Notas sobre José Ramos Tinhorão

(por Leo Pereira / Seção Zumbidos / foto de capa: Jefferson Coppola/FOLHAPRESS)

José Ramos Tinhorão faleceu hoje, 03 de agosto, aos 93 anos. Sociólogo, historiador, pesquisador da música popular e crítico musical publicou mais de 25 livros, alguns deles bibliografia básica para qualquer um que queira se aproximar da história de nossa música popular. História nada descritivista e escrita sob um ponto de vista crítico bem definido. Interessante notar que diversas matérias de hoje o colocam apenas como historiador ou pesquisador musical. É a pá de cal que alguns querem forçosamente fazer com sua obra. Mas sua força crítica ainda ecoa para pensarmos o Brasil sem as amarras da ideologia dominante, cuja força se dá por despolitizar a cultura popular para negociá-la.

Falar mal ou fazer troça de Tinhorão é fácil. Poucos o leem pra além da caricatura histórica de nacionalista-stalinista feita por seus adversários na década de 60/70. A própria alcunha, vinda de nome de planta, servia a eles para o desqualificarem. Tinhorão sempre incomodou pois nunca se esquivou de pensar e debater, com erros e acertos, o lugar da música popular no processo modernizador do Brasil e seu projeto utópico, em que perpassava a conciliação amansadora de classes. E esse lugar tinha história e política em relação entre as classes baixas e a classe dominante, brasileira e internacional.

José Ramos Tinhorão disse em reportagem à Folha de S. Paulo não ter arrependimento nem remorso das querelas do passado, mas, em perspectiva, fez hoje uma sutil admissão: “Eu poderia ter sido mais maneiroso. Teria sido mais cômodo, eu me tornaria mais conhecido. Mas é o meu jeito”. Vale notar que o maneiroso é o lugar da crítica que sempre louva os gênios, que pouco analisa, que ratifica a indústria fonográfica como algo natural da vida – ao mesmo tempo que não debate a questão do próprio trabalho do músico em suas condições. O maneiroso é político até o dedo do pé e sabe usar os jargões pra se encaixar no mais do mesmo do campo da música. A Folha, talvez, sempre o quis maneiroso; e ele nunca cedeu.

Logo em seu primeiro livro “Música popular: um tema em debate”, os marqueteiros da Bossa Nova, Bôscoli e Mieli, fizeram a performance de queimar seu livro num palco de uma boate carioca. Tinhorão responde num dos prefácios da edição que a Bossa acabou, seu livro continua vivo. Para além da anedota é neste livro que Tinhorão expõe seu método sociológico.

Outro adversário foi Caetano Veloso que desde 1966 em seu artigo “Primeira Feira de Balanço” fez deboche de Tinhorão dando a alcunha de “histéricos” aos artigos do crítico musical. É justamente nesse artigo que Caetano levanta sua tese do “processo evolutivo da música popular brasileira”, uma leitura linear, de causa e efeito que culminaria na total modernização da música popular (e logo no próprio Caetano!) e que soterrou questões sociais profundas sobre o próprio processo modernizador no Brasil. O embate público não é mera briga, mas revela pontos de vista de intelectuais relevantes sobre o processo modernizador na cultura brasileira.

Tinhorão conseguiu colocar um problema até então não formulado na crítica musical, ainda que Mário de Andrade tivesse feito algo incipiente: “a contradição entre forma e expressão cancionais é a sedimentação de conteúdo histórico e que este é um caminho crítico no estudo da música popular brasileira”, como aponta Manoel Dourado Bastos no ótimo artigo “Um marxismo sincopado: método e crítica em José Ramos Tinhorão”. Como intelectual de intervenção colocou em debate o que a classe dominante sempre fez em nossa história: colocar a cultura popular como mera identidade e não relacioná-la as suas condições sociais e históricas. 

O fundamento primeiro do trabalho de Tinhorão estava intimamente ligado com o interesse à esquerda de definição conceitual e política do conceito de povo e com a definição de estratégias para que os intelectuais se articulassem com este, teórica e praticamente. Sua briga com a classe média era justamente para chamar a atenção desta classe, disforme por excelência, de que sem crítica radical a briga política seria inócua, jogo de soma zero. Na verdade zero para os artistas populares distantes do panteão; muitos zeros para toda a indústria que explorava a cultura popular e algum destaque para os diletantes culturalistas.

Walter Benjamin, na Alemanha da década de 30, foi o precursor em pensar a materialidade da produção artística, compreendendo que a cultura de maneira geral já havia deixado de ser meramente “estruturas de significado” para se metamorfosear em mercadorias produzidas por um complexo industrial e para abastecer um mercado em rápida expansão, o qual, por sua vez, compreendia condições e relações de produção, distribuição e consumo. Todas as obras de arte estão dentro de algum nível da indústria cultural. Aqui no Brasil podemos dizer que foi Tinhorão quem elaborou algo próximo a isso, ainda que a consequência dos seus argumentos muitas vezes aplainasse o próprio objeto artístico. Para ele, o samba era mercadoria, sem que isso desmereça o próprio objeto artístico. A ascensão social do samba como produto de mercado do governo getulista em diante apresentava um problema de classe, pois as camadas baixas forneciam a matéria-prima para os modernizadores, sendo elas mesmas alijadas do processo modernizador.

Assim, o autor marxista estava interessado em determinar o fundamento social da experiência da música popular, ou, nos termos mais afeitos ao propósito de seu primeiro livro, tratava-se de indicar seu ancoramento na luta de classes e a ideia de povo ali contida. Manoel D. Bastos formula muito bem a ideia: “Com isso, Tinhorão acertou em cheio o problema: para quem estivesse interessado em compreender as determinações da luta de classes no Brasil, o samba, como expressão originária da ―música popular brasileira‖ (ainda sem maiúsculas), era (e ainda é) um objeto privilegiado, pois ali se entroncavam feixes históricos fundamentais deste processo. O descompasso de temporalidades na luta política e na estrutura social em que esta ocorre saltava a primeiro plano quando Tinhorão abordava o samba por um viés do problema que se determinava pela noção de luta de classes.”. E esse problema não é nada trivial.

É com Tinhorão que aprendemos a pensar na relação entre forma cancional, mediada pela indústria, e processo social. Ainda que o crítico musical tenha seus engessamentos analíticos, ele não se ancora em leituras reducionistas que tratam o objeto artístico como mero reflexo direto da sociedade, muito embora faltasse a ele elementos musicais para melhor fundamentar sua crítica; também não parte da relação em que o objeto apenas dialoga com o contexto histórico. As tensões sociais que definiriam a sociedade brasileira estariam determinadas na forma cancional e sua expressão arranjada, uma vez que o trabalho dos arranjadores teriam como baliza a ideia estética, fechada sobre si mesma, e a lógica de mercado da indústria fonográfica, a qual busca a padronização até o seu esgotamento, mesmo para aquilo que seja “refinado” ou “sofisticado”. Não por menos que a estética tropicalista e a aliança com os arranjadores supostamente vanguardistas deram um sinal de alerta para esse projeto de reposição da cultura popular com seu toque modernizador: não haveria mais limites para a circulação da mercadoria. E isso tornou-se luta política.

Aliás, são desses dois jargões – “refinados” e “sofisticados” – ditos à esquerda e à direita que Tinhorão me ensinou a desconfiar, assim como os grandes mestres nos fazem, muito além de dar respostas prontas a problemas complexos. Tinhorão formulou problemas nunca antes formulados. É por isso e por toda sua obra que o agradeço.

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