O empreendedorismo e a porta dos desesperados

(Opinião: Zumbidos, por Rafael Emilio Faria)

Numa situação de alto desemprego normalizada (já introjetada, aceita sem crítica) a partir da ideologia dominante e dos seus aparelhos de dominação, os indivíduos naturalizam a situação, afirmando que gostariam de ter seu próprio negócio…empreender.

No Brasil, essa ideia “sempre” estará em alta. Num país de passado recente escravista e periférico, a imensa maioria das pessoas sequer tem noção do que é trabalho e emprego digno, com salário decente e assegurado por direitos. Além disso, o fato de não ter atrás de si um “capitão do mato”, como a maioria dos nossos “gestores”, é um deleite compreensível.

Na década de 80 e 90, o número de pessoas que queria ter seu próprio negócio chegou a quase 80% da força de trabalho; e diminuiu para 50% no período do neodesenvolvimentismo petista, de quase pleno emprego. Ou seja, se a atual realidade é de flexibilização financeira, demolição de direitos trabalhistas, terceirização total (globalização, Consenso de Washington), o que uma análise rápida de alguns dados demonstra é que cresce uma luta por sobrevivência concomitante à ideologia do empreendedorismo, do “seja você seu próprio emprego ou sua própria empresa”.

Aí observamos aquelas ondas ou modismos de empreendimento: paleteria gourmet, hamburgueria gourmet, food truck gourmet, barbearia gourmet, coach charlatão (pleonasmo), marketing multinível e, agora, diante de uma situação em que a imensa maioria tem que ficar em casa sem garantia trabalhista nenhuma: aulas e cursos on-line. Um imenso mercado concorrencial pelo gourmetismo seleto ou pela sobrevivência; o avesso disso é que a miséria ou a falta de trabalho torna-se o horizonte global. O que muitos enxergam como tendência é na verdade um misto de esperança e desespero diante da destruição dos direitos trabalhistas e da falta de empregos, as quais se intensificaram nos últimos anos.

A realidade se transforma como naquela brincadeira do programa do Sérgio Malandro – Porta dos Desesperados – em que a pessoa escolhe uma porta e torce pra não sair um monstro lá de dentro. Falsa escolha. De dez portas só uma tem o prêmio, além de não se enxergar o que está do outro lado da porta. O desejo de que o acaso salve é proporcional ao monstro voraz que sai da porta.

É amplamente sabido que a imensa maioria desses negócios fecham. Seja por falta de preparo e educação, seja por excessiva concorrência, mas, principalmente, por que não é uma escolha pensada, racional. É correr de onde o desespero expulsa para onde a esperança introjetada aponta.

Se observarmos o desemprego no mundo, a coisa fica muito simples: não há a mínima possibilidade do superestimado e ideologizado empreendedorismo dar conta da calamidade social que a hegemonia neoliberal e sua reestruturação produtiva vem colocando em prática. Isso é jogar para o indivíduo nas massas desempregadas uma responsabilidade desumana de superação de uma condição habilmente arquitetada para destruir o mundo do trabalho e que ele nem imagina que existe. Isso o leva a pensar que a realidade é uma selva e que há uma espécie de seleção natural baseada numa mal compreendida meritocracia (que ele escutou, por exemplo, da boca de um coach tão ou mais ferrado do que ele) e que, no limite, o leva a introjetar seu próprio supervisor, seu próprio capitão do mato. A bem da verdade, essa é prática de muitas empresas há muito tempo – “o homem é o bicho do homem”, diria o ditado. A competição extremada desse contexto e o autoritarismo andam de mãos dadas, há muitos anos.

O monstro que sai da porta dos desesperados é um misto de esfacelamento da solidariedade social, aumento da exploração, salários cada vez mais baixos, alta rotatividade nos postos de trabalho das classes baixas, nenhuma consciência de classe, sindicatos sem representatividade e a manutenção de tudo como está.

Mesmo se houver crença no acaso ou na sorte, o monstro – já não mais escondido atrás da porta – sorri para todos, como se ele fosse a própria esperança.

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