(Seção Prosas de batuques e cachaças)
(do livro: Menina sem estrela)
Crônica 27
“(…) a opinião pública, repito, estava com a peste e disposta a matar e morrer pela peste.“
Conheci, na minha infância, o Brasil dos velhos. Hoje, não. Hoje, por toda parte, o que se vê e o que se ouve é o alarido dos jovens. Não há velhos, ou por outra: — ninguém quer ser velho. Sujeitos de setenta anos adulam a juventude. Ainda ontem dizia-me um setuagenário: — “O jovem tem razão, sempre”.
O ancião falava assim e tinha o olho rútilo e a salivação intensa. Achei graça, ou, por outra, não achei graça nenhuma. Não me ocorreu uma palavra, uma objeção, nada. Num escândalo mudo, apenas ouvia. E, de repente, passa por nós um rapaz, um latagão eufórico, solidamente belo como um bárbaro. O velho pareceu lambê-lo com a vista. Saiu atrás, num deslumbramento alvar.
Confesso: — esse pequeno episódio deixou-me uma impressão profunda. Penso em certos velhos que fazem uma promoção frenética dos novos. Pergunto: — não há, em alguns casos, uma certa pederastia retardatária, utópica, idealizada? Não estou afirmando nada; insinuo tão-somente um tema para a meditação dos outros.
Volto à minha infância. Na rua Alegre, não era ainda degradante ser velho. O sujeito podia ter, impunemente, setenta, oitenta anos. Conheci crioulos de cem anos. Ah, os veteranos da Guerra do Paraguai! Eram velhinhos ainda tesos. Estavam sempre mascando fumo de rolo e cuspiam negro. Eu, com sete, oito anos, achava os velhos muito mais fascinantes do que os jovens. Um dos nossos vizinhos era um ancião hemiplégico. Até a doença me parecia linda. E a rua, os bondes, as sacadas, tudo era uma paisagem de velhos. Quando penso no Brasil de minha infância, me lembro, sem querer, de Confúcio. Vocês conhecem a história. Um dia, em certo jardim, uma virgem sonhava. De repente, veio um raio de sol e tocou-lhe o ventre. Assim nasceu Confúcio, filho de uma virgem com um raio de sol. Mas nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva.
Para mim, garoto de calça curta, acontecera algo parecido com Rui Barbosa. Era como se ele tivesse nascido com setenta anos, e já conselheiro, e já Águia de Haia. E, hoje, me dá uma certa pena notar que não há mais, como outrora, os setuagenários natos.
Em 1919, ia muito, lá em casa, um amigo do meu pai, também jornalista. Chamava-se Nepomuceno e, se não me engano, trabalhava no País ou na Gazeta de Notícias. Era velhíssimo. Vocês conhecem o nosso contemporâneo Salim Simão. Só fala aos berros e o seu suspiro é ainda um berro. Quando entro no Estádio Mário Filho e não ouço o seu berreiro, me sinto um frustrado. Nepomuceno era um Salim Simão das velhas gerações. Igualmente ululante, seu bom-dia era uma agressão. E, quando aparecia, eu vinha para perto, como um pequenino magnetizado. E o Nepomuceno dizia uma coisa que marcou toda a minha vida. Ainda o vejo, no meio da sala, atirando patadas e bramando: — ‘‘A opinião pública é louca! Louca!’’. Isso dito, aos arrancos, me assombrava. E eu, meio acuado pelos berros, acreditava piamente na demência tão rumorosamente anunciada.
E, para demonstrar a loucura da opinião pública, Nepomuceno falava da vacina obrigatória. Ouvi a mesma história umas cem vezes. Mais tarde, fui ler, nas velhas coleções da Biblioteca Nacional, o que acontecera na época. E, de fato, toda a cidade se levantara a favor da peste e contra a vacina; a favor das ratazanas e contra Oswaldo Cruz; a favor da varíola e contra a saúde. O que se disse de Oswaldo Cruz, nos lares, esquinas, botecos e retretas. Ninguém a seu favor e todos contra. Foi chamado de escroque, moleque, ladrão e analfabeto. Cada geração tem um “inimigo do povo” de feitio ibseniano. Oswaldo Cruz foi o da sua. E, até hoje, não se entende por que o povo não o caçou, no meio da rua, a pauladas, como uma ratazana prenha. O clamor popular não era bastante.
Houve um levante armado. E tudo por quê? Porque a opinião pública, repito, estava com a peste e disposta a matar e morrer pela peste. Anos depois, morria Oswaldo Cruz de morte natural. Mentira. Não foi natural.
Morreu assassinado pela unanimidade. E, através dos anos, nunca mais me esqueci de Nepomuceno. Quando vejo o Salim, tenho vontade de dizer-lhe: — “Conheci um que berrava tanto quanto você”. Mas o tempo passou e, hoje, posso dizer que tive várias e patéticas experiências pessoais com a opinião pública.
O assassinato do meu irmão Roberto. O julgamento coincidiu com o meu aniversário. Eu fazia, se não me engano, dezoito anos no dia 23 de agosto de 1930. Meses antes morrera meu pai; pode-se dizer que a mesma bala assassinara os dois. Meu Deus, não havia muito que discutir. Eis a questão: — podia alguém “matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”? Temos direito de matar o filho, ou a filha, ou a mulher do nosso inimigo?
Não assisti ao julgamento. Fiquei, em casa, ouvindo pelo rádio. Eis a verdade: — a opinião pública achava que se podia matar um dos filhos de Mário Rodrigues; não diretamente o próprio Mário Rodrigues, mas um dos filhos, e tanto podia ser Roberto como Mário, Mário como Milton, Stella como Nelson ou, até, a recém- nascida Dulcinha. Lembro-me de um jornal que resumia, no título, um juízo final: — “Justo atentado”. E, em casa, antes de dormir, eu ficava pensando: — e a espinha serrada, por que não conseguiram extrair a bala? E o algodão nas narinas? E a filha ainda por nascer? E o meu pai morto? O júri fez o que a opinião pública exigia. Eu estava, no meu canto, em casa, esperando o pior. E veio o resultado: — absolvição, por uma maioria de três votos, se não me engano, três votos. O locutor dava berros triunfais. E o resultado mereceu uma ovação formidável. Um clima de auditório de rádio, de TV e mais de rádio do que TV. Naquele momento, instalou-se em mim uma certeza, para sempre: — a opinião pública é uma doente mental. E pensei numa fuga impossível. Viver e morrer numa ilha selvagem, só habitada pelos ventos e pelo grito das gaivotas.