(Seção: Zumbidos / por Manoel Filho / foto de capa: Selo Sesc / Divulgação)
No início do mês anunciaram um disco inédito de João Gilberto, lançado oficialmente, e de papel passado entre a família e a instituição que realizou o registro em 1998. Gravação em ótima qualidade, uma raridade e um presente para fãs e admiradores do Brasil (poucos) e do mundo (muitos). Minha caneta é movida pelo prazer e também pela mágoa, como todo ser humano normal deste planeta. E, apesar de disponível no site, optei por ouvir depois do frisson, em um ambiente tranquilo. Minha vida nunca está tranquila, mas precisamos de alguma sanidade para lidar com o nosso cotidiano.
Existe uma cidade chamada Tanguá na região metropolitana do Rio de Janeiro. Um dia esse lugarzinho já foi distrito de Itaboraí e foi escolhida na época da ditadura para abrigar uma estação terrena satélite em um terreno imenso. Um núcleo tecnológico futurista e que possui a forma do 14bis, hoje cedida a uma empresa de telecomunicações, empresa essa que me provê salário e estafa. Meu trabalho não é movido pelo prazer. Os rios estão contaminados, a favelização avança aceleradamente e não há chácaras ou pomares ao redor. Há um cheiro de peixe podre vindo de uma fábrica de rações. Silêncio e odor de peixe podre. O mundo conectado por uma estação permanentemente com odor de peixe podre.
Do Rio de Janeiro a Santo Antonio, leva-se uma hora sem trânsito. Santo Antonio Amigo, Copa do Mundo de 1970, Cidade do México, TV a Cores, João Gilberto. João e seu violão encanta, mesmo depois de morto, Brasileiros e Mexicanos. Como um velho alquimista, ainda tem centenas de frutos sonoros adormecidos nos arquivos mundo afora. Quem está aqui busca informação e algum palpite sobre música. Quando Tanguá foi construída, só havia micro-ondas. Hoje temos 5g e foi tempo suficiente para ouvir a primeira parte na ida e o restante do álbum na volta. Informação mastigada, mas os técnicos preferem ver tiroteio e bizarrices no celular. Prioridades. Minha bolha de estafa.
O show é ótimo para iniciados na obra de João. Na junção entre o popular dos anos 30 e 40 e o que a imprensa chamou de “bossa nova” depois de seu LP de estreia, ele vai cosendo lentamente e se divertindo nas harmonias e nas interpretações. João toma emprestado de Tom mais de uma dezena de canções, fato útil para mentes abrilhantadas que habitam as capitanias hereditárias das províncias, hoje bolhas culturais. João é capaz de surpreender os especialistas e os catedráticos em música apenas com o seu violão. Tocava em festivais de jazz fazendo samba a vida inteira, sem esquecer das valsas e outros estilos devidamente brasileiros.
Uma coisa me chamou atenção na gravação a partir de “Desafinado”, não por coincidência os últimos números do show. Propositalmente ele deixou para o fim os “hits” e jocosamente deixou a plateia cantar, além de executar um número instrumental. Muitas pessoas estavam ali em um teatro “a preços populares” para encontrar uma lenda e talvez para contar a amigos e “contatinhos” que pode assistir o criador da Bossa nova de perto, apesar de não conhecer nenhuma música. Vinte e cinco anos é um bom tempo para se esquecer tudo, exceto para João, dotado de uma memória assombrosa. Se embolsa cachês rindo e nem sempre são devidas as flores em vida e o trabalho que se executa. O bom humor do baiano de Juazeiro se justifica: depois de certo tempo, a gente perde a paciência e entra na festa e incorpora os ruídos de fora. Para os amigos do rei, isso acontece sempre, tudo será um acontecimento com direito a água importada e outras liturgias. Para outros, o olfato e a audição garantem as surpresas.
Na ponte Rio Niterói, ao amanhecer, João dá o último acorde de “Esse Seu Olhar”. Trabalho de graça, minha caneta garante o prazer, sem pressões e posso me dar ao luxo de escrever essas linhas sem preocupações depois de mais uma noite constipado e estressado. E se há um prazer genuíno, esse prazer é dirigir e ouvir João.
Um prazer para poucos.