daqui a pouco ele lembra o samba todo. Ele é impressionante, e coisas que ele ouviu, e que ele viu, naquela época, também não tinha onde guardar. O Manacéa, por exemplo, guardava música dos irmãos dele, para os irmãos não esquecerem, cantavam pra ele, que não tinha gravador, essas modernidades que a gente tem agora, né? A tecnologia nos ajudou muito nesse sentido, agora não tem como a gente deixar uma música perdida, não fica. Mas naquela época não tinha, então precisava da memória, o Monarco aí é… É o nosso guru, também porque ele era o mais novo deles.

Eu gosto mais de fazer a música, mas a gente, quando compõe junto, acaba fazendo letra e música. A gente dá idéia daqui, com parceiros ou também sozinho, dependendo do sentimento que a gente tem, alegria ou outra coisa, a gente acaba fazendo os dois. Eu fui compondo mais música de rádio. Teve uma época em que eu acabei assinando contrato de exclusividade, então tinha que apresentar um trabalho, era muito mais cobrado, porque eu fiz um contrato com uma editora, então tinha que apresentar trabalhos para eles… Nesse contrato eu peguei um dinheiro adiantado, e eu tinha que pagar aquilo ali. Então nessa época, eu estava sempre compondo, sempre compondo. Vamos supor, em um dia, eu tinha que compor de manhã, de tarde e de noite, porque, também não vou dizer que era uma música que fosse guardar, não, era uma música passageira, porque eu era cobrado nisso, mas tinha muitas coisas ali, quando não era cobrado, que já fluíam bem melhor.

Hoje em dia as escolas de samba ficaram muito ligadas ao negócio do samba-enredo, as pessoas só se interessam em fazer o samba-enredo, por quê? Porque o samba-enredo dá aquele dinheiro, então o interesse ficou muito grande nisso aí. Tanto é que nem todo mundo que compõe samba-enredo, que tem o seu nome lá, nem todo mundo compõe… São seis, mas dois correm atrás da grana, dois fazem o samba, os outros são responsáveis pela torcida, entendeu? Então o samba-enredo é muito isso, já o samba de quadra não, você fazia um samba, tipo um samba exaltação, pra você cantar antes do desfile, antes do ensaio, era um samba mais, falando da escola, aquela alegria toda. O samba de terreiro é aquele samba livre, que você não estipula o tema, você pode falar da escola ou não, é um samba livre. E hoje em dia as escolas de samba não têm isso, é muito só ligado ao samba-enredo. As coisas só acontecem na escola de samba quando começa negócio de samba-enredo.

Agora está até mudando, por causa desse negócio das feijoadas. Até fomos nós que começamos com isso, e a feijoada da Portela foi justamente para isso, para a gente poder cantar os sambas de terreiro, para não ficar morto, e acabou que até esse processo as escolas de samba foram jogando de lado, e já estavam desaparecendo outras coisas, que eram típicas das nossas culturas. Nada contra, mas lá na nossa feijoada, nêgo estava cantando Rebolation. Pô, o quê que é o Rebolation pra nós? A nossa cultura, ali dentro, aí vai cantar a cultura do outro? Nada contra o Rebolation, eles têm o espaço deles, até se eles forem lá, à Portela, para a gente também vai ser um orgulho, eles cantando a música deles. A gente ali dentro do nosso terreiro, a nossa cultura, a nossa raiz, a gente não vai cantar Rebolation. Aí, agora, a gente teve uma reunião, já tivemos outra feijoada voltando àquela idéia antiga, que é a gente resgatar, porque as pessoas estão indo lá para isso, as pessoas querem ouvir essa cultura, querem ver isso aí. Isso das feijoadas começou em 2004, 2005, por aí.

As mulheres, historicamente, pelo que eu ouvi falar, é que eram responsáveis pelo samba pegar na escola. Quando alguém dessa época, antiga, ia apresentar um samba, e as mulheres estavam lá, se o samba caísse no gosto das mulheres, o samba estourava, arrebentava, mas se não caísse, o samba ficava pra lá. Então, as mulheres é que eram, digamos, as pastoras, eram responsáveis pelo samba pegar na escola. Se as mulheres cantassem o samba, aí o samba ia, se não… Não adiantava forçar que não pegava. Então, dentro da Velha Guarda também se criou isso, as mulheres eram, as pastoras, aquelas vozes femininas, que faziam o coro, essas coisas todas. Isso historicamente, mas agora eu já tenho outra visão: como elas também presenciaram muitas coisas, eu já vejo que elas também fazem parte dessa história, não só como divulgadoras do samba, mas elas presenciaram, elas sabem o que é, e sabem até o samba que não pegou, entendeu? Elas fazem parte dessa história, digamos assim.

Dentro da Velha Guarda principalmente, porque a gente não tem mais aqueles grandes compositores de antigamente, eles mesmos cantavam a música deles junto da Velha Guarda. Era bonito, principalmente pra mim, que era fã, ficar assistindo ali, vendo o Seu Manacéa cantar, Chico Santana, Alberto Lonato… E a gente não tem mais isso… E hoje em dia, na Velha Guarda da Portela, as coisas estão muito em cima do Monarco, e ele também já está com uma idade, já está cansado, até a voz dele, não dá para ele cantar tudo, então a gente tem que dividir, entre as pessoas que tem ali dentro, porque os que mais ficaram na Velha Guarda são músicos, compositores não tem mais. O Casquinha, que até pouco tempo estava com a gente, já está cansado, tem os problemas dele, de doença, não pode acompanhar a gente sempre. Para que as coisas, os shows, digamos assim, não fiquem muito em cima do Monarco, é preciso que as mulheres cantem também. Elas conhecem a história, conhecem os sambas, então as mulheres estão aparecendo mais, estão cantando mais, entendeu? Dentro da nossa Velha Guarda da Portela, esse está sendo o papel das mulheres.

Geralmente, o Monarco sugere o repertório e a gente escolhe junto. Eu, principalmente na parte musical, que é a parte em que eu me sinto mais responsável. Eu vejo com Monarco, de acordo com o show, o quê que é legal a gente cantar, o que o público vai curtir, porque tem música para tudo quanto é espaço. Tem sambas que é legal a gente cantar: Coração em Desalinho, que o Zeca Pagodinho gravou, do Monarco, que a gente sabe que o público vai participar, vai estourar; tem outros shows, mais intimistas, em teatro, por exemplo, aí a gente procura rebuscar algumas coisas do Paulo da Portela, Cidade mulher:

Cidade, quem te fala é um sambista…

A gente procura rebuscar certas coisas para também não ficarem sendo esquecidas lá atrás.

Ah, eu gosto de lembrar dos encontros da Velha Guarda, as reuniões, os ensaios. Eram muito legais, principalmente quando estava a maioria, eu era pequeno, e ia lá para Oswaldo Cruz, nos fundos da casa da Tia Doca. Ali eles se reuniam, acho que era domingo ou sábado à tarde, eu não lembro bem, mas estavam sempre lá cantando, ali estava a essência mesmo da Velha Guarda, a maioria deles estava vivo – Alvaiade, Seu Manacéa, Chico Santana – pra mim, eles, ali, eram… O topo de linha, sabe?

Então agora eu fico vendo, eu participava disso aí tudo e não sabia qual era o valor que tinha; já gostava, mas não sabia que isso ia ser a minha vida. É muito grande, poxa… Engraçado que dali, a Velha Guarda quando parou de ensaiar, ali acabou virando uma roda de samba que hoje em dia eles dizem que é o Pagode da Tia Doca, mas na época era o Terreirão da Tia Doca, eu lembro que tinha esse nome e meu pai também era sócio dela, nessa época.

Depois dos ensaios da Velha Guarda, acabou virando marca, então eles começaram a botar cerveja para vender, Tia Doca fazia, sopa de ervilha, negócios assim, e acabou virando roda de samba, então todo domingo, durante o final dos anos 1970, início dos 1980, ali lotava. Foi mais ou menos nessa época que surgiu o Fundo de Quintal, que o samba começou a aparecer mais, teve o primeiro grande estouro, assim. Zeca Pagodinho ia para lá, Jovelina Pérola Negra, mas tudo meio informal, não era nada marcado, eles iam lá porque gostavam e eles estavam começando. E dali começaram a surgir novos nomes, que hoje em dia estão aí, Zeca Pagodinho – grande Zeca – e outros nomes, e a gente acompanhou isso aí tudinho. Eu e Luizinho, que hoje em dia é quem faz o pagode da Tia Doca, um dos filhos dela… A gente ficava lá catando garrafa. Nossa função lá era catar garrafa, as garrafas ficavam jogadas no terreiro, aí a gente tinha que catar garrafa.

Ah, tem uma música, lá da Portela, que acho que marcou e marca até hoje, até que o filme, no Mistério do Samba tem essa música aí, e quando ela é cantada, ela é de uma energia, que eu não sei te dizer. Deixa eu lembrar o nome…

Quando vem rompendo o dia

eu me levanto, começo logo a cantar

Essa doce

Doce melodia, o nome da música[2].

Essa doce melodia…

E é uma coisa natural, essa música, a história dela, não foi feita para tocar no rádio, não foi feita para nada, mas é de uma energia tão grande… A gente, quando canta essa música lá, principalmente na Portelinha – e justamente no filme é lá –, onde estão todas as vitórias da Portela, todas as grandes vitórias da Portela foram ganhas ali naquela Portelinha… Então parece que todos os deuses da Portela estão ali naquele momento, todos os orixás, é de uma energia… Nossa, que eu nem sei falar, dá vontade de chorar, dá vontade de tudo, o corpo arrepia… Até hoje quando a gente canta essa música eu sinto isso. Eu não sei o que dizer, é uma grande música da Portela… E Quantas Lágrimas também. É outra que arrepia o corpo que a gente não sabe… Falando vêm lágrimas nos meus olhos, nossa. A gente não sabe dizer o quê que é.

Eu nasci em 1967 e a Portela mudou para o Portelão em 1971, 72, onde é até hoje, então eu já sou da época do Portelão. Hoje em dia, a Portelinha não tem grandes atividades, então as pessoas ficaram só ligadas, realmente, ao Portelão. Mas eu acho que, se o caminho da Portela, para ganhar um Carnaval, for mudar para a Portelinha, acho que tem que mudar, porque ali tem muito mais chão, a energia é outra. Não sei se é a cabeça de dirigente, sei lá. Sei que a Portelinha tem uma energia natural, sei lá o quê que é.


[1] Centro Espírita León Denis, em Bento Ribeiro.

[2] Composição de Bubú da Portela e Jamelão.

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