– Beto, desce aquela última gelada! Eu sei que você tá cansado. Sou o único de máscara, ainda me escondendo. O pior são esses filisteus, se fingindo de cara limpa.
– Ah…Nei… – com certo desdém nosso garçom virou-se para cumprir seu gesto módico de abrir a tampa – faz o que quiser com essa garrafa cheia.
– Porra, Beto, me diz: cê gosta de nego traíra? Aquele que joga a isca e te ferra depois? É caráter frouxo, amigo ambíguo.
– Nei, a questão é que tem gente que olha pro próprio ambíguo… – com uma leve piscadela virou-se para abaixar a porta do bar com mofo de quarentena.
– O caráter frouxo – complementou Nei, agora em seu solilóquio – finge ter engano, quando faz quase tudo pensado, só não conta com seus deslizes naturais. Assina embaixo contra a corrupção, contra o fascismo, contra a barbárie…e quem seria a favor? Sim, é verdade, tá cheio de a favor. Sintoma dos tempos desse mecenato corporativo; mas que os culturetes do “contra” adoram participar desse jogo. Adoram o “por dentro”, inclusive na fixação pelo rabo do outro, que se fode mais que ele. Aí vai vendo: chega um cara para um cargo público e finge ter suas baboseiras acadêmicas. Os “culturetes” ficam enraivecidos! Como se pensassem: “investi minha vida inteira e nunca menti. Olha só o que tem nesse governo”. Por isso que no fundo, todo culturete adorava um FHC com seu esnobismo. O deslize do fascista é o desejo do culturete; reformar por dentro para angariar as massas para o seu negócio. Assim como o Santa Cecilier ou Ipanemer investe milhares de reais em seu apartamento para evitar deparar com a barbárie logo que vê o seu porteiro e o portão e a rua. Ainda assim, são investidores de um mundo melhor.
– Se liga, Nei, podemos tocar um sambinha pra animar esse clima. Você sempre azedo, né?
– Sambinha? Vai fazer live nesse mundo de zumbi e ganhar um dinheirinho com seu sambinha, Beto. Aliás, isso é doido: esse batuque de live parece batuque de mortos em suas tumbas. Os corporativos estão doando a torto e à direita dinheiro pra todo mundo que se dispor nesse mundo da cultura geral. Todo mundo está convencido de que arte e ciência salvam a vida, desde que não desnude toda a pornochanchada dos bastidores. É tipo Sodoma e Gomorra.
– E o corona, Nei? Mata pra ensinar ou ensina pra matar?
– Não tem ética que exista nesse mundo que se diz de barbárie iluminista, por ciência e arte. Se ligou que hoje eu tô bárbaro, Beto? Cheio de piadas estúpidas. O professor mais cruel da ética atual é o coronga. Tá corongando a previdência, as oportunidades, os cases de sucesso. Todo mundo será corongado, muitos excomungados e já vislumbram a Anistia sem lutar.
O mundo de hoje é dos recordes. Quem disse que não teríamos Olimpíadas? Ganhamos até na piada, como sempre. E tá chegando gafanhoto, Beto!
– Nei, o gafanhoto então pode ser o amigo umbíguo?
– Esse daí é o “morra quem morrer” do vossa excelência seu presidente. Fui!