Candeia: a última entrevista (Pasquim/1978)

(Transcrição de entrevista realizada em 1978 pelo Pasquim / Seção: Entrevistas: um lero pelas esquinas)

Em homenagem ao 87º aniversário de Candeia, abaixo segue a transcrição da última entrevista de um dos maiores compositores do samba e do carnaval carioca. Dentro os vários atributos que se pode dar a Antonio Candeia Filho, nascido no berço portelense, ressalto a sua constante elaboração entre a tradição, seu momento presente e sua utopia de comunidade, que iria muito além da Portela e alcançaria o Brasil. Nesta entrevista ele relata sua origem, sua formação, suas convicções e seus desejos artísticos.

Não há dúvida de que é uma das melhores entrevistas de Candeia. Confira:

Candeia morava em Jacarepaguá, numa casa rodeada por um quintal cimentado e, neste quintal, mesas e cadeiras davam ao ambiente um ar de botequim de Vila Isabel. Esta entrevista foi feita lá, entre um macarrão da melhor qualidade e uma cabritada bem-sucedida. De meio-dia às oito horas da noite, tudo falou-se, tudo bebeu-se e, quando terminaram as nossas obrigações, continuaram as nossas devoções, que a esta altura o samba comia firme e tinha muito partido alto feito por especialistas na matéria, como Casquinha, Chico Santana e Rufino. Candeia irradiava essas coisas. Sua casa era uma festa permanente, mas é de sua intensa atividade que se fala aqui. E esta festa acabou duas semanas depois que Simon Khoury, Lena Frias e eu fizemos esta entrevista” (Roberto Moura)

Roberto Moura – Fala, Candeia.

CANDEIA – Nasci em Oswaldo Cruz, 17 de agosto de 1935. Lá assisti a muitas cenas que depois foram marcantes, como a Guerra -, as pirâmides…

Ricky – Pirâmides?

CANDEIA – Dava-se o nome de pirâmides àquelas pilhas de materiais coletados durante a guerra: ferro, lata, borracha, não-sei-o-quê…Naquele tempo Osvaldo Cruz era campo, tinha cavalo, trem de maria-fumaça, era roça, mato mesmo. Os pontos marcantes era a Igreja de São Mateus, o Portela e a casa de Dona Ester, o lugar onde todos frequentavam.

Lena Frias – Uma casa de candomblé?

CANDEIA – Tinha o seu lado místico, entretanto não era de candomblé. Lá tive oportunidade de assistir às serestas e aos chorinhos, frequentados, por exemplo, por Luperce Miranda. (canta): “Há nos teus olhos a luz / que ilumina e conduz / uma nova ilusão”. Também Jair do Cavaquinho, Zé com Fome – depois Zé da Zilda -, Paulo da Portela, Pixinguinha. Começava com o samba, na frente tinha o chorinho, mais atrás o baile de salão, também sanfona, e lá atrás a escola de samba, a batucada violenta e da pesada. Enfim, havia uma série de ramos e influências da música brasileira, todos juntos. Depois que fiz o ginásio, fui trabalhar no Departamento de Obras e Saneamento do Ministério da Aviação, na Praça Pio X. Tenho boas recordações de lá, de onde saí pra fazer um concurso no DASP pra Polícia Especial.

Roberto – A famosa PE.

CANDEIA – Só que não tive a honra de participar dos grandes nomes da PE como Mário Vianna porque quando eu entrei já não tavam mais. Sivuca já era da PE como estagiário, fez concurso do DASP junto comigo. A PE foi criada por Getúlio Vargas como uma polícia de elite e tinha esse negócio de não entrar preto. (enfatiza) NEGRO NÃO ENTRAVA! Mas eu falei: “Se abriu o concurso em igualdade de condições, tô aí pra disputar minha vaga”. Passei e fui o terceiro colocado. Prova duríssima, malandro, foi mole não. Exigia muito fisicamente, tinha que ser atleta mesmo, mas como eu tinha 1,85m…hoje em dia tô gordo, mas já fui forte.

Simon Khoury – Foi o primeiro problema que você teve pelo fato de ser negro?

CANDEIA – Não tive esse problema. Sabia que ele existia mas eu o superei. Competindo em igualdade, ganhava quem tinha o melhor peixe pra vender. Quer dizer, meus próprios colegas é que diziam que lá não pintava negro.

Simon – E no colégio, na rua?

CANDEIA – Sinceramente, nunca senti essa carga diretamente porque sempre tive diálogo com as pessoas, mas percebia que isso existia. Uma vez fiquei chateado porque quis entrar num prédio lá na Av. Atlântica e o cara falou que eu tinha que entrar pela porta de serviço, pelo fato de ser negro; mas argumentei, me impus, e acabei entrando mesmo como eu tinha que entrar: pela porta da frente, como gente. Outra vez fui fazer uma diligência e fui maltratado porque as pessoas não queriam entender como é que um negro tomava a iniciativa de fazer aquilo. Pra mim é o menos importante fazer essas colocações que levar o papo pra aspectos individuais da pessoa física. Falar de Candeia não tem tanta importância quanto falar sobre minhas ideias.

Lena – Mas é fundamental fixar tua ligação com a Portela.

CANDEIA – Meu pai fazia parte da Comissão de Frente de lá. Antigamente, as festividades eram mais fáceis, não tinham caráter de festa, mas de reunião, havia uma aproximação entre as pessoas. As coisas eram mais lentas e tínhamos condições de ter um contato mais constante com as pessoas queridas. Hoje essas imposições todas nos afastam e ficamos às vezes seis meses sem vermos os amigos. É uma loucura, um ritmo vertiginoso, e as pessoas passam correndo. Sinto isos com o da Viola, um amigo de quem gosto imensamente, mas, sei lá, a gente fica três ou quatro meses sem se falar.

Simon – Seus pais ficaram apavorados quando você resolveu se dirigir pra polícia?

CANDEIA – Não houve nenhuma pressão. Todos os pais desejam que o filho progrida, melhore na vida, e sentiram que aquilo era melhor pra minha afirmação.

Lena – Mesmo porque ser policial era uma das raras opções.

CANDEIA – Dentro da polícia, como em qualquer atividade, existe o bom e o mau caráter. Temos excelentes policiais. Em todas as atividades as coisas dependem da educação e do interior de cada um. Talvez pela minha ligação com o meu ambiente, fui um policial que atuava em prol daqueles que necessitavam de um apoio ou esclarecimento, e SEM FAZER MÉDIA. Eu não podia modificar as posições nem contestar as leis e os regimes existentes – fui policial pela necessidade de sobreviver – mas não fiz disso um marco pra pressionar ninguém. Tanto é verdade que mesmo sendo policial consegui manter a popularidade que sempre tive dentro da Portela ou de outras escolas como Império ou a Mangueira. Gozo até hoje desse respeito porque nunca fui de plantar maconha dentro do bolso de ninguém, nunca forcei barra pra criar flagrante de bicho…a gente disputava o flagrante mas se perdesse, acabou. Havia o respeito natural de ser humano pra ser humano entre o cara e policial e o cara que não era mas merecia respeito por ser tão gente quanto eu. Até porque fui criado no meio de bandido e pistoleiro, tem colega meu que tirou 15 ou 20 anos de cana, lidei com o pessoal de favela, de morro, que tinham seus vícios por lá e me respeitavam por eu não ter. Quando tinham que fazer suas transações saíam de perto de mim porque sabiam que não me adaptava àquilo. Nunca fiz da polícia motivo pra persegui-los, pelo contrário, em algumas ocasiões me indispus lá. O cara por ser negro e andar de sapato branco, elemento de escola de samba, pra sair no carnaval, era visto como aquele cara, já havia a convicção de aquele elemento era um marginal. Eu entrava em choque justamente por achar que os maiores marginais – até hoje os maiores criminosos desse país – usam pastas e gravatas. Colegas meus diziam: “Já vai você soltar Seu Camilo porque ele sai na bateria! Já vai você bancar a Irmã Paula porque o cara sai na ala de não-sei-o-quê”! Eram coisas de gozação, mas que demonstravam alguma coisa.

Lena – Você respeitava o cara de sapato branco.

CANDEIA – Lógico que nenhum de nós pode agradar a gregos e troianos, mas de uma maneira geral, graças a Deus, consegui manter meus amigos em todos os lugares. Depois que sofri o acidente, um camarada chegou-se pra mim: “O senhor se lembra de mim?”, “Não…”, “Poxa, o senhor me prendeu”, “Prendi você, é?”, “Foi, o senhor tava com uma turma que acabou me prendendo”, “O que houve?”, “Não, mas não tem bronca não. Naquela época eu realmente era pilantra. Seu Candeia, sabe que depois dessa é que coloquei minha cabeça no lugar? Merecia aquela vadiagem porque era pilantra, hoje em dia tô na minha, negócio tranquilo, sem sujeira”. São certos casos da adversidade que ocorrem na nossa vida com um lado positivo.

Simon – Foi o acidente que fez com que você fosse ao fundo da nossa cultura?

CANDEIA – Nao fui eu quem me modifiquei, as coisas a meu redor é que se modificaram muito. Sempre mantive uma coerência, minha formação sempre foi assim. Me recordo bem como era a formação das pessoas antigamente quando a palavra dos homens valia. Hoje, tem que assinar um montão de papelote e assim mesmo ninguém garante ninguém. Me recordo que tinha a venda do Seu Manoel, um português, e do outro lado o botequim do Seu Saraiva, outro português. O Seu Manoel, que tinha condições de ter uma bruta geladeira, não vendia cerveja por respeito ao camarada do lado, pra não tirar sua freguesia. isso em Osvaldo Cruz, na minha época.

Roberto – E vindo de um português.

CANDEIA – As vendas ficavam abertas até duas horas da manhã. Meu pai saía de casa pra fazer umas compras pro almoço e antes das duas horas não pintava em casa. Eu até buscava as compras pra pelo menos adiantar, mas eu também ia chegando lá, me prendendo um pouco. Via aqueles negócios diferentes, uma linguiça frita na pedra de mármore, lascavam fogo…subia aquele fogaréu, meu irmão! Pagode comendo. Vinha um pão e eu beliscava ali mesmo. E Seu Manoel só não botava a cerveja pra não roubar a clientela do Seu Saraiva. Havia um respeito mútuo, natural entre as pessoas. Não fui eu que modifiquei, sempre mantive uma coerência dentro daquilo que sei, lógico que fui adquirindo outros valores e conhecimentos, mas as coisas é que foram modificadas ao meu redor. E eu não tinha muita leitura, até porque todos esses hábitos de cultura afro-brasileira são fornecidos verbalmente.

Lena – É uma cultura oral.

CANDEIA – Ela se transmite de pai pra filho, do pai de santo pra filha de santo.

Simon – Mas eu aprendi muita coisa no seu livro.

CANDEIA – É verdade, mas hoje há uma necessidade de escrever e citar essas coisas pra não se afastar demasiadamente dessas formações.

Roberto – Em que ano você entrou pra Portela?

CANDEIA – Me sinto integrado na Portela desde que nasci. Quando eu tinha por volta dos dez anos eu ia quase que escondido pra assistir lá na Portelinha, ao lado do Bar do Nozinho, e as coisas lá me impressionaram vivamente, até as vestimentas das pessoas eram interessantes, as baianas como Vicentina, Braulina, chinelos de couro de cabrito, turbantes…

Lena – Era normal andar assim?

CANDEIA – Era o cotidiano, nosso ambiente. Passei a sair oficialmente na Portela em 48-49, participando do último desfile na Praça Onze, quando foi inaugurado o prédio da Última Hora que pra nós foi um deslumbramento, um negócio envidraçado, três pavimentos.

Nasci sambista! Com 13 anos eu tava desfilando na Portela com um samba de Manaceia, uma homenagem a Getúlio Vargas, “A volta do filho pródigo”, negócio assim. Saí de marcação como se fosse um trabalhador, com uma chave na mão, bonezinho de operário. Foi um negócio bacana, mesmo porque não havia muita variação de fantasias. As escolas de samba antigamente era formadas pelas baianas, pelo coro masculino com duas variedades de fantasias e a bateria. Isso aí. Vinha o Mestre-Sala, a Porta-Bandeira e a Comissão de Frente. Não tinha essa diversificação de alas. Esse foi meu primeiro desfile profissional, entretanto, eu adorava carregar corda pela Portela, carregar a gambiarra pra dar a iluminação, tudo isso antes de eu sair fantasiado, participando do coro. Mesmo antes eu pintava nessa, adorava ficar lá com o pessoal.

Lena – Já compunha?

CANDEIA – Ainda não. Depois comecei a compor, mas não era pra mostragem ou publicamente. Sentia vontade de cantar e me conscientizava de que tava cantando um negócio que não era dos outros não, que era meu, meio sem pé nem sentido, boi com abóbora, mas vindo de mim.

Roberto – Como é que você avalia o papel do Paulo, um dos fundadores da Portela e responsável pelos acréscimos às escolas de samba?

CANDEIA – O papel dele é merecedor de todo o reconhecimento público. Foi um grande craque numa época em que o futebol não estava tão valorizado profissionalmente, pra usar a imagem do esporte.

Roberto – Sérgio Cabral e eu achamos que seu papel [de Paulo da Portela] seria o mesmo sem ter feito um samba, ou seja, seu papel é maior como um grande líder e um catalizador de todas as tendências das escolas de samba do que como compositor.

CANDEIA – Paulo realmente tinha uma preocupação muito maior com as coisas de sua gente e do seu meio-ambiente do que com ele mesmo em termos de se identificar como artista, mas acontece que fez letras maravilhosas. A Funarte está lançando agora um concurso de monografia sobre Paulo da Portela. No “Axé”, disco que tô lançando pela Warner, temos uma música chamada “Ouro, desça do seu trono”, onde Paulo já faz uma espécie de protesto contra o poder que vem pressionando as camadas menos favorecidas. Há pouco tempo, encontrei um recorte do Diário Carioca dizendo que Paulo foi convidado pra participar do Partido Trabalhista Nacional e em seguida tem um entrevista dele com diversas reivindicações que, por incrível que pareça, mesmo naquela época, já tinham o sentido do trabalho do Quilombo. Paulo pedia que se desse aos sambistas os meios sociais, a urbanização da favela, educação pra os seus filhos. Ele tinha essa preocupação, não era simplesmente um cara que cantava samba. Se vocês procurarem o trabalho do Paulo vão encontrar letras maravilhosas (canta): “Ouro, desça do seu trono / venha ver o abandono / de milhões de almas aflitas / como gritam / Sua Majestada, a Prata / Mãe ingrata, indiferente e fria / sorri da nossa agonia”. Isso em 1930.

Simon – Foi você que sentiu que era um compositor ou alguém que ouviu e disse que era bom?

CANDEIA – Bom, nunca cheguei à conclusão de ter feito obra nenhuma. Até hoje eu faço e as pessoas é que dizem, dão opinião, mas eu mesmo não digo: “Isso aqui é o quente”, até porque há em todos nós uma tendência de superar aquilo que já fizemos. Nunca nos damos por satisfeitos, se fazemos um trabalho hoje, amanhã queremos fazer um melhor, se aperfeiçoar naquilo que fazemos. Acho que seria muito fechado chegar e concluir sobre uma música. Têm coisas que a gente não pode generalizar porque os objetivos são diferentes. Não posso fazer um samba de terreiro ou um partido alto porque me deixaria condicionado, não dá pra fazer com uma estrutura muito rica e harmônica, se ganha muito babado e dissonância não é mais partido alto. Não requer também uma letra poética muito profunda porque é a forma do povo falar e dizer. Mas dentro da tua pergunta, Simon, eu fiz uma música chamada “Eu quero com ternura”, cantada na Portela em 53, e percebi que tinha feito uma música que o pessoal assimilou. O maior prêmio para o compositor é quando fica conhecido. Isso vale pro artista de um modo geral, que tem que manter o espírito artesanal e amadorístico no sentido de amar aquilo que faz, sem se deixar ser metrificado. Tem que ter aquela posição de coração, amador no sentido de amar.

Lena – Quais são os fundadores da Portela?

CANDEIA – Os três mais importantes são Antonio Caetano, Rufino e Paulo.

Roberto – Depois que Paulo morreu a liderança passou ao Natal.

Simon – Paulo da Portela…Natal…Candeia também seguiria uma linha do mesmo prestígio?

CANDEIA – Em absoluto. Natal foi o maior líder da Portela e atualmente estamos sentido sua falta. Não faço nada pra me equiparar a Natal ou Paulo da Portela. Eu sou eu, eles são eles. Tenho verdadeira admiração por todo o pessoal do samba que a gente chama “da antiga”, e mostro isso no meu trabalho, mas sem segundas intenções.

Simon – Você admite que eles tenham cometido alguns erros? E você, tem cometido erros?

CANDEIA – Ô, só cometo! Todo dia a gente tá aprendendo coisas novas e pode modificar posições. Nesse aspecto a gente tem que ser maleável, não podemos ser fechados porque a vida é a melhor universidade que temos. Ninguém é dono da verdade absoluta, com pontos de vista já firmados e conceitos rigidamente estabelecidos. Tamos sempre dando mancada, dando fora, mas tamos sempre aprendendo.

Roberto (correndo ao portão) – Tá chegando Alberto Lonato, Chico Santana e Nelson Rufino! (vários abraços e várias saudações. Candeia manda servir mais uma rodada de cerveja e batida de limão)

Lena – Você acha que “Axé” é seu melhor trabalho em disco?

CANDEIA – Olha, gosto muito, mas gosto muito também do “Samba de Roda”. Não tô dizendo que um seria melhor que o outro, mas no “Samba de Roda” a gente conseguiu fazer o que queria por não ser um disco de caráter comercial.

Roberto – Por que fazer um disco de samba onde não tem faixas? Isso não vai dificultar a execução do rádio?

CANDEIA – Não é que o disco seja sem faixas. Tem um lado onde a música foi ficando comprida, emendando um pedaço no outro, e não colocamos faixas pra separar; mas isso não é nenhuma bossa, apareceu por causa de uma necessidade que sentimos na música.

Lena – Olha, Casquinha chegando, meu irmão!

CANDEIA – A criação do Quilombo foi por amor ao sambista e à nossa gente e não pra competição, foi pra conscientizar pra preservar nossa cultura, em defesa do que representa Rufino, Santana, Lonato, essa rapaziada jovem aí. Quilombo é uma tentativa de reabilitar e de sacudir a consciência desse pessoal pra preservar nossa cultura. Tá correndo a favor da gente mesmo. Vocês estão vendo que bem ou mal estamos conseguindo transmitir esse tipo de preocupação a outras entidades que atualmente vêm se manifestando.

Roberto – Você tem consciência da mudança em relação ao nome Candeia depois da fundação do Quilombo?

CANDEIA – Tenho. Minhas responsabilidades cresceram por demais. Foi um desafio. A Quilombo cresceu na medida em que colocamos aquilo que criticamos através de palavras dentro de medidas possíveis. Transformamos nossa crítica em algo positivo. Agora me sinto cada vez mais envolvido e responsável por levar a coisa até o fim.

Lena – Quilombo hoje é mais um centro de cultura do que propriamente uma escola de samba, né?

CANDEIA – Perfeitamente.

Roberto – Eu insisto em falar no Natal. Qual foi o saldo que deixou de sua liderança na Portela?

CANDEIA – Hoje chegamos à conclusão que o saldo da participação do Natal também não é tão negativo assim. Discordamos de muita coisa que tenha feito, mas reconhecemos que foi um elemento positivo e que seu saldo foi favorável.

Lena – Positivo e favorável sob que aspectos?

CANDEIA – Pelo menos o poder de direção ainda estava dentro do nosso meio ambiente, não foi qualquer pessoa que chegou lá assumindo a voz de comando.

Roberto – Quem é que você realmente admira da velha guarda?

CANDEIA – A maioria tá falecida. Gosto muito do Zé com Fome, Paulo da Portela e um vivo, Aniceto do Império, da escola do partido alto que me satisfaz porque tem improvisação mesmo, não é aquela onde os versos já vêm como carta marcada. Isso na hora do samba, porque pra estúdio o esquema nos impõe condições como limite de tempo e gastos financeiros, e já temos que ir com uma base preparada. Aniceto representa algo constante na formação do partido alto. Gosto também de toda a Velha Guarda da Portela, nomes como Manaceia, Alcides, Rufino. Esse aí (aponta para Rufino) apesar de ser compositor, se preocupa mais com seu papel de líder porque sabe atrair pra si grande dose de simpatia natural.

Roberto – E de outras escolas?

CANDEIA – Gosto muito do Zinco, um compositor desconhecido.

Roberto – Que João Nogueira regravou.

CANDEIA – Gilberto Messias, Silas de Oliveira…Mas minha influência mesmo veio do pessoal da Portela.

Lena – Era a brincadeira e o samba pelo prazer de sambar.

Roberto – Hoje a situação mudou radicalmente e o samba é comercialmente viável. Há alguns desses novos autores que te impressionam?

CANDEIA – Olha, depois do da Viola apareceu muito pouca gente pra chegarmos a uma conclusão. Tem aparecido, sim, mas sem manter o mesmo equilíbrio. Às vezes aparece um compositor com uma grande obra, mas depois não há uma sequência natural. Posso citar o Wilson Moreira, um compositor que incentivei, que tem um talento que é todo dele.

Lena – Um melodista fantástico.

Simon – Se houvesse possibilidade de você fazer uma parceria com Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso e João Bosco, com qual você teria maior analogia?

CANDEIA – Com Milton talvez não desse. Respeito muito seu trabalho, mas ele tá numa, de harmonia e vocalização, e eu tô noutra, mais do coração. Chico é simplesmente gênio e não tenho condições de fazer música com gênio. Caetano também sinto que não daria, embora ele tenha uma música…(canta): “É de manhã / é de madrugada, é de manhã”. Nisso eu sinto algo que se aproxima. (canta) “O samba vai crescer / quando o povo perceber / que é o dobro da jogada”. Mas depois tem outras coisas que não me dizem nada. João Bosco é muito bom, gosto dele, mas não sei se eu podia fazer um negócio pra casar com a dele, que faz uma elaboração um pouco temática com uma melodia repetida, enquanto eu gosto de diferenciar.

Roberto – Vamos, então, enumerar os seus parceiros.

CANDEIA – Meu parceiro mais marcante, devido aos nossos laços, é o Casquinha que taí presente. Tenho muita música no baú, uma com Chico Santana, uma com Monarco.

Lena – E este ano inaugurou a parceria com Martinho da Vila.

CANDEIA – Tem Wilson Moreira, Paulinho da Viola…Sou amigo do Martinho há muito tempo, mas nunca tínhamos feito um trabalho junto. Esse ano já tivemos duas parcerias gravadas, uma pela Beth Carvalho e outra por ele. Aconteceu.

Simon – Se Marcos Tamoyo te encomendar uma música demora quanto tempo pra entregar?

CANDEIA – Não vai sair. (alguém puxa um cavaquinho e começa a afinar).

Simon – Alguma vez alguém pegou uma música sua e disse que já tinham feito alguma coisa parecida?

CANDEIA – Já. Ocorre o seguinte: havia uma união entre nós compositores em Osvaldo Cruz, que reunia eu, Casquinha, Zé Keti, Gugu e outros, e todo final de semana havia um desafio, uma brincadeira, onde cada um tinha que mostrar uma música nova. Nessas ocasiões acontecia da música de fulano estar parecida com a de sicrano, mas tínhamos de ter a coragem de depois da coisa feita rasgar tudo e abandonar a música. Era um reparo pessoal que a gente sentia por uma questão até de vaidade pessoal, de não fazer algo parecido com uma música já feita.

Simon – Já aconteceu o contrário?

CANDEIA – Ah, nego tá entrando vigorosamente em cima dos outros, nego falando igual, cantando igual, usando meus acompanhamentos, a mesma coisa, o mesmo riso. Martinho criou um padrão pra atender ao comércio e agora tá sofrendo muita pressão por causa de uma porção de cópias. Nesse último trabalho é que tá tomando uma posição diferente que nego não vai ter condições de fazer igual porque precisa ter fundamento, vínculo e raízes. (o cavaquinho rola e começa uma cantoria no fundo)

Roberto – A Quilombo não transformou-se também num núcleo de resistência contra esse entreguismo que é a discoteca?

CANDEIA – Não é só contra a discoteca, que surgiu depois. Nossa filosofia é lutar contra qualquer tipo de influência, porque quando mudarem esse nome de discoteca pra outra coisa continuaremos com a nossa consciência.

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