Seção: Prosas de batuques e cachaças – “Só dói quando eu rio” (Guilherme Lie)

“…Sua voz quase imperceptível
parecia cantar – parecia rezar
e apenas suplicava.
E tinha o mundo em seus olhos de opala.

Ninguém lhe dava nada.
Não o viam? Não podiam?
Passava. Passávamos.
Ele estava de mãos postas
e, ao pedir, abençoava.

Era um homem tão antigo
que parecia imortal.
Tão pobre que parecia divino”
(Cecília Meireles, Poemas escritos na Índia (1953), Pobreza)

Muito barulho. Muito barulho. Muito barulho. A música não é suficiente, bota babalu pra pular. O motor entra pelos poros da pele do rosto.

Não há tempo. A velocidade deveria ser quantificada em perdas.

O que se vê é tudo o que há. Muitos iguais a mim passando. Eles me olham? Eu não. É automático: inteligente; arrogante; fútil; intelectualizada; bestializado, não teve oportunidades. O que se vê é tudo o que há. Todos passam tão rápido que parecem os mesmos transformados em outros.

Com tanto barulho andar é difícil. Não pare, não pense, concentre-se no próximo passo. Após o som vem a fuligem e a necessidade de prender o ar. Não pare. PARE! Existem os que cruzam o nosso tropeçar. Espere. Respire. Observe que a cada um o tempo consome como a você. Ninguém me olha

Preciso continuar, todos também. Todos continuam em direções difusas. Todos convergem na abstração de suas inerências. Ocupe-me! Não há nada pior que o vazio porque ele será preenchido. Ocupe-me e eu não me preencho. Eu não preencho, eu não questiono.

A mercadoria chama a atenção. Eu a olho. Os outros também. Ela me olha. Hoje não há tempo. Amanhã não haverá. Todos continuam para que no depois de depois haja. É por isso que há esse barulho todo.

A arte se expressa através de alguns que param enquanto nós continuamos. Serigraficamente, corpos estátuas, repente, improvisações melódicas sobre bases conhecidas, o sopro de Benedito naquele tempo, as mãos de Angenor no peito vazio, as barbas de Aldir na vida noturna, as lágrimas de João sobre a nação. Eu quase paro.

Alguns também. Mas quase é muito pouco. O tempo da planta descolar, flutuar e exigir a continuação. Eu continuo. Todos também. Hoje não há tempo. Amanhã não haverá. Todos continuam para que no depois de depois haja.

Eu não olho ninguém, mas sei que me entendem, eles não me olham. Poucos não me entendem. Eu não posso ajudá-los. Estes poucos devem fazer algo por si. Se eu tivesse mais, daria um pouco. Há pouca dignidade em suas superfícies, a fome não permite que não tenham tempo, para que depois o possuam, assim como todos fazemos. Eu não posso ajudá-los. Não sou culpado.

O barulho é torturante. Prendo a respiração.

Um destes poucos está trôpego. Cambaleia e olha para os outros. Ninguém se olha. Nunca. Ninguém o olha. O cheiro é familiar (Estranho. Como algo de poucos pode ser familiar?). As mãos estão sujas e aguardam a atenção que os olhos, capitosos, acuados e hostis, não recebem. Ele está tentando parar a continuação. Não há tempo. Todos continuam. Ele me olha. Eu não. Não há tempo. Estou quase chegando (Sempre. E quase é muito pouco). Não posso ajudá-lo.

Ele não me entende. Ele não entende os outros. Ele quer parar a continuação. Alguns olham, falam. Melhor que nem olhassem, eu penso. Os que falam atingem o nada. Não há dignidade para ser deplorada. Ele segue na direção do barulho. Eu continuo.

Muito barulho. Muito barulho. O barulho grita. Primeiro agudo. Depois grave. É sempre igual. Se o primeiro é agudo haverá o grave.

Não há fuligem desta vez. Eu continuo respirando. Ao meu redor todos olham. Eu olho. Ele parou o barulho. Escarra o sangue de outra hemoptise. Suas mãos sujas e sem dignidade tremem no chão. E param. Não há sons, ele não fala, ele não olha, ele não tenta mais parar a continuação, seus olhos capitosos estão ainda mais acuados, e sangram, sua superfície indigna sangra a superfície onde deveria passar o barulho.

A continuação quase para. Mas quase é muito pouco.
Todos continuam. Eu continuo.
Eu não posso ajudá-lo. Não sou culpado.
Não há tempo. A velocidade deveria ser quantificada em perdas.

Guilherme Lie, 201x, revisado em 10/06/2020.

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