(Seção: Zumbidos)
Sueli Costa,
Você veio através dos discos, como quase tudo que acontece em minha vida. Veio pela música, o combustível maior do cotidiano pesado. Tua carreira começou lá em Juiz de Fora, quando “Por Exemplo Você” foi gravada por Nara Leão e depois pelo Grupo Manifesto. Depois, o Rio de Janeiro, onde Sidney Miller a levou para o teatro. Açúcar Candy em uma peça de malucos. Só o começo.
Dos tablados veio Tite de Lemos. Por Tite, Arap e finalmente, Bethânia.
Assombrações e Sombra Amiga depois de Encouraçado cantado no FIC por um paraguaio, bandoleiro e proscrito. A sina da mulher compositora em um ambiente machista.
Proscrita.
Depois são Vinte Anos Blues, com a Elis. Um dinheirinho pra se manter e muito trabalho dando aulas de música assim como sua mãe pianista e professora.
Amor, Amor e Coração Ateu. José Lewgoy, meu cowboy… Teu primeiro disco na Odeon, produzido por Gonzaguinha, amigo e admirador.
Cacaso, poeta e proscrito, livros no mimeógrafo.
Música na novela da Globo. Simone, Nana e Marília. Cordilheira, Face a Face e Boias de Luz. Tua música vestida nas melhores vozes deste país, nem sempre do jeito que você queria… Depois Aldir, Abel e Paulo César Pinheiro, que te “radiografavam” como ninguém. Jura Secreta e Altos e Baixos.
Ah, Sueli… De tantas intérpretes, eu gosto mesmo é de você. As harmonias complexas, o canto no limite, a emissão quase forçada de sua voz. Aquele teu segundo disco, com produção de João Bosco e Aldir Blanc, tem histórias que apenas eu e você sabemos e isso rendeu inúmeras gargalhadas por tantas noites, coisas que levaremos conosco. Cinco Lps, três CD’s, alguns projetos e demos engavetadas por aí, essa é a tua face de um iceberg gigante.
Você sempre bem acompanhada, inclusive com o Johnny Alf logo que a gente entrava em seu apartamento numa fotografia enorme de vocês.
Minhas cópias zeradas dos teus discos e teus exemplares arruinados. Quando levei novos lps pra você, me disse: “A Nina vai poder ouvir um dia os trabalhos da vovó”. E nossos planos de novos trabalhos, novos compromissos, ficaram pra outro café nunca tomado. O tempo não espera, Sueli. Não espera mesmo. Teus parceiros se foram, alguns ficarão por aqui atônitos com a tua partida. E da gente fica a obra, no teu caso, uma obra atemporal. Da moça do Censo que disse ser tua fã e ouvir “Juras Secretas” em casa com a mãe e achar lindo. Das madrugadas que você gostava como eu e virava jogando paciência em sua timidez.
Da última vez que nos falamos no fim de Janeiro até hoje, quando soube de tua partida, estávamos aflitos com o teu sumiço. O silêncio das mensagens e dos telefonemas precediam o que negamos a acreditar: a finitude da vida. A existência é bonita, mas dói. A longa doença e a agonia de uma pandemia, tudo isso na cabeça de alguém com a tua sensibilidade poderia render música, render muito mais.
A imprensa ama datas redondas e obituários, quase todos ruins como os publicados hoje. Na tua vida discreta, foram poucos os que te enalteceram. Atribulado e confuso com minhas tarefas, mostrei o teu trabalho para novos ouvintes e corações, mesmo assim eu fiz muito pouco. E no meu mundo, na vida múltipla entre a eletricidade, a poesia e a pesquisa, você é importante, é um alicerce. Foi mestra e confidente e eu só tenho a agradecer.
Descanse, minha amiga. A gente se encontra para um vinho daqui a pouco em alguma dimensão, mas a tua energia fica junto com a obra irretocável nesse planeta injusto e sacana.
Um abraço,
Manoel.
Rio, 4 de março de 2023.
(texto publicado no instagram de Manoel Filho, @tonicomanoel, e cedido pelo autor para ser aqui reproduzido. No post do instagram, o texto acompanha imagens do álbum Sueli Costa de 1977, lançado pela EMI Odeon. Abaixo vocês podem ouvir o álbum na íntegra no canal do YouTube do próprio Manoel Filho)