(Seção Prosas de batuques e cachaças)
17/02/2021
Antes da crônica:
O autor de “O Beijo no Asfalto” também foi grande cronista, exercendo por alguns anos o ofício em alguns jornais. A crônica rodrigueana tem, para além de juízos conservadores sobre a sociedade, um olhar contumaz para as mudanças que estão nos costumes e para além deles. O livro “Menina sem Estrela” que reúne 88 crônicas, em sua última versão editada pela Companhia das Letras, traz memórias de infância do velho cronista entremeado com o olhar da sociedade em seu tempo.
Escolhemos textos que remetem à pandemia de 1918 e ao carnaval de 1919. Dizem, inclusive ele, que 1919 foi a grande mudança da capital federal. Um empurrão para as contradições do mundo moderno; 30 anos depois do fim da escravidão e do início da República.
Curiosamente: se 1917 temos a inauguração do samba fonográfico com “Pelo Telefone” e o sucesso absoluto deste samba no carnaval, em 1919 foi a continuidade do sucesso. Alguns dizem que foi neste ano que formou-se o balanço da turma do Estácio, que dali a 10 anos tomaria o espaço fonográfico da “Turma dos Baianos”, liderada por Pixinguinha, China, Hilário Jovino, Donga e João da Baiana.
Sem mais delongas, segue abaixo o texto de Ruy Castro, autor do prefácio da edição de “Menina sem Estrela” da Companhia das Letras. Sem dúvida, ele apresentará melhor a trajetória de Nelson Rodrigues do que eu. Logo após seu texto, vamos à primeira crônica.
(por Léo Pereira)
A Estrela de um Iluminado
(por Ruy Castro)
Em janeiro de 1967, Nelson Rodrigues estava a caminho dos 55 anos e não se sentia mais jovem a cada dia. Seu romance O casamento, recém-lançado, fora proibido pelo ministro da Justiça do governo Castello Branco, Carlos Medeiros Silva. A acusação era a de “torpeza das cenas descritas”, “linguagem indecorosa” e “atentar contra a organização da família”. Os exemplares foram varridos das livrarias pela Polícia Federal. Alguns intelectuais protestaram e aproveitaram para atacar o sinistro Carlos Medeiros. Mas, num editorial de primeira página, o próprio jornal de Nelson, O Globo — onde ele escrevia a coluna diária “À sombra das chuteiras imortais” —, defendeu o ministro e a proibição.
Nelson ficou ressentido com o jornal e quis sair. Mas deixar O Globo significava também deixar a TV Globo, em cujos programas fazia aparições diárias e semanais. E era com o dinheiro da televisão que ele pagava o aluguel e o dispendioso tratamento médico de Daniela (a “menina sem estrela”), a filha que tivera com Lúcia, sua nova mulher. Daniela nascera de um parto dramático e era cega. Foi então que o jornalista Francisco Pedro do Coutto, seu amigo, sondou-o: por que ele não levava “À sombra das chuteiras imortais” para o Correio da Manhã?
Coutto era editorialista do Correio. Nelson gostou da idéia, mas como resolver o problema da TV? O convite oficial e a fórmula conciliatória partiram de Newton Rodrigues (sem parentesco com Nelson), redator-chefe do Correio: não precisaria deixar a TV e, se quisesse, poderia até continuar com “As chuteiras” em O Globo. O que o Correio da Manhã queria dele eram as “Memórias de Nelson Rodrigues”.
Nelson topou e, graças a esse sortilégio de fatores, escreveu, de 18 de fevereiro a 31 de maio daquele ano, a sua mais extraordinária coleção de crônicas: sua infância na rua Alegre, sua iniciação sexual, a morte do irmão Roberto, o empastelamento da Crítica, a tuberculose em Campos do Jordão, a estreia de Vestido de noiva. Uma “memória” por dia, todos os dias — com a interrupção de uma semana, mal a série começara: quando uma chuva forte no Rio provocou o desabamento do edifício em Laranjeiras onde morava seu irmão Paulo, matando-o e à sua família. Se os leitores do Correio da Manhã já acompanhavam arrebatados as “memórias” de Nelson, a intervenção brutal da realidade emprestou ainda mais paixão e compaixão ao que ele vinha escrevendo.
Pelo acordo com o jornal, Nelson viria contar suas reminiscências, mas, querendo, poderia também misturá-las com o presente e — mais importante — com liberdade absoluta. E ele usou essa liberdade. Na primeira crônica, atacou finamente o ministro da Justiça que lhe proibira O casamento e que fora o relator da Constituição outorgada em 1967 (que Nelson chamou de “a nova Prostituição do Brasil”). Em outra crônica, não poupou o poeta Carlos Drummond de Andrade, também cronista do Correio da Manhã, por sua “aridez de três desertos” ao comentar o desabamento de Laranjeiras. E, por fim — para Nelson, uma doce vingança —, fez uma longa e comovida apologia de seu pai, o jornalista Mário Rodrigues, nas páginas do próprio jornal que o declarara o seu principal inimigo na distante década de 20 e que nunca o perdoara.
Em fins de maio, Nelson e o Correio da Manhã se desentenderam por questões financeiras. Enquanto não chegavam a um acordo, a série foi interrompida, mas o jornal, com planos de aventurar-se no mercado editorial, iniciou suas edições com a apareceram nos sebos De todos os livros de Nelson, é o mais precioso item de colecionador. Alguns dos principais estudiosos de Nelson, como os críticos Sábato Magaldi e José Lino Grünewald (além deste organizador), consideram-no talvez a maior coisa que Nelson escreveu. E o capítulo 10, em que Nelson conta o drama de
Daniela, foi classificado por Otto Lara Resende como “uma das mais belas páginas da língua portuguesa”. Mas, neste livro, há muitos outros capítulos tão belos quanto. Pela primeira vez, as oitenta “memórias” que Nelson publicou no Correio da
Manhã saem completas e numa única edição, na ordem em que foram publicadas no jornal.
Logo, não se trata de uma ressurreição — a vida de A menina sem estrela só agora começa.

Crônica 11
(por Nelson Rodrigues)
“A cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão”
Já contei o pedido que me fizeram na igreja. Depois da missa, uma senhora veio me dar os pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila. E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava na minha cabeça. Não escrever mais sobre velórios, nunca mais.
Mas o que a senhora pedia era uma rigorosa impossibilidade. As nossas lembranças estão debruçadas sobre velórios e sobre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: — o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia fabulosa.
Falarei também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Esse Carnaval iria desfigurar a cidade, o seu povo, influir em nossos costumes, sentimentos, idéias, valores. Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho, o oculista que examinara os seus olhos. Ah, me lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos entrando em General Osório; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua compaixão não confessa, apenas insinuada. Minha vontade foi fazer-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.
Vou dizer a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho. Odiei o oculista que não acreditava em milagre.
Ele fora à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase, quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse nada, nem ele mentiu. Deixou-me na porta da TV Rio. Eu estava tenso, mas calmo. Apertei-lhe a mão, agradeci a carona. E foi só. Mas minha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.
Eles diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais. Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo, menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra: — já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”. No dia seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D. Lidinha o chamara. Nos braços da mãe, Daniela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar.
Disse a sua verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”. Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando se despediu, me precipitei: — “Vou com o senhor”. Ainda no elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo que o senhor disse é fato? Pode falar, doutor, não me esconda nada”. E repeti: — “Quero a verdade e nada mais”. Foi taxativo: — “É isso mesmo. Eu acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de luz. Hoje, minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos.
São de um azul doce, triste e diáfano. Ainda não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que, por um momento, fui colhido por um surto de ódio tremendo.
Aqui, deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo como aquele menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete, os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na espanhola. Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. Era em 1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes, inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa, suas varandas pendem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o grande mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão ofendido.
Não, não. Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em 1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo: — durante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.