Seção “Um lero pelas esquinas” (entrevista): Áurea Maria

(entrevista realizada por Fernanda Guimarães em 27/07/2010 / foto: Wallace Mendonça)

“(Tia Surica) – Monarco me disse pra procurar uma pessoa para integrar temporariamente a Velha Guarda, e tem que ser você.
Eu disse: – Ah, eu não quero, é muita responsabilidade!
Ela repetiu: – Você vai, não pode dizer não!”

Eu nasci entre os bairros de Oswaldo Cruz e Madureira, onde estou até hoje. Sempre convivi com meus pais, na minha infância, adolescência… Depois de adulta, logicamente, me casei. Minha infância é sem grandes coisas surpreendentes. Eu estudava e sempre ajudava minha mãe. Porque a vida era difícil, então criança tem que ajudar mesmo. Tenho duas irmãs, que também colaboravam. Brincávamos, não tinha nada, assim, de diferente da infância de outras crianças.

Com bastante dificuldade, talvez isso seja um traço diferencial. Uma infância com bastante dificuldade para estudar, e depois, no decorrer da vida, também. Depois que nós saímos da escola pública, que terminamos o ensino primário, nós continuamos a estudar, que era a nossa vontade e a vontade dos nossos pais.

Comecei a trabalhar pra me auto-sustentar, fiz primeiramente o curso de auxiliar de enfermagem e depois a faculdade de Serviço Social, na Universidade Gama Filho. Sempre trabalhei na área da saúde, em unidade federal, e me aposentei como assistente social. Atualmente, vivo para a Velha Guarda, gosto demais. Vivo pra cantar.

Meu pai realmente fazia isso que eu comentei no filme (O mistério do samba), porque na época não tinha gravador, não tinha essa tecnologia avançada. E quando ele fazia música, para não esquecer, ele nos chamava:

– Olha, guarda essa música pra mim, não esquece!

Cantava e fazia a gente repetir, para fixar. Quando ele precisasse, já tinha reserva na memória. Algumas a gente lembra, outras eu já esqueci.

A minha casa sempre foi uma casa festiva. Meu avô participava de um grupo que tocava chorinho, e nos finais de semana ele reunia esse grupo em casa. Aos domingos, eu já amanhecia ao som do bandolim. E depois, papai também, envolvido com a Portela, continuou, então sempre tinha movimento de música lá em casa, e eu sempre ficava muito atenta a tudo. Atenta ao chorinho, atenta ao samba, e fui me envolvendo, não tinha como deixar de me envolver. E depois comecei a acompanhar meu pai, ficar mais perto dele. Até compus uma música com ele, Volta meu amor. Tem outras, mas essa chegou a ser gravada.

Não foram muitas, porque não deu tempo. Às vezes eu o chamava:

– Papai, fiz uma música!

– Ah, me deixa descansar, depois eu vejo.

E assim ia, e às vezes, quando ele pegava, eu já tinha muitas, não dava pra ver tudo. Mas depois ele adoeceu, não deu tempo de compor muito mais. Mas o que ficou, o que foi feito, foi muito bom, muito bom. Talvez se tivéssemos feito muitas, não teria o mesmo sabor quanto essas, que foram tão poucas, mas com uma grandiosidade, pra mim… Enfim, assim foi, me envolvi na música, desde pequena, depois me aproximei muito mais de papai, e após seu falecimento, veio o convite para eu integrar a Velha Guarda.

Foi através da Surica, porque Seu Monarco tinha pedido a ela pra providenciar uma pessoa pra substituir Dona Eunice, que na época estava afastada para cuidar da saúde. E a Surica foi procurando, e ela também foi uma pessoa sempre muito próxima de nós. Surica praticamente foi criada por minha mãe, conviveu muito tempo lá em casa. E nós cantávamos juntas, ela cantava samba-enredo com meu pai. E um dia cheguei na casa dela, junto com minha mãe, e ela disse:

– Ah, como não lembrei? Tinha que ser você!

Fiquei assustada:

– Mas, tinha que ser eu, o quê?

– Ah, é você, é você!

– Mas o quê?

Então ela disse:

– Monarco me disse pra procurar uma pessoa para integrar temporariamente a Velha Guarda, e tem que ser você.

Eu disse:

– Ah, eu não quero, é muita responsabilidade!

Ela repetiu:

– Você vai, não pode dizer não!

Eu pedi um tempo, conversei com as pessoas, todos me aconselharam a aceitar:

– Assim você ajuda a manter vivo o nome do seu pai.

Eu disse:

– Mas eu não substituo meu pai.

Eu falava para as pessoas.

– Não, mas não é assim… Toda vez que mencionarem o nome do seu pai, você vai estar ali pra representá-lo..

Enfim, me convenceram. Assim eu comecei com a Velha Guarda – temporariamente… Há mais de dez anos. Quando Dona Eunice voltou, eles não me deixaram sair. E fiquei até hoje, com muito orgulho, porque participar da Velha Guarda da Portela é um orgulho muito grande pra mim. Só tenho a aprender a cada dia.

O repertório dos shows cabe mais ao Seu Monarco, ao Paulinho Figueiredo, que é o empresário, e às vezes ao Serginho. São eles que escolhem, mas nenhuma das músicas é estranha para nós. Desde pequenininha eu as conheço.

Ainda não ajudei a recuperar o repertório, porque na época que foram selecionadas as músicas pra gravar o CD Tudo Azul, eu não fui para a casa da Marisa Monte, onde a seleção foi feita. Mas quando eu vi o filme, o que eles falavam, lógico que eu lembrava das músicas. Porque, como eu disse no filme, nós cantávamos os sambas da Portela como brincadeira de roda, como cantiga de roda, estava muito presente e muito fixo. Às vezes começamos a relembrar… Seu Monarco até quer fazer uma reunião para buscarmos as “músicas do baú”, como ele fala:

– Vamos buscar, que a Velha Guarda tem um baú muito rico, vamos nos unir pra lembrar.

Tenho certeza que a mente vai funcionar, e eu vou lembrar muito. Vai ser legal, muito bom.

É um pouco temerosa a idéia da continuidade, entende, mas ninguém é insubstituível. Eu acredito que a Velha Guarda, na sua trajetória, passou e passa uma mensagem muito forte, cultiva a raiz do samba. Quem vier, vem com essa intenção, de manter e dar continuidade a todo esse trabalho, que é feito. Eu acredito que ela vai se manter.

Sempre morei na antiga Rua Dutra e Melo, essa é uma depois da rua do Portelão, a Rua Clara Nunes. E atualmente ela tem o nome do meu pai, Rua Compositor Manacéa. Onde eu sempre morei, nasci e fui criada. Me casei e fui morar em outro bairro próximo, que é Rocha Miranda, mas eu quase não fico em minha casa, eu fico mais em Madureira. Ainda não cortei o cordão umbilical.

Eu tenho intenção agora de começar a explorar esse lado de compositora, vamos ver se ano que vem… Não mostro para ninguém as minhas composições, praticamente não. Depois que papai faleceu, eu também deixei um pouco, esse lado ficou bem adormecido. A lembrança era muito presente, muito forte. Passado algum tempo as pessoas começaram a perguntar:

– Você não compõe mais?

– Você não tem mais contato com a música?

Eu falei:

– Vou começar a rever.

E comecei a buscar. E agora, estou me interessando em ativar essa questão de cantar. Faço letra e música. Graças a Deus. Infelizmente não toco nenhum instrumento, até tentei, mas não consegui. Talvez, quem sabe? Num próximo momento, quem sabe eu aprendo a tocar cavaquinho, que eu gosto. Vamos ver.

Sempre desfilei na Portela. Todos os anos. Desde pequena, eu ia para a quadra com minha mãe, eu era bem pequena, tinha 6 anos. Eu me lembro de ter 6 anos, quando comecei a freqüentar a Portelinha…

Vi a Velha Guarda nascer, graças a Deus. Conheci todos, lembro. Inclusive meus tios, o irmão do meu pai e um irmão da minha mãe, Lincoln, foi um dos parceiros de Paulo da Portela, participava da velha guarda. Do início, da primeira formação, meus tios participavam, então a lembrança é bem presente.

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