(foto: Marluci Martins/divulgação)
15 anos insistindo coletivamente numa mesma coisa, algo vai dar. Este é o Samba do Trabalhador. E algo tem nesse sururu cheio de tempero. O hábito forma a experiência e dá alguma qualidade a isso, seja até pela insistência do fazer em situações adversas. Essa insistência é política.
Moacyr Luz e seu time de bambas[1] se formou ao longo de 15 anos no Clube Renascença (Andaraí, Zona Norte carioca). Muitos reverenciam a roda como um lugar de resistência da cultura popular. Eu diria que mais que resistência, que tende a ser sufocada, é respiro de esperança da criação de nossa cultura. Local que congregou e congrega sambistas e músicos de todas as vertentes.
E para reverenciar esse début de bambas e sua atuação na cultura popular, nada melhor que um registro que contemple essa história.
O álbum Fazendo Samba, lançado pela Biscoito Fino, traz 16 faixas cujos traços dessa história vão se enredando. Parece cabala: 15 anos, 16 faixas. Uma a mais para indicar a vitalidade do grupo. Hoje, muitos dos músicos do grupo têm carreiras individuais. E diversas músicas lançadas nos álbuns individuais foram contempladas aqui. Assim, poderíamos dividir o álbum em: músicas novas, músicas já gravadas em outros álbuns solos e homenagens a compositores e artistas ligados à história do Samba do Trabalhador.
A abertura se dá no samba corrido e bem cadenciado Loucos de inspiração (Moacyr Luz e Wanderley Monteiro). A abertura do álbum é um retrato geral do melhor fazer do Samba do Trabalhador: a roda de samba e seu recado sobre a necessidade do vínculo com a tradição do samba, a qual tem a capacidade de sintetizar a história brasileira. “O samba já me deu cadeira pra sentar”. O samba como um ente maior, da tradição a que o artista brasileira se vincula, foi o lugar em que Moacyr Luz melhor pode se expressar, dando nó em sua linha melódica, letras e acordes abertos para a tradição de nossa música (!), e não só do samba. É característico dos sambas de Moacyr Luz o tom melancólico da linha melódica que contorna as agruras e esperanças do eu-lírico coletivo[2]. Não por menos que é o trombone de Allan Abbadia que abre, variando entre a melancolia e a afirmação de seu estar, sem violência necessária e muito swing para se firmar. Nas estrofes, o eu-lírico parece perdido, mas encontra-se ao ouvir sambas antigos e ver um menino tocar. É na continuidade que se faz uma tradição.
A segunda e a terceira música Das bandas de lá e Fora de Moda são parcerias de Moacyr Luz com Xande de Pilares. O tema da primeira é o clamor do eu-lírico para mudar sua situação adversa (no cotidiano e na vida). Ele está na região da praia (Zona Sul carioca como representante da discrepância social?) tendo que dizer que é de lá (Zona Norte). A circulação social narrada tem uma ambiguidade: por um lado, uma narrativa realista em tempo presente; por outro, um ar mítico, evocando a Lua de Jorge, símbolo da justiça. Nada mais comum no RJ do que essa circulação necessária para a sobrevivência do artista. É um clamor pela mudança. Nos versos, o ritmo da melodia é dominado por adiantamentos e atrasos em relação ao tempo forte, frases longas quase sem respiração que se emendam nas estrofes (…Só cego não vê / já joguei gasolina pro carro pegar / se ferver pega o trem…), representando o desespero do eu-lírico. Xande de Pilares, partideiro de primeira, domina muito bem essa rítmica que joga pra frente e pra trás.
A terceira música quase emenda na anterior pelo arranjo de trombone. Fora de Moda começa com um desejo do eu-lírico que parece simples: o sossego em sua vida, sem maiores tretas, sombra para o violão, rede na beira do rio se o sono vier. Uma vida que, de fato, já parece distante nos tempos de hoje. Um desejo que afronta a vida do trabalho incessante. E esse desejo está fora de moda. O eu-lírico expressa sofrimento, dado o seu deslocamento dos lugares; sente-se um lugar nenhum. E a música sobe (com a linda interpretação de Nego Álvaro), como um clamor desesperado do eu-lírico para consigo mesmo: “deixa…”, como uma certa sabedoria que sai do imediato para buscar aquilo que não está no tempo presente, ao mesmo tempo que tem consciência das iniquidades que o cercam.
As três músicas anteriores trazem a melancolia como fio de ligação. Deixemos claro: não falo sobre melancolia fatalista. Ela aponta sempre um vigor, um seguir, sem necessariamente a sua superação[3].
A cara do Brasil é a força coletiva, a relativa virada nesse estado de espírito do tempo sem força de superação. Moacyr Luz e Roberta Sá dividem as estrofes na música de Moa com Toninho Geraes, gravada por este em 2017 no álbum Estação Madureira. Interessante notar como a repetição do verbo ser na música anterior e nesta ganha relevância. Os predicados são bem claros e o desejo melancólico do menino de Fora de Moda é contornado aqui pela força do ser do samba e do povo. Novamente como um ente maior, o samba fala por si, é o próprio eu-lírico, é o povo que grita nas ruas, é a cara do Brasil. A estrofe traz imagens justapostas que demonstram a força do povo na música, no trabalho, nesse país. Esse povo incomoda (se vira, vive de ocasião, e com raça não fica no chão, é valente e sabe dar no pé). Mas incomodaria quem? O óbvio não precisa ser dito. O teor político da música não necessita de obviedades, sua economia narrativa faz a força poética. Aqui a definição de povo é clara: as camadas de baixo. Logo, a cara do Brasil é desse povo.
Na canção seguinte Nego Álvaro volta para cantar a ancestralidade. O ponto de Iemanjá é acompanhado de um coro que dá um contorno sublime e vigoroso. Aliás, vale comentar: o coro dessa roda de samba é a maior demonstração de coletivo e força[4]. O mar é representado pela rítmica e pela própria força do coro. Reza pra agradecer é uma louvação de quem vive em sua fé ancestral, uma fé que se encontra para viver além do imediato. No minuto final a canção ganha força com o samba se aliando ao tom sublime da melodia que o coro faz.
Se a canção anterior remete ao sublime, esta traz para o chão do terreiro sem deixar o sagrado. Eu sou batuqueiro firma o ser batuqueiro, respeitando a tradição de onde o samba se fez e se firmou. Vovó Maria, Dona Ivone Lara e Beth Carvalho. A genealogia está aí. Mostra-se como o eu-lírico firma-se naquilo que não arrasta as multidões. Para fazer sua música precisa da forma comunitária de convívio. A voz de Mingo Silva, na música de Sereno e Moacyr Luz, rouca e de firmeza malemolente, é perfeita para esse samba. Uma aula de batuque que remete ao jongo da Serrinha.
Quem dera o tempo, do trio Marmita, Mingo e Nego Álvaro, traz a verve lírica-amorosa do Samba do Trabalhador. Amor e samba é casamento indissociável, em todos os seus sabores e dissabores. E aqui está na medida certa. Poético, melódico sem exageros e sincopado. O ijexá de Oxum, o orixá que representa o amor, se relaciona ao tema: um eu se dirigindo a sua ex-amada e fazendo uma promessa, “Quando eu cantar pra você um samba que fiz amor”, como forma de resgatar a amada.
A oitava música, eu diria, secciona o disco. Volta a batucada mais característica do Samba do Trabalhador, o molho do repique de mão, pandeiro, cuíca e tamborim e o surdo solene com sua marcação precisa sem variações ou cortes. E, mais uma vez na discografia, canta-se o próprio Samba do Trabalhador na voz baixo-barítono com tessitura de barítono de Gabriel Cavalcanti. Ela preenche o samba e mostra a força e a beleza desse encontro musical. Os nomes de bairros da Zona Norte carioca são chamados, uma tradição do samba de ter os bairros onde cada terreiro se firma.
Ronco da cuíca chega com uma percussão pesadíssima, em arranjo próximo da gravação original de João Bosco, mas com tempero e molho característico dessa roda. Essa gravação é uma homenagem mais do que explícita a João Bosco e Aldir Blanc, parceiros de Moa que estiveram no início do Samba do Trabalhador. Aldir foi somente na estreia da roda e nunca mais. Fez batismo e resguardou-se. Suas letras ainda tem terreiro cultivado por seu parceiro Moacyr Luz.
E chega aquele samba escorregadio, ensaboado, daquela gafieira que já não tem mais, mas que alguns poucos como Zeca Pagodinho ainda cultivam a rítmica de Geraldo Pereira. A voz de Marmita foi bem escolhida. Uma voz tijucana, de boêmio inveterado. A música que dá nome ao álbum tem como tema a própria composição (cheia de confusões e lucidez) do samba como forma de viver do cantor. É na forma de enxergar da vida e como ela é retratada que está o humor, bem representado pelo trombone de Abbadia que também todo um clima de salão.
Nas Mãos de Deus é um partido-alto de Nego Álvaro que dialoga com o samba de roda pela estrutura das estrofes (versos responsivos). A evocação divina novamente pela voz de Álvaro não é ao acaso. Aqui temos um eu-lírico que tem sua fé e que ela dá forças para viver, perseverar, dançar, cantar, compor um samba.
Com Leci Brandão chegamos ao partido-alto Sorriso Negro. A cantora é outra parceira das antigas de Moa. Frequentadora da roda e alinhada politicamente com o Renascença e com o posicionamento de Moacyr Luz. Talvez não houvesse outra pessoa para evocar as questões da negritude e de classe social quanto Leci. A evocação da liberdade não é abstrata para o contexto que vivemos.
Quando o samba veio me buscar (Roberto Didio e Moacyr Luz) é cantada por Gabriel Cavalcanti e Moacyr Luz, tal qual em seu disco solo; aqui, porém, temos o trombone fazendo a introdução e contrapontos. Belíssima canção e, novamente, temos o samba como um ente maior. Qualquer sujeito tocado pelo samba, se emociona com uma canção como essa. Um inventário sentimental de um momento ímpar na vida de um amante do samba.
A dupla mais profícua dos últimos tempos da música brasileira também aparece neste álbum: Aldir Blanc e Moacyr Luz. Depois da homenagem ao flautista Pixinguinha por Paulo César Pinheiro e Moa, temos Camunguelo. “Camunga, comunga com a gente!”. As duas canções têm estruturas bem próximas. A letra de Aldir não deixa de fazer o movimento entre sublime e grotesco de um jeito ímpar. Aqui fala-se da dentadura do flautista, magro, de boné branco, zangado. Uma homenagem mais do que devida a Camunga, grande músico das rodas de samba. A saudade do amigo transfigura-se nesta bela melodia e nas belas vozes de Moa e Gabriel Cavalcanti.
Chegamos à penúltima (e o clima ferve!) Pra batucar (Nego Álvaro e Mingo Silva) é daqueles sambas corridos com melodia que contorna, contorna e joga pra cima. É o atestado, a afirmação de quem está no samba.
Canta Sabiá, outra da dupla Sereno e Moacyr Luz, encerra o disco com entoação novamente melancólica e tom menor. É a chave de ouro que liga todo o traçado temático do eu-lírico com o social.
A introdução com notas longas e bem acentuadas na síncopa dá quase a impressão de fragmentos. Fragmentos da impressão. O sabiá é notado apenas pelo eu-lírico, que ao olhar para o céu designa o amor. Mas é a melancolia que faz agir, que enxerga, ouve, busca, perde-se, ama, arrepende-se. Sentimento lírico que não permanece na simples busca de uma pessoa pelo arrependimento, mas na busca pela pátria. O refrão tem um tom pesado, mas de clamor pela volta do canto, aquilo que o sabiá sempre fez impressionar. Clama-se pelo canto enquanto ainda se pode cantar.
Fatalmente, falar de sabiá é remeter ao poema Canção do exílio (1847), de Gonçalves Dias, o qual inaugura (ou potencializa) a imagem desse pássaro em nossa literatura relacionando-o ao Brasil. Assim como nesse poema, os verbos não indicam movimento (cantar, falar, olhar, anuviar, notar, ser, arrepender, procurar, amanhecer etc.); não há adjetivos também. O verbo central seria fugir (o amor fugiu, evaporou). E talvez seja ele que dê o tom central para o sentimento nostálgico e obstinado do eu-lírico que pede a volta do canto do sabiá. O sentimento abstrato “amor” é o que dá a intensidade ao olhar do eu-lírico. Assim como no poema de Gonçalves Dias, como aponta José Guilherme Merquior no ensaio “O poema de lá”, o evocativo – sabiá – é sobretudo lembrança transformada em obsessão, não por menos há a sua repetição por toda a letra.
O sabiá daqui e lá do romantismo agora é o aqui e lá dentro de um mesmo país, dividido e sem horizontes de transformação social. Aqui, como em Gonçalves Dias, não há um desprezo cego pela realidade objetiva do país, é o isolamento do eu-lírico em enxergar o sabiá, a história do país, o amor pelo país em que o eu se formou. Não é a solidão dos modernistas de querer uma Pasárgada. Há uma teimosia do amar um país que poderia ter sido e nunca foi para as camadas pobres. Esse amor é menos abstrato e mais concretamente social. É o lugar que ainda se pode fazer.
Mas ainda podemos cantar, tirar o nó da garganta. Cantar um outro país, se buscarmos esse sabiá. É a busca pela experiência, pelo hábito de estar junto, de cantar, de lutar contra os sofrimentos do povo, busca pela justiça. Isso dá qualidade ao viver.
E o Samba do Trabalhador tem contribuído pra isso.
Saravá!
[1] Gabriel Cavalcante [voz e cavaco], Alexandre Nunes [voz e cavaco], Nego Álvaro [voz e percussão], Luiz Augusto [percussão], Nilson Visual [surdo], Junior Oliveira [percussão], Mingo Silva [voz e percussão] e Daniel Neves [violão 7 cordas]
[2] O violão de Moacyr sabe conjugar a tradição da Bossa-Nova com a do samba. A harmonia, como na Bossa, não é meramente pano de fundo.
[3] Talvez, assim como Benjamin vê em Baudelaire seu olhar melancólica advindo do desencanto melancólico causado pelo fracasso das revoluções, o olhar de Moacyr Luz seja do desencanto lulista. Porém, ali não era revolução, o que dificulta ainda mais a ideia de superação como horizonte. É o desalento individual que tem o clamor para o coletivo, mas sem conseguir agir.
[4] Aqui é a representação de que um elemento estrutural da música pode dizer mais que a letra. O coro não recua aos desafios de qualquer melodia e harmonia propostos na roda. A solução mais comum é jogar para o individual se sobrepor ao grupo. O nível heróico do indivíduo, ou seja o dramático, é sobreposto ao do coletivo, o épico. No Samba do Trabalhador há o resgate do coro no mais alto grau de musicalidade e de variações de timbres que se complementam, formando uma massa sonora precisa e que dá sentido épico (de coletivo) às músicas.