(Seção Partindo alto: ensaios e artigos / foto de capa: Ala dos Sem-terra da escola de samba Império Serrano, desfile de 1996)
Este artigo foi publicado no jornal Folha da Manhã, em 20/05/1943, e republicado no livro de Jorge Coli “Música Final” (Ed. Unicamp, 1998). Naquele momento Mário de Andrade voltara a escrever em jornais, com uma postura menos combativa do que no fim da década de 20 e início de 30, mas sem perder seu tom incisivo sobre as questões artísticas e sobre o exercício da crítica, sobretudo em tempos de guerra. Ao escolher o chinês Nyi Ehr, compositor da Marcha dos voluntários, hino nacional da República Popular da China, o autor de Macunaíma apresenta, de forma indireta, seu posicionamento político em relação ao caráter da música nacional, claramente buscando o coletivo e o teor revolucionário.
Ao fim deste artigo você pode conferir a canção Chee-Lai!, de Nyi Erh, cantada pelo artista e militante estadunidense Paul Robeson – pelo que dizem uma das fichas mais extensas do FBI dada a perseguição pelo Macartismo até o fim de sua vida, em 1976.
“Mas o que me inquieta muito é observar que numerosos brasileiros se recusam a aceitar e compreender a ‘nossa’ guerra, e a outros, mais numerosos ainda, dilui a nebulosa duma inconsciência total. Merecem qualquer espécie de arte, esses infelizes? Não estarão eles fazendo das artes, mais um pretexto de incompreensão e inconsciência?…”
Hesitei bastante em aceitar esta crônica musical na “Folha da Manhã”. Duas razões principais me levavam, mesmo limitado agora à arte da música, a não querer quebrar o silêncio que há doze meses me apagou dos jornais de meu país. Não tenho motivo nenhum de queixa contra os jornais do meu país, se entenda. Pelo contrário, diante do que sou, o que me assombra é a acolhida que sempre recebi. Me assombra tanto que daquela vez em que tive de escolher, entre os meus sete instrumentos, o que me desse um número profissional na bicha pátria, sempre encontrei o liberalismo; a cada redação em que bati, sou grato. Os motivos que me levaram a este mutismo de um ano foram dúvidas pessoais, angústias, desesperos desta hora terrível para os homens de paz. Mas acabei me convencendo que errei. Não deve haver um único mais, homem de paz.
Mas das duas razões que me deixaram hesitante em aceitar este rodapé musical, a primeira, muito pessoalmente forte, é a que se refere aos meus….sim, aos meus cabelos brancos. Convencionaram nesse mundo que os calvos não podem aludir aos seus cabelos brancos…Afinal das contas são raríssimas as calvícies absolutas, dessas que se ajustam com a aderência reptil da peruca, ao que Platão chamaria “o universal careca”. Sucede que, na maioria, as calvícies se emolduram de felizes cabelinhos, estes discretos, outros impertinentes, que obedecem ao mesmo destino banal de fatigar-se e branquear, exatamente como os dos demais bípedes cabeludos. Os meus branquearam assim. Alvejaram de muita luta e labuta, e a eles aludo porisso. É que me sinto fatigado como eles, e não pretendo mais bracejar, lutar, nem me ferir no domínio da crítica profissional.
No entanto, eu estou convencido de que jamais estivemos tão precisados de uma verdadeira crítica profissional, no brasil, como atualmente. As nossas artes todas estão se passando com rapidez do amadorismo ou quando muito do profissionalismo intermitente, para o profissionalismo legítimo e cotidiano. E a uma arte profissional tem de corresponder uma crítica profissional, cujo mérito mais importante, no momento, é o de dar a essa arte consciência de sua profissionalidade. Entre os seus muitos valores, eu creio que o valor maior e moral de Sérgio Milliet para as nossas artes plásticas é justamente esse. O malestar quase agônico que ele causou, e ainda causa bastante, em nossa pintura, foi ter estadeado entre os artistas, uma forma de crítica que não fazia mais de seu juízo uma batalha de flores, mas o convertia verticalmente numa profissão.
Ora eu confesso que os meus cabelos brancos fatigados já vão pouco a pouco tendendo para a batalha de flores. Mas neste ponto me advertiram que o canto a que me convidavam no jornal não era o da crítica profissional, pois esta já estava entregue a mãos escolhidas. O meu mundo musical era “o outro lado de lá”, como diz a cantiga popular. E nesse mundo eu podia fazer as digressões e até as batalhas de flores que é muitas vezes mais livre e mais reveladora que a justiça irredutível da crítica profissional. É a que um grande ensaísta português, Osório de Oliveira, apelidou de “crítica apologética”. É a crítica que fazemos dos amigos admirados, a análise que preliminarmente se liberta das insídias da incompreensão e das inimizades, porque floresce de raízes envelhecidas no conhecimento e no amor.
A segunda razão que me fazia hesitar, ainda será talvez mais grave, e lida com os homens de paz. Nós vivemos um tempo de guerra, decisório para a humanidade, e toda a nossa existência deve estar convertida em guerra. Ora, neste tempo de guerra, haverá lugar para as artes da paz? Haverá lugar para uma Venus pintada, um romance psicológico, um recital de piano?…A resposta é incontestável: tudo isso é a terapêutica mesma da guerra, é guerra contra a guerra de nervos, é ensalmo para o combatente exausto. Há um lugar necessário para as artes nos países em guerra, e o Brasil está em guerra também. Mas o que me inquieta muito é observar que numerosos brasileiros se recusam a aceitar e compreender a “nossa” guerra, e a outros, mais numerosos ainda, dilue a nebulosa duma inconsciência total. Merecem qualquer espécie de arte, esses infelizes? Não estarão eles fazendo das artes, mais um pretexto de incompreensão e inconsciência?…
Eu sei que deve haver uma harmonia no ser humano que lhe permite, na data de hoje, escutar livremente o violino de Geminiani ou o cravo inda mais gratuito de Haydn, sem a obrigação de os condenar. Nem mesmo haverá obrigação de os transportar para os interesses destas nossas guerras contra todas as prepotências em geral. Existem, é certo, por aí tudo, os diletantes, os quintas colunas, os mascarados confusionistas. Mas outro lado, com dois meses de crônicas, estou no dever de fixar o meu mundo, impedindo qualquer confusão entre esses indignos e os dias em que meu assunto livre será apenas um desfatigamento de espírito dolorido.
E foi nesta exigência de me caracterizar desde logo, que eu pensei nesta primeira crônica, em propor aos que me lerem o músico que eu considero o mais sublime do mundo moderno, o mais digno de ser admirado e seguido. É um caso em que o embaraço da escolha não existe pra mim. A arte é um elemento de vida, e não de sobrevivência, já afirmei. Os artistas não existem para ficar ricos ou célebres, mas pra auxiliarem o exercício da vida, com as suas definições e condenações. E a minha convicção, o meu entusiasmo apaixonado não titubeia um segundo em gravar nesta folha o nome de Nyi Erh. Poucos conhecerão entre nós este grande chinês. Eu mesmo não tenho dele o conhecimento que desejava ter. Apenas, por favor do “Music Educators Journal”, lhe canto um hino e a vida.
Nyi Erh, a comparação do mau gosto se impõe, como o nosso Carlos Gomes, um dia fugiu da casa dos pais. Bem mais feliz que o brasileiro porém, não encontrou no seu caminho um mandarim bordado que o enviasse à ópera na Itália. Chinezinho do Iunã, logo se ajuntou a um farrancho de cantadores ambulantes, que ele acompanha malemal no seu violino arranhado. E vive assim, vive na maresia dos portos, vive no suor dos operários urbanos, ou entre os plantadores de arroz e chá, conhece todos os homens do ar livre. Entre eles, trabucando com eles, lhes dando mais alma com seu violino arranhado, Nyi Erh se impregna do canto da sua terra natal.
É dentro do espírito dessa melodia milenar do seu povo que ele principia cantando também. Nyi Ehr sabe pouco de música, aprendeu por alto a sua artinha. Mas as suas canções humaníssimas se popularizaram com rapidez absurda, a “Canção dos Estivadores”, a dos “Pescadores”, e “Canto dos Construtores de Estradas”. Não há quem não as conheça e não as cante, entre os que precisam cantar.
Mas o canto preferido de todos, o que Nyi Ehr compusera levado pela preocupação maior da sua vida, é o “Chee-Lai”. “Levantai-vos!”, inventado pelo seu ódio ao japonês opressor. “Levantai-vos!”, ele berrava, com olhos duplicados de lágrimas raivosas, “Levantai-vos!” se acaso recusais, como eu, ser escravos acorrentados”! …E a China inteira ergueu-se ao grito de “Chee-Lai”. Tinha também quislingues pela costa, mas aos milhões, aos milhares, os chins cantavam “Chee-Lai”! E até o valente Chang-Cai-Chec acabou acertando a mão, graças a Deus.
O sublime foi quando os japoneses assaltaram as cidades grandes do litoral. Aí ficavam as universidades chinesas, logo destruídas. Mas o canto foi sempre o mesmo entre mestres e estudantes, Chee-Lai! E resolveram mudar as universidades chinesas para os confins inatingíveis do interior. Trens e trilhos destruídos. Não tinha automóveis, não tinha mais caminhões, não tinha condução possível. Pois mudaremos nossos livros e nossos aparelhos a ombro de professor e de estudante. Apenas umas rixas improvisadas, puxadas por “coolies” de filosofia, medicina ou letras, ajudavam a carregar os aparelhos mais pesados.
E foi a mais inédita, a mais prodigiosa retirada do saber de que se tem notícia em toda a história do homem. As aulas não paravam. Quando um arvoredo oferecia uma sombra, quando a exaustão de um dia vencido passo a passo abria a paz da noite, lá estava um professor desmontado Lao-Tsê e aquele grupo de estudantes decifrando Shakespeare. De vez em quando um corvo japonês crocitava nas nuvens, baixava num átimo, fugia fácil, porque aqueles retirantes esqueléticos só lhe sabiam responder dos mortos. Agonizavam mais três do Direito, sempre os mais ousados, morrera o estudantinho de dealetologia portuguesa, fora-se o professor de Química, Chee-Lai! Chee-Lai!…cantavam. O hino de Nyi Erh surgia aos corações, berrava nas bocas chorantes. E as universidades se retiraram lentamente para os fins da China, movidas pelo canto de Nyi Erh.
Nyi Erh? …Este já morrera bem antes, assassinado pelos japoneses. Foi que um dia ele se apercebeu da responsabilidade que o elevava agora e desgostou de si mesmo. Não havia dúvida que ele dera todo o seu canto para o erguimento da China, todo o seu esforço já se dedicara ao congraçamento dos primeiros corais patrióticos, mas nada disto, nem a grandeza da mensagem, nem a arte viva que fazia, justificavam a sua falta de técnica. Precisava estudar, mas onde? Na China não tinha o que ele carecia, e não eram os Estados Unidos cheios do dinheiro, nem mesmo a Europa, que aceitariam o quase mendigo e seu violino. Só havia um jeito possível, o Japão.
Nyi Erh reuniu os amigos e comunicou o que decidira. Sim, ele bem sabia que estava na lista negra e o mais provável era a morte. Mas preferia a morte a continuar na desonestidade da ignorância, diante dos compromissos que assumira com a pátria. Chamou o amigo de peito, Liu Liang-Mo, lhe fez algumas recomendações finais. E partiu para o Japão, em junho de 1933. Era mocinho ainda, tinha 23 anos. Nem bem um mês passou e estava morto. “Afogado” decretou a polícia japonesa oficialmente, depois de examinar um cadáver sangrento.
Nyi Erh é o maior dos músicos do nosso tempo. Ele soube compreender que em certos momentos decisivos da vida, a arte só tem que voluntariamente servir. A recomendação de Nyi Erh espalhou pela China centenas de corais patrióticos. Nyi Erh ajudou como ninguém o levantamento do seu povo. Ninguém na China ignora o “Chee-Lai!”, que se tornou o hino nacional do milhão de guerrilheiros chins. Nyi Erh é o maior músico do nosso tempo.