O dia em que conheci Toinho Melodia

(por Felipe Siles / Seção: Zumbidos)

O ano era 2014, eu tocava piano e sanfona em um grupo chamado Coletivo Roda Gigante junto com meus companheiros Maurício Pazz (bandolim), Renato Pereira (violino), Bruno Butenas (guitarra), Rodolfo Stocco (violão), Ricardo Perito (cavaquinho), Lucas Brogiolo (percussão), Alysson Bruno (percussão) e Rafael Galante (percussão). A gente tinha recém-gravado um show muito bonito, que na época a gente tinha intenção de lançar em DVD, e fomos convidados pelo casal de embaixadores do samba, Waldir Dicá e Maria Helena, para participar de uma roda de samba no projeto deles, o Terreirão Cultural, servindo como base instrumental para os sambistas que fossem cantar. A roda foi muito bonita e foi um prazer enorme estar ali naquele contexto com tantas figuras do samba paulista, tanto os bambas da velha guarda, como também alguns sambistas mais jovens. A coisa fluía muito bem, até que um senhor mais velho entrou na roda. Seu nome: Toinho Melodia. Já tinha ouvido falar…

Quando ele começou a cantar, a roda veio abaixo! Várias coisas chamavam a minha atenção. Em primeiro lugar, a qualidade de suas composições, tanto a letra quanto a construção musical. A performance do “véinho” era espetacular. Tinha qualidade como cantor, presença e carisma. E por último, me despertava também admiração a sua consciência musical: entre uma frase e outra dos sambas ele solfejava pequenas linhas melódicas que nos davam a dica de qual acorde viria a seguir.

Coletivo Roda Gigante no Terreirão Cultural (2014)

A partir dali, comecei a prestar atenção no tal Toinho Melodia nas redes sociais e vi que ele se apresentava com regularidade no Ó do Borogodó. Ficava ali naquele amor platônico, torcendo para um dia ser convidado para esse time, já que alguns amigos, como a flautista Angela Coltri, integravam o grupo que o acompanhava e podiam me convidar. Mas o convite veio em 2017, três anos depois, por indicação do multi-instrumentistas de cordas Eduardo Camargo. Como ocorre com todo sanfoneiro, chega próximo do mês de junho e começam os convites para tocar em diversas festas juninas. E naquele ano não foi diferente, eu já estava com a agenda lotada de festas juninas nos sábados e domingos e me lembro de ter apenas dois dias livres no mês inteiro. Tomei a decisão de que precisaria descansar e não aceitaria nenhum trabalho nessas duas datas, por melhor que fosse a remuneração. O que eu não imaginei é que viria aquele tão sonhado convite justamente em uma dessas duas datas. Perdoem o palavreado chulo, mas o que eu pensei quando o André Santos (pandeiro e produção) me ligou foi justamente isso: “foda-se o meu descanso” – e obviamente aceitei o convite.

A ideia do André e do Conjunto Picafumo, que acompanhava o Toinho, era de comemorar o aniversário do Toinho Melodia em clima de festa junina aquecendo os preparativos para a campanha de crowfunding de lançamento do seu primeiro disco, o Paulibucano. E a ideia de convidar um sanfoneiro para o “Arraial do Toinho” na Casa Barbosa era justamente testar essa sonoridade da sanfona nos sambas dele, para fazer referência a Pernambuco, sua terra natal. Eles tinham tentado diversos sanfoneiros, mas até ali eu era o único que tinha a data. E como diz o samba do próprio Toinho: “aconteceu o que tinha que acontecer”.  Tocamos na Casa Barbosa e a química funcionou tão bem que vieram outros convites: para tocar de novo na Casa Barbosa, para tocar no Ó, para gravar no disco, para escrever dois arranjos do disco, para tocar fixo no Ó do Borogodó até o final do ano, para viajar com o Toinho e o Picafumo para Recife (uma história à parte, que merece um texto separado) e, finalmente, o convite para integrar definitivamente o Picafumo, junto de Rodolfo Gomes (cavaquinho), Matheus Nascimento (violão), Verônica Borges (surdo), André Santos (pandeiro) e Paulinho Timor (percussão geral).

A dedicação ao Toinho foi tanta que, em 2018, ano de lançamento do seu primeiro disco, perdi a inscrição para o processo seletivo da pós-graduação da Unicamp. A semana de inscrições acontecia na mesma semana do show de lançamento, e eu estava imerso no processo, estudando as músicas, ensaiando com o Picafumo, ensaiando o naipe de sopros (que ficou sob minha responsabilidade), revisando e adaptando arranjos de sopros, estudando o roteiro do show, entre outras coisas. Foi um baque muito grande perder essa inscrição, já que eu estava muito focado nisso. Tinha perdido a minha mãe naquele período e queria dar o presente póstumo a ela, ingressar no mestrado, e a Unicamp era meu foco principal. Mas depois superei o fato, afinal Toinho Melodia esperou tantos anos pelo registro da sua obra em disco, não teria problema eu esperar só mais um ano para realizar meu sonho, ou até mesmo prestar o processo seletivo em outra instituição. E foi o que aconteceu, no final deu tudo certo, lançamos o Paulibucano, passei no mestrado na USP e mais uma vez “aconteceu o que tinha que acontecer”.

Sou muito grato e feliz de ter convivido com esse grande mestre e ter feito tantas amizades nesse processo. Sou muito grato por ter aprendido tanto com esse grande bamba. Sambistas como o Toinho são raros, e infelizmente estão acabando. Existe uma nova geração, mas é diferente, é outra coisa, não estou fazendo juízo de valor, mas pessoalmente acho que os sambistas da geração do Toinho são únicos. Toinho bebeu direto da fonte de Toniquinho Batuqueiro, Jangada, Geraldo Filme e Talismã, e estar com ele era, de certa maneira, estar com esses mestres também. Foram muitas histórias, muitas resenhas, muitas alegrias, muitas risadas e principalmente muitas rodas de samba!

Sempre vou me lembrar do Toinho como essa figura aparentemente simples, mas de um arcabouço sociocultural e político extremamente complexo. Toinho é um capítulo da história do samba paulista, é um brasileiro. A história dele é a história dos retirantes nordestinos, da Vila Maria, do futebol de várzea, do samba de beirada de campo, das escolas de samba paulistas, da resistência à ditadura militar, da militância à esquerda e das memórias negras da cidade de São Paulo, infelizmente tão invisibilizadas. Toinho era tudo isso e mais um pouco: uma figura doce, carinhosa, teimosa, um sujeito acolhedor que agregou muita gente boa ao seu redor. Sua história de superação pessoal mostra o quão potente a arte pode ser na vida de um sujeito. Toinho exalava arte, samba, criatividade, fazia samba com extrema facilidade – muitas vezes chegava com sambas novos compostos no ônibus a caminho dos nossos ensaios.

Como já dizia Hampate Ba no texto “Tradição Viva”, em África cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima.

Axé!

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