Especial crônicas de Carnaval e não carnaval: Nelson Rodrigues (2)

(Seção Prosas de batuques e cachaças)

[…] Anterior: texto introdutório às crônicas de Nelson Rodrigues e a crônica “A cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão”

(do livro: Menina sem estrela)

Crônica 12

“Quem não morreu na espanhola?”

Escrevi, certa vez, uma crônica meio cruel, e da qual me arrependi. Dizia eu que não há ninguém mais narcisista do que o defunto. Ele está sempre bem posto; é solene, hierático, como um mordomo de filme policial inglês. E me lembro que, na ocasião, contei um episódio de rara impiedade.

Eis o fato: — pouco antes, morrera um pastor protestante do meu bairro. Residia a duas quadras lá de casa. De noite, desci do bonde e passei pela sua porta. Seria deselegante (vá lá o deselegante) não entrar. Tomei coragem e fui cumprimentar a viúva e demais parentes. E comigo entrou um bêbado, vejam vocês. O sujeito não conhecia ninguém, ali. Mas vira o ajuntamento e resolvera espiar. E, então, aconteceu esta coisa inédita e abominável: — ao ver o defunto de gravatinha- borboleta, o pau-d’água começou a rir e continuou rindo, num crescendo pavoroso.

Suas gargalhadas iam de uma esquina a outra e atravessavam a noite. Imediatamente, cães da vizinhança responderam. E esse alarido canino propagou-se de quintal em quintal, acordando os galos, que, por sua vez, começaram a cantar fora de hora. Nos terrenos baldios, faunos e vampiros também esganiçavam o riso torpe. E só o morto, com sua gravatinha-borboleta, permaneceu incomovível. O defunto não alterou, em nada, a sua correção atroz de mordomo de filme policial. Contei a fábula para chegar à espanhola. Claro que, em 1918, isto aqui era um outro Rio, o Rio dos lampiões, dos bondes e dos enterros residenciais. Se não existiam mais as carruagens de Dumas pai, ainda se podia passear em tílburis machadianos. Botafogo era Machado de Assis puro.

E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. Na fábula acima, vimos que o defunto no seu narcisismo obsessivo foi ao requinte da gravatinha-borboleta. Mas a espanhola não fazia nenhuma concessão à vaidade dos mortos. E o apavorante eram a solidão, o abandono e, sobretudo, a humilhação do cadáver.
Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: — na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira- lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.

O sujeito morria sem vela. Nós sabemos o que é e como é o brasileiro. Acontece, aqui, uma coisa misteriosíssima e linda. Se o sujeito morre na rua, atropelado ou por motivo outro qualquer, surge, instantaneamente, uma vela ao seu lado. É automático. Não importa que seja na Presidente Vargas, no Mangue, na avenida Brasil ou num descampado da Boca do Mato. Ninguém sabe, e não saberá jamais quem pôs a vela, e que fósforo a acendeu. A chama trêmula, que nenhum vento apaga, torna a morte mais amiga, mais compadecida e mais feérica.

Pois essa estrela dos atropelados, essa estrela de esquina, de meio-fio, de asfalto, não ardeu pelos mortos da espanhola. Eu, da minha janela, espiava os caminhões passando. E não entendia mais nada. Antes da gripe, achava a morte rigorosamente linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, e pelas alças de prata. Lembro-me de que, na primeira morte adulta que vi, cravou-se em mim a lembrança dos sapatos, inconsoláveis, tristíssimos sapatos. A espanhola arrancou tudo, pisou nas dálias, estraçalhou as coroas. Diz alguém que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce, sonha, ama e morre. Em 1918, a esquina, e o botequim, e a calçada, e o meio-fio seriam metafísicos também. Porque lá se morria, a toda hora. Mas eis o que eu queria dizer: — vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam.

Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: — “Aqui tem um! Aqui tem um!”. E então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém.

E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes, Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos.

Ninguém se lembraria de fazer uma missa de sétimo dia. O brasileiro é um homem de fé. Conheço patrícios que têm, ao mesmo tempo, três, quatro religiões. Pois, na espanhola, ninguém acreditava em nada. O sujeito mal tinha tempo de morrer. E eu cada vez entendia menos aqueles enterros fulminantes, sem dourados, sem cavalos, sem penachos.

Por que a peste? Eu ouvia dizer que os culpados eram os mortos insepultos da guerra. O nome “espanhola” realmente era um mistério. Lá em casa, todos caíram de cama, menos eu. Meu irmão Augusto, recém-nascido, era um pequenino esqueleto, com um leve, diáfano revestimento de pele. Mas não chorava, nem gemia. Tão quieto que mais parecia um martírio consentido. Houve uma noite, uma tarde, não sei, em que parecia agonizar. Mas, de repente, abriu os olhos, sorriu numa euforia de anjo. E sobreviveu. De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: — “Quem não morreu na espanhola?”. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores.

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Jornal Gazeta de Notícias de 1919. Fonte: Hemeroteca Digital

Crônica 13

“Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados”

E eis que o Hélio Pellegrino e o Mário Pedrosa foram passar três dias em Cabo Frio. O Mário tem, lá, uma casa selvagem. Eu os imagino na praia, ouvindo o silêncio das ilhas. Nada de jornal, de manchete. Estavam espantosamente sós. E não leram, através das 72 horas, um único e escasso jornal, uma única e escassa manchete. Era uma solidão virginalmente analfabeta.

E, então, nos três dias e nas três noites, Hélio Pellegrino e Mário Pedrosa foram dois centauros e repito: — dois centauros esculpidos em areia, sal e vento. Depois voltaram, claro. Mas vinham convencidos de que o asfalto é homicida e suicida. Na vida urbana o homem mata e se mata. Eis o que eu queria dizer: — também homicida e suicida foi o Carnaval de 1919, logo depois da espanhola. O Hélio Pellegrino não era nascido. O Mário Pedrosa, sim. Mas o Hélio Pellegrino não era nascido, nem o Otto Lara Resende e muito menos o Cláudio Mello e Sousa, nem o Alfredo C. Machado. Mas já andava por aí o Álvaro Nascimento, que hoje escreve no Jornal dos Sports sob pseudônimo de Zé de S. Januário. Na espanhola, ele foi caçado, quase laçado no meio da rua. O nosso Álvaro só adoeceu no fim da gripe e quase morreu quando já ninguém morria. Como eu ia dizendo: — deram-lhe uma pá e disseram-lhe: — “Vamos enterrar defunto!”. E ele os enterrou, aos borbotões. Foi coveiro. E, ainda hoje, vê um morto, qualquer morto, como a um velho conhecido. Mas voltemos ao Carnaval de 18, aliás, 19. Hoje, temos um sociólogo, o Sérgio Lemos, que liga tudo à epopéia industrial. Se a galinha pula a cerca do vizinho, se o caçula tem coqueluche, se usamos cabeleira à Búfalo Bill — está explicado. As coisas acontecem, e só acontecem, porque o Brasil se industrializa.

Mas eu me permitiria insinuar que, em 1919, não foi bem assim. Começou o Carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída.

Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.

Estou aqui reunindo as minhas lembranças. Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata — é mais cruel e mais ressentido do que um nero ultrajado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou sujeitos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no Carnaval.

Eu poderia fazer, aqui, todo um capítulo sobre o pudor. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamente, ainda não ocorrera para nós a abertura dos portos. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: — até sexta-feira, isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte, virou o Rio de Benjamin Costallat ou, ainda, do Theo Filho. — “Caímos muito de categoria”, dirão vocês. Respondo que até um verso de jornal de modinha, ou uma manchete de O Dia, tem a sua dimensão sociológica. Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias.

Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: — “Na minha casa não racha lenha./ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa não falta água. / Na minha abunda.” etc. etc. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias; e iam assim de paroxismo em paroxismo.

Nos carnavais seguintes, a cidade teve medo dos próprios abismos; houve um certo recuo. Mas o Rio de Machado de Assis, ou de Macedo, ou sei lá, estava morto. O que quero dizer, ainda, sobre o Carnaval da espanhola é que foi de um erotismo absurdo. Daí a sua horrenda tristeza. Disse não sei quem que o desejo é triste. E nunca se desejou tanto como naqueles quatro dias. A tristeza escorria, a tristeza pingava, a alegria era hedionda.

Mas escrevi que o desejo é triste. Vejam o último Carnaval, o de 67. Nunca as mulheres se despiram tanto. Muitas usavam menos que a folha da parreira. Foi essa nudez difusa, multiplicada, oferecida, que matou todo o erotismo dos bailes e das ruas. Os homens nem olhavam os nus; ou olhavam com surdo ressentimento e um tédio cruel. Era como se, de repente, nascesse uma incompatibilidade maligna entre os dois sexos. E, por isso, foi um salubérrimo Carnaval, sem nenhuma obscenidade. O que víamos, nos bailes, nas ruas, nas avenidas, eram castíssimas multidões.

Todavia, de vez em quando, julgo perceber no Rio moderno o clima de 1919, logo após a espanhola. Imaginem vocês que, há uns dez ou quinze dias, o Otto Lara Resende resolveu conhecer a noite. Como se sabe, há toda uma promoção tenaz e profissional da noite. Há sujeitos que pagam o leite do caçula e o sapato da mulher escrevendo sobre a vida noturna. E o Otto traçou o itinerário sábio e proveitoso e invadiu a madrugada. É ele próprio quem o diz. Voltou da noite apavorado. Por exemplo: o Bateau. Todo mundo desgraçado, todo mundo no extremo limite da loucura e do suicídio. É uma excitação sem desejo. É uma obscenidade sem prazer. É um deserto interior, deserto inconsolável, sem uma pia, sem uma bica. De repente, o Otto viu um padre. Quem o trouxe, quem? Segundo o próprio Otto, ele veio pela mão de um velho conhecido nosso: — o Diabo. E podia ser também o próprio Satã, numa de suas inumeráveis caracterizações. De que igreja, ou de que deus, seria essa batina que florescia, ali, numa mesa do Bateau? Súbito, a batina começou a se encharcar de uísque. Aquele só podia ser o sacerdote de uma fé defunta e de um deus também fenecido. E todo mundo, ali, tinha a cara vingativa dos suicidas. No seu canto, o religioso passava a mão na cara para sentir a própria hediondez.

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