(Seção: Saideira / por Cassio Guerreiro)
Ser Paulistano é um exercício diário de desapego com a tradição, com a memória afetiva ou com alguma coisa que ainda funcione dentro de um formato que alguém em algum tempo disse que não funciona mais. Pensamos em caixas (infelizmente pouco fora dela), em nichos. Talvez pelo tamanho da cidade, temos a lógica ou a necessidade de agrupar segmentos. Produtos para o comércio, cozinha e utensílios? Rua Paula Souza. Lustres, luminárias? Rua da Consolação. Peças de carros? Avenida do Cursino. Eletrônicos? Santa Efigênia…e por aí vai. Não que não haja de tudo espalhado para todo o canto, mas temos essa característica de juntar tudo num grande bolsão. Se isso é bom ou ruim, pouco importa, não sei, não vem ao caso, isso só passa a ser triste quando é levado para o lado, digamos, sensorial do ser paulistano, quando as ideias, os hábitos e principalmente o ato de ser, passam a ser encaixotados e guardados num porão (sotão é coisa de casa de Alphaville ou Panamby, desconexos da cidade) sem que nenhum citadino que queira reviver, comentar, ou reestabelecer alguma conexão com um “passado” de mais de cinco anos, se sinta um tamagotchi baldio e poeirento encontrado em uma dessas caixas que esquecemos de dar fim.
São Paulo é a capital brasileira dos museus, atualmente são 132, seguida por Rio de Janeiro com 124 e Salvador, 71; por aqui, porém, infelizmente a memória e o sentimento de pertencimento também são mercantilizados e reclusos exclusivamente aos museus. É proibido viver memória, na rua, na vida real. Não se passa cinco anos depois pelo mesmo lugar e se depara com a mesma arquitetura. Nada que remeta ao ontem e, em muitos casos o ontem foi ontem mesmo.
Por aqui, resmungo muito das minhas perdas prediais no meio dessa cidade que não nos deixa respirar, que não permite que tenhamos jeito, cara, nem memória. Meu último golpe duro foi duplo, um jab e um cruzado. A padaria “Joia”, em Pirituba, fazia jus ao nome, com direito a baleiro e ventilador verde, daqueles que lembram uma mosca varejeira, banheiro atrás do balcão. Nos bastidores da panificação, onde a cada mijada se aproveitava para dar aquela inspecionada sanitária no ambiente de que saíam empadas, roscas de torresmo e o tempero dos assados que acompanhavam as cervejas mais geladas da região, distribuídas nos seus oito freezers. Em suma: um verdadeiro botecão, que foi deixando de ser padaria por força do hábito local, só servia pão para manter compatibilidade com o Cnae[1]. Porém, a estante de birita era soberba e o sindicato que bravamente segurava o balcão carcomido pelo tempo era unido e fiel e este balcão, cheio de cantinhos e esquinas para acolher não só os cotovelos mas também todo o tronco, numa kiropraquicia alcoólica. Relaxamento não é relaxo. Do lado de fora (não haviam essas desgraças de catracas e comandas, pelo pé direito ser altíssimo, as portas eram enormes então, tudo era lado de fora) mesas com guarda sol, muitas, pois a “Joia” pegava uma esquina enorme da Avenida Mutinga, 2653, e um calçadão de dar inveja onde ficavam as televisões de cachorro e as churrasqueiras no bafo (no plural) com joelho de porco, capa de filé, costela e lingüiças de procedência maravilhosa de tão desconhecida! A “Joia” foi roubada dos moradores daquele pedaço, não pela primeira ex-dama da milícia, mas por algum Jânio Jênio, algum vassourinha empreendedor modernoso, desses forasteiros que confundem tradição com velharia e varrem pra debaixo do tapete todas as histórias de quem as vive. Como a vez que fomos bater aquele famoso “casado x solteiro” de fim de ano e resolvemos tomar a última da temporada lá, era 24 de Dezembro e como nesses lugares a hora passa mais rápido, nos perdemos no fuso horário entre as porções de frango assado e churrasco. Ao lado da mesa o famoso engradado que, claro, não deixaríamos incompleto de cascos vazios, enquanto a ceia de cada um acontecia simultaneamente ao “Noite Feliz” na “Joia” da Mutinga. Naquele ano nenhum de nós ganhou presente, nem feliz natal, no máximo um Engov no dia seguinte junto ao olhar de reprovação dos entes queridos, porém incompreensivos. Algum “Agroboy” “Miamer” fã do Buddy Valastro, vai encher aquela bosta de vidro espelhado, catraca, comanda, burocracia e, de quebra, dar uma zuada nos funcionários fazendo-os usar aquelas fraudinhas de neném na cabeça como Picollos Italianos do Jaraguá. Mas o tempo é senhor das coisas e o meio senhor do lugar, hei de ver essa nova “Delicatéssen” povoada pelo mesmo sindicato que segurava o velho balcão de madeira e inox tomando seus rabos de galo, coçando suas protuberantes panças com seus Ginas entre os dentes, espantando os cidadãos de bem forasteiros de novos “empreendimentos” (pombais) locais que ousarem se apropriar da “Joia” dos Piritubanos! Ainda hei de ver o Buddy Valastro do Jaraguá, chorando e pondo seu chiquê à venda.
Outra porradinha foi a “Rainha Santa”, na Freguesia do Ó, pizzaria consolidada nos anos 1980 na Avenida Itaberaba, 695. Uma destruição em tempo recorde. Num dia era a velha e boa pizzaria de tantos cascos vazios e pizza boa de massa fina e preço acessível, no balcão, no outro um Frankenstein cafona com mesinhas amadeiradas de tanto MDF, placa no ACM e interior tão lindo que deve ter aqueles palitinhos aromatizantes no banheiro decorado por quadros em preto e branco de algum tempo que eles não sabem qual é. Não paguei pra ver nem pra entrar mas os funcionários também já devem estar com sua fraldinha italiana da Brasilândia na cabeça e o esquema de pizza no balcão também deve ter dançado. No entanto, essa me pegou menos desprevenido. A Rainha já estava na UTI. O antigo dono, o Santista foi um herói, resistiu bravamente à pandemia, trabalhando meia porta, entregando, renegociando com fornecedores. A venda ou repasse do ponto era questão de tempo, assim como a repaginada à paulistana, ou seja, a gafanhotagem total de tudo que ali tinha de bom não terá surpresa se a massa ficar alta, igual à do Pizza Hut, “é mais Miami, sabe?”. A Rainha sem Joia, a Joia sem Rainha e o súdito aqui cheio de sede e perdido no próprio reino! Como diria a Loucamares: “meninos roubam Joias e meninas roubam móveis”, e juntos podem comprar um bar em São Paulo!
Após, a desconvite ao ministro Carlos Fávaro, a abertura da Agroshow, maior feira agropecuária do país, foi cancelada. O Seboso continua tumultuando e fazendo palanque em setores identitários, como fez com igrejas, Exército, Polícia Rodoviária, Ministério da Defesa, Polícia Federal etc. por todo o tempo em que esteve com a máquina pública na mão. Até aí tudo bem, está fazendo o que lhe cabe até para sentir o clima e até que ponto pode por a cabecinha pra fora neste momento. O que é inadimissível e deveria ficar insustentável é a relação do Governo Federal com os Latifundiários Agrobois. Num movimento claramente coordenado pelo Governo do Estado de SP, capitaneado pelo areia mijada, herdeiro imediato do espólio bolsonarista em SP junto com o latinfundiários, a intenção é passar o recado, todo gesto político e o recado está dado. A leitura que o governo do PT tem que fazer disso deve ser cética e sem espaço para diálogo. A partir do momento que se prioriza um ex-presidente foragido moral e derrotado democraticamente em detrimento de um representante oficial do governo atual e do setor, deve-se acenar de que se está fechado para o que der e vier, mandando o diálogo às favas, flertando inclusive com eventualidade de golpe. A resposta de Lula tem que ser imediata e à altura…Que feche linha de crédito do Banco do Brasil para o maquinário e que mande esse bando de Redneck ir pedir dinheiro no Vivendas da Barra Pesada. É necessário que se mostre imediatamente quem tem as cartas perante a mensagem clara de inviabilidade de diálogo e que se amplie o crédito para programas de subsídio só de sacanagem. Em um episódio do dantesco “Programa do Ratinho”, do abominável SBT, o convidado era Michel Temer, na ocasião estava o “presidente” golpista do Brasil. Carlos Massa, o rato em todos os sentidos, pediu ao vampiro mdbista que desonerasse a panela de pressão pois o gás estava caro demais. Aquilo foi de uma afronta, um deboche com o povo que vejo nesse epsódio da Agroshow a melhor oportunidade dar o troco, uma vez que se está declarado de que não há diálogo com essa gente. Corta o financiamento da colheitadeira e baixa o imposto sobre o arado! Ainda bem que não sou Presidente, nem ministro de nada!
Nessa mesma toada a CPI do MST será um tiro no pé da oposição e uma ótima oportunidade para o MST expor a importância da reforma agrária e da função social da propriedade. Assim como dará uma exposição, mediante ao contraponto, muito provavelmente negativa a Ricardo Salles, inimigo do meio ambiente, o cara da passada de boiada durante a pandemia e mortes que, muito provavelmente assumirá a relatoria da CPI. Se a situação for hábil mata dois coelhos em uma cajadada só (nada contra os pobres fofinhos), dá a visibilidade executiva que o MST nunca teve e dá uma bica de vez nesse cafetão de madeira postulante a prefeitura de São Paulo no ano que vem. O cara que, junto ao governo Bolsonaro, é responsável por transformar o garimpo ilegal, que, sim!, sempre aconteceu, em um problema fora de controle como estamos presenciando, tão incontrolável quanto à Cracolândia. Aliás, a única diferença entre o dependente químico da região da Luz e o garimpeiro é que um é doente devido a um vício químico, o outro é bandido de fato e, agora, no pós-Bolsonaro, fortemente armado. E ainda cheguei a ler e ouvir na imprensa, pessoas preocupadas com o “futuro” profissional desses “operários” caso o garimpo seja instinto.
Nessa Taça Libertadores, eu sou Corinthians. Uma torcida que vem acertando faz tempo nos últimos anos, dos sambas em sua escola (ao meu ver, a única escola de samba, de fato, entre as escolas oriundas de torcidas organizadas, mas isso é papo pra outra rodada…) aos posicionamentos políticos. Gostei da coragem em trazer de volta à cena o craque Vanderlei Luxemburgo. Do Lixo ao Luxa! Nunca aceitei essa aposentadoria compulsória que a mídia dá a artistas, atletas, políticos e pessoas públicas em geral. Em 2016, a excelente Luiza Erundina foi candidata à Prefeitura de São Paulo. O único argumento contra ela, propagandeado pela mídia “tradicional”, era baseado no hetarismo…e a candidatura naufragou. Erundina segue firme e forte, fazendo boa política. Luxemburgo foi aposentado a sua revelia, assim como Romário. Desde 2002 tentavam dar por encerrada a participação do craque baixinho, hoje um péssimo político. Romário se aposentou em 2008 tendo sido o artilheiro mais velho do campeonato brasileiro com 22 gols em 2005. Pergunte a qualquer papagaio que repete a mesma ladainha de que Luxemburgo está ultrapassado: por que ele está ultrapassado? Quem é o moderno da vez então? Quem faz algo que Luxemburgo não fazia nos anos 90? Aliás, tendo a oportunidade, durante a pandemia, de ver jogos de copas passadas na íntegra, pode se observar: o que Luxemburgo fazia nos anos 90, a seleção de 58 já fazia, com Zagallo como um ponta ultra moderno – Zagallo (como jogador) seria hoje o sonho de qualquer técnico europeu. No futebol nada se cria, mas se cultiva; futebol é cultura. Luxemburgo é candomblé, sambista, socialista e defende os campos de terra antes da base. Luxemburgo tem ônus e bônus agregado. Conhece o futebol tática e culturalmente, não há uma figura atuante com o perfil de Luxemburgo porém, como bom noventista não sabe ficar longe de uma confusão. É chegado em um agiota, em uma factoring, em um carteado, em um agenciamento de jogador duvidoso, comissionamentos e outras paradas que rasgam o código de ética de qualquer profissional, ainda mais no futebol em que, pelo menos dentro de campo, o perfil é de pessoas que fingem ser ilibadas, com opiniões pasteurizadas, pouco politizadas e que não ofendem a vovó; praticamente um padre fã do Tiago Iorque, ou seria esse um Dorival Jr.? Luxemburgo, ou esse perfil de gente, perdeu terreno também: partir da lei Pelé que empoderou os empresários em detrimento do clube. Tira-se o poder das mão do clube com o argumento de que o jogador era escravizado (escravo ganhando 200 mil dólares? Desconheço…) e passa o poder para o agente. O Jogador? Continua na mão de alguém sem as rédeas da própria carreira porém, o clube apita bem menos e quase pede favor para o jogador renovar ao fim de algum contrato e claro, pagando boas comissões aos seus empresários ao contrário de antes onde o clube era empregador e o jogador de fato funcionário, o que facilitava uma estrutura hierárquica, onde o presidente não era apenas animador de auditório, o diretor não era babá de perna de pau mimado e o técnico era de fato o chefe do setor de futebol, o chefe do campo. Como trabalhar numa estrutura em que o funcionário(jogador) escolhe o técnico e recebe mil vezes mais que este? Luxemburgo impactava por “botar ordem no barraco” mesmo sendo ele muitas vezes o mais desordeiro. Entendo que sua abordagem ficou prejudicada após essa reformulação de poderes comentada acima porém, daí a chamá-lo de ultrapassado? Se isso fosse, Sampaoli não poderia mais trabalhar e é um dos técnicos mais festejados do momento. Inclusive, muitas vezes paga pelo estilo, como na Copa de 2018 quando foi praticamente deposto pelo próprio elenco da Argentina com o campeonato em curso. Mas é uma opção, uma opção de estilo de abordagem. Luxemburgo merece pelo menos o direito de pagar pela escolha, não ficar de pijama em casa porque os Enzos Cartolers Twiters Punheters acreditaram no Thiago Leifer e em outros sapatênis humanos. Luxemburgo fez boas campanhas nos últimos trabalhos que teve, inclusive no Palmeiras em que teve apenas 5 derrotas em 37 jogos. Faz anos não pega uma barca boa, apenas chega para apagar incêndio e dessa vez não será diferente, tem tudo pra não dar certo. Mas, o fato é: o Corinthians teve coragem de em um momento turbulento não procurar ninar a vovó e encarar a reestreia, podemos assim dizer, de um dos maiores técnicos da história do futebol brasileiro. Eu como bom santista, vou nessa até a página dois. Na Libertadores não há conflito de interesses, torcerei para Luxemburgo e Corinthians até o fim. Não que no caso do Santos haja conflito de interesse em algum outro campeonato com algum rival direto nacional, nem sei se há algum interesse pro lados da baixada.
Geralmente bebemos juntos várias saideiras por aqui, resmungando de tudo um pouco, mas agora a ideia é que, além da saideira, possamos tomar pelo menos umas três Antarcticas geladas pra dar aquela quebrada no começo da semana e juntos encarar essa gestação até nascermos lindos no fim de semana, rompendo essa placenta semanal e tomando quantas saideiras forem necessárias!
Um Puta Abraço!
Cassio Guerreiro
[1] É a operação de uma empresa prevista em contrato social e inscrição na receita federal