Leitieres Leite: reflexões permanentes da insatisfação musical e social (transcrição de trecho de uma de suas últimas entrevistas)

(Seção Zumbidos / por Leo Pereira)

Dia 27 de outubro de 2021 não é para esquecermos.

Olodumaré decidiu com Ikú o momento da morte do maestro, compositor e professor Leitieres Leite. Momento difícil pelo qual o país passa, e parece não acabar. Leitieres foi sobretudo um artista empenhado em conhecer o Brasil, nos escombros da história. Sabia de quase tudo, estudou tudo o que foi possível. Incansável, assim como todo mestre.

A força da morte é de abalar o cotidiano, assim como afirmava o antropólogo Lévi-Strauss. E, sim, para todos aqueles que pensam a música brasileira a morte de Leitieres foi um abalo. Sua obra, por suas gravações e por todos aqueles que foram seus alunos, diretos e indiretos, ainda vive.

Numa de suas últimas entrevistas, chamou-me a atenção, o sujeito político Leitieres Leite. Seu conhecimento musical se relaciona à vida social, historicamente produzida em suas contradições. No caso da música, popular ou não – e este debate nem estaria em pauta para ele -, há um ponto de vista sempre relegado para aqueles que a analisam: a situação concreta da vida do músico-trabalhador, muito além do panteão do sucesso, momentâneo ou glorioso da chamada MPB. Esta vida concreta se passa pela profissionalização, as condições de vida do trabalhador, a história da música como parte integrante do modelo de industrialização fonográfica etc.

Transcrevi esta entrevista como forma de registrar uma intervenção do maestro com força analítica, ainda que breve, de como ele pensava o Brasil e algumas de suas contradições sócio-musicais. Seu empenho em estudar as matrizes africanas de nossa música apresentou o grande problema: ainda há muito o que se pensar e debater sobre a música brasileira…

E = Entrevistador

L.L. = Leitieres Leite

E.: Tem uma pergunta para a gente falar um pouco dessa sua fala de a indústria ter sido muito extrativista e não ter se preocupado de alguma forma com o tamanho do que ela já sinalizava pro mundo inteiro. Como você diz: “eu vivi, eu sobrevivi muito tempo da indústria e acho que ela deveria ter um olhar mais ampliado sobre o que ela representava”. É isso mesmo?

L.L.: Eu vou começar falando sobre o termo extrativismo. É uma licença poética. Todos nós sabemos que “extrativismo” vamos usar pra minerais,cana-de-açúcar, algumas coisas de monocultura e outras não. É uma licença poética. O extrativismo é uma coisa que você retira e não replanta. Então o que acontece: qual era a matéria-prima da nossa cultura afro-baiana? Dentro do princípio, quando o Olodum surge no…na rebaianização nos anos 70, em 74, com o Ilê-Ayê, 79 com o Olodum, porque pra mim ainda é um fato que a gente precisa conversar, se aprofundar muito, porque confunde um pouco quando a gente começa a estudar isso com profundidade como se essas entidades fossem entidades ancestrais, e não são ancestrais, são contemporâneas. Então é simples…

E.: Mesmo que remetam [à ancestralidade]…

L.L.: Sim, remete, e são baseados em fatos ancestrais, mas são instituições contemporâneas. Mas isso no olhar do “de fora” não é muito claro, você sabia disso? No exterior dizem “O Olodum tem 200, 300 anos”, entendeu? As pessoas ficam fazendo essa…não é isso, é porque não temos uma discussão, não tem tempo pra discutir cientificamente, intelectualmente esses acontecimentos como acontece em outros países.

Vou dar o exemplo do jazz norte-americano, que é muito organizado, sendo que tem lá o PHD em não sei o quê, aí estudou o estilo de Billi Holliday etc etc. Eu falei extrativismo como licença poética pela falta de replante, em vários setores. Eu vou falar uma coisa muito grande, visível, que é casa de espetáculo. Quando eu tava no auge eu devo ter feito quatro centenas de discos, trabalhei com quase todos os artistas com a indústria da chamada Axé Music, da música da Bahia, que eu sempre cito os fatos, positivismo, deslocamento do centro obrigatório que era Rio-São Paulo pra cá pra Bahia, isso foi uma coisa fantástica, mérito do nosso saudoso Wesley Rangel também, por ter investido capital, investido o capital, investido como empresário, acreditar que poderia ter investido aqui [Bahia] o capital no próprio lugar, não tinha a possibilidade de um músico da Bahia de viver de uma maneira mais digna, digamos assim, aqui era impossível. Grandes músicos baianos foram pra Rio-São Paulo. Trouxe uma opção de mercado maior. A tecnologia, o acesso à tecnologia…não vou enumerar a quantidade de fatos positivos. Mas é preciso uma reflexão porque eu não entendia nunca em fato…Vamos dizer primeiro da casa de espetáculo: quando eu saía da Bahia, e eu acompanhei vários artistas, eu ia aqui em Campina Grande, abria uma casa de espetáculo e me perguntava “Meu Deus do céu, por que em Salvador não tem isso?”, aí eu ia aqui em Aracaju…”Meus Deus do céu…”, e isso minha cabeça dando nó!, e eu sempre curioso, e isso é de quem é curioso!, porque eu poderia estar tocando meu saxofone, tocar lá e ir pra casa, mas eu quero entender onde eu tô, onde eu pisei, eu tô vivo. O cérebro da gente é tão subutilizado que eu queria entender a estrutura e por que é que a gente não tinha! E comecei a pesquisar. São Paulo, Rio e Recife tinham…a casa de Recife era imensa, ar condicionado etc. Nós que somos a pessoa que criamos um sistema.

O Axé Music é uma coisa muito maior do que se pode imaginar. Musicalmente, não, porque o Axé Music musicalmente ela não criou, ela se apoderou. A indústria se apoderou de coisas que já existiam secularmente, e isso é comprovado musicalmente. Não é como um movimento de satisfação artística-estética, por exemplo, Bossa Nova. Não, Bossa Nova foi inventada. Harmonia do jazz, criada pelo nosso Baião, pega o violão, cria uma batida sintética do samba, porque o samba era tocada com muitas notas, aquilo vai passando pra todo mundo etc. E tem outros momentos na música brasileira, como a música mineira que surge de uma insatisfação estética. Não é o caso do Axé Music. Ela é uma música que é assim…

E.: Ela é o quê? um gênero? um estilo?

L.L.: É um gênero da indústria fonográfica. Não apenas por satisfação estética. Eu posso dar exemplos bem claros. Primeiro: todos os ritmos estão organizados em culturas anteriores, muito anteriores. Vamos falar de uma única música, eu ia falar sobre as casas…em Salvador não tinha essa grande casa, porque deveria ter não só a grande, mas deveria ter o grupo que pesquisa, que apoia as entidades afros, de onde vem a informação, entendeu? o desenvolvimento da música na esfera da educação pública, como aconteceu em São Paulo o Projeto Guri, em que se tem 35 mil jovens, e a gente não tinha uma coisa parecida. 35 mil pessoas sendo educadas através de formas musicais. Nós tínhamos em Recife, sabe o quê? O movimento do maestro Duda, de preservação do frevo, bancado pelo Estado, pelos empresários!, que gerou aquele movimento todo…e eu não via isso em Salvador!

Eu via assim: a indústria faturando horrores, mas só pra acúmulo! pra acúmulo! E quando você trata isso de alguns produtos, tudo bem, não é tão grave. Mas quando você trata de um bem cultural de uma cidade como Salvador, que é uma das referências da formatação de questões rítmicas complexas com poucas semelhanças no planeta Terra, aí tem que ser tratado diferente! Entendeu? O termo extrativismo foi usado nesse sentido. Eu acho que merecia um investimento maior, em todas as esferas.

E.: É daí que nasce o seu pensamento da Rumpilezz?

L.L.: O pensamento da Rumpilezz nasce da insatisfação, mas musical. É ao contrário, não foi da indústria.

E.: Uma insatisfação mercadológica…

L.L.: É porque o mercadológica a gente sabe, né? Nós não tínhamos material humano pronto para serem os empresários, produtores, as pessoas tiveram que se virar do dia pra noite, né? Você sabe disso. Tem empresário que vendia calça jeans ou cuidava de atletas e do dia pra noite teve que entender de música e lidar com uma coisa…que se tinha Poladian [Manoel Poladian, empresário de uma das maiores produtoras artísticas do Brasil desde a década de 60] …!

E.: Você sabe…eu tinha nessa época um amigo que dizia: “Poxa, André, eu acho tão bacana o que tá vindo…”, sem olhar preconceituoso, etc…mas ele dizia assim pra mim: “o que vem da Bahia ainda é muito pouco”.

L.L.: Ainda é muito pouco. A questão do profissionalismo dá um déficit, porque é assim: se você tem uma música poderosa, que sempre foi, a diferença é que a música foi pra dentro da indústria…

(link da entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=8OS_13tZVao&t=325s)

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