Baby, eu sei que é assim…há quanto tempo?

“…O mar da história
É agitado.
As ameaças
E as guerras
Havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
Cortando-as
Como uma quilha corta
As ondas”
(Trecho do poema “E então, que quereis” de V. Maiakovski)

(Seção Zumbidos: Leo Pereira / foto de capa: Milton Michida)

Gal significa “onda”; seu canto é como uma quilha, que corta ondas de um Brasil.

Nesse Brasil de brasis, navegamos por ondas bravias, marolas e tsunamis – embora cada qual possa navegar com navios coletivos, esquadras, jet-skis etc. Sob minha pretensa tarefa de croniqueiro, como dizia Drummond, quero aliviar minhas amarguras que me vieram com a força de uma onda a moer a rocha. Não quero defuntos nem monumentos, muito menos heróis com farda ou discos de ouro. Também não pretendo desancar milhares de depoimentos afetuosos que circulam narcisicamente na rede. A canção tem força de marcar os sujeitos em seu íntimo e também forjar um coletivo; Gal teve força de marcar uma nação porvir, cheia de ilusões e cheia de entraves. Mas a maré encheu não como se era esperada…”onde anda a onda?”, o verso maré de Bandeira…

Ainda verto lágrimas sobre aquilo me toca. Verto ainda mais com aquilo que me fez imaginar um Brasil, fora da história e atravessando-a como a quilha corta as ondas. Em minha memória orbita um lugar amplo de possibilidades, não sufocado. Mas estou sufocado. Num átimo, ao ver um desses anjos partirem, penso: uma geração morre às nossas vistas…aqueles que me forjaram brasileiro morrerão em breve; aqueles que me fizeram pensar o amor, as dores profundas, a solidão, o gosto pela palavra, a vida feita nas brechas, a doçura do olhar ou qualquer coisa que esteja além de qualquer eficiência, gestão, lucro e essas merdas cotidianas do capitalismo. Eles morrerão em breve…e eu também? Também…Não quero monumentos nem defuntos; na verdade, queria deixar de lado a tarefa burocrática da vida, queria não viver a penitência de um país, queria me desmanchar em sacolejos convulsos num carnaval permanente, mas não posso…ainda que sufocado, não me contento. “À manhã que vem nem bom dia eu vou dar”, lembro um versinho amargo.

Moa do Katendê, golpes de faca, morte, eleições 2018…ali foi a Esfinge dando o bote para devorar: é fascismo, é democracia, vamos virar nas urnas…e lá veio outro bote…e a Esfinge, semana a semana, mostrava sua cara medonha e seus soldados de plantão postos para o combate. Futuro sombrio do novo poder que se instaurava explodindo todo e qualquer pacto em nome da pátria e dos cidadãos de bem, armados e prontos para a insurgência, um mundo porvir pelo sacrifício em nome da pátria e contra os fantasmas persecutório dos eleitos para a feição mórbida do novo mundo. Para eles, os inimigos são os que impõem freios à sua liberdade autoritária.

Se o prólogo soa como assombroso, em plena e pós-pandemia, eis a sequência ardilosa, como uma tragédia social: Aldir, Beth, Moraes, Raul de Souza, Tantinho, Serginho Trombone, Nelson Sargento, Flávio Migliaccio, Toinho Melodia, João Gilberto, Leitieres Leite, Gordinho do Surdo, Ubirany, Gal Costa, Rolando Boldrin e muitos outros que talvez minha pobre memória já tenha sido ferida pelo bombardeio fascista. Tripudio sobre mim mesmo um verso que restou dessa canção chamada “Brasil”. Engolfado pela avalanche dramática dessas mortes, com cheiro de chorume no ar, cinzas do futuro e fúria fascista, o máximo que consigo é arrolar pelas páginas do Instagram e pelos grupos de Whatsapp a tristeza afetuosa que abate meus conhecidos por aqueles que disputaram frente a frente uma ideia de Brasil e fizeram da tal cultura com a transa do mercado, uma política. Nem quero discutir isso…mas essa transa também neutraliza. Idólatras e fanáticos se cegam e cerram horizontes.

Nasci em 1985, início de um país a renascer, ainda que com seus grilhões permanentes. O país caminhou arrastando-os. E são eles que hoje marcham, em cena aberta e em tensa expectativa, por mais que possamos debochá-los por seus delírios. Eles estão empenhados a extirpar da imaginação e da memória da gente comum qualquer impulso de inconformidade com o estado do mundo e a sua desigual distribuição da desgraça. A inconformidade deles é de que ainda resta nos inimigos um imaginário de cultura política subversiva, por mais adequada ao mercado cultural que tenha sido. Ainda assim, parar pra escutar, ler aqueles que se inconformaram com o Brasil, pensar, dançar coletivamente, significa contradizer o ritmo incessante de produção do capital em nossas vidas. E o que eles querem é levar a todos à beira do precipício para forjar um novo Brasil em que a ruptura permanente esteja em jogo. O estrago feito pelo governo Bolsonaro não cicatrizará brevemente.

Quem não se lembra de quando Lula disse, em 2008, ao avistar o tsunami da crise financeira vinda dos Estados Unidos, que aqui chegaria uma marolinha? A imagem de contenção de barreiras e de proteção nacional diante da crise mundial parecia tornar possível o sonho de superar o subdesenvolvimento. Mas, no percurso das águas violentas, vimos o golpe, a ascensão da extrema-direita e sua consolidação institucional e social, o genocídio experimentado e programado por Bolsonaro e seus asseclas…uma miríade turva de futuro, que desbaratina também o momento presente, entre a esperança de um governo Lula, que não será mais o de antes, a justiça social sobre os responsáveis, e o tensionamento de um exército (Forças Armadas e delirantes conscientes) em pé de guerra, mesmo que ele pareça notoriamente ridículo ou fora de moda. O problema é que a moda cultural do Brasil é avançada. Combina a utopia civilizatória com a violência permanente para se alçar à ordem e ao progresso da civilização…e nem me venha com o papo de que o que falta é o amor!

Em pé de guerra exalto intimamente: “Amar o perdido / deixa confundido / este coração”…não me lembro do resto…só me salta o fim: “mas as coisas findas, muito mais do que lindas, essas ficarão”.

Mas antes, me lembro, de novo, de Drummond refletindo sobre o fanatismo: “As palavras são de grande serventia nessa eventualidade, e, aplicadas com perícia, produzem a morte política, a morte moral, a morte literária e outras mortes provisórias. Se o serviço chegar a instalar-se, tais palavras valerão como apontamentos, e então talvez se suprimam os adjetivos.”

Parece ridículo oscilar entre o verso e a prosa, mas, hoje, é o que me resta. Baby, eu sei que é assim…

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