As rodas de samba, a roda-viva, o clímax e o túmulo dessa nossa trama evolutiva…

(Seção Zumbidos: por Leo Pereira)

I.

Chega de dizer e de querer rebater que “São Paulo é o túmulo do samba”, o quase verso-aforismo atribuído a Vinícius de Moraes. A frase repetida mil vezes precisa ser cavucada não para se colocar alguém no paredão do júri popular, mas para entender o que a fez se repetir.

Gostaria deste feito, inócuo eu sei. Mas prefiro arriscar-me em algumas hipóteses do que meramente aceitar uma frase de efeito midiático, a qual mais contribui pra um revanchismo de alguns sambistas, sambistas-acadêmicos e afins de São Paulo mostrarem em teses e entrevistas, principalmente a partir dos anos 2000, de que, sim, haveria samba e samba paulista na Pauliceia!

Fato óbvio resgatado com o intento de reescrever-resgatar uma história; talvez, no entanto, necessário, ao menos, expô-lo para uma geração forjada pela égide da mídia de massa do hoje aclamado “pagode 90”. A produção artística-midiática daquele fim de século, em que a imagem e os gestos repetitivos do grupo ou cantor(a) se sobrepunham à música, embora a referenciando, faziam dela um pretexto para a reprodução incessante de determinado produto cultural, essa produção deixou em seus escombros não somente figuras históricas do samba paulista como Toniquinho Batuqueiro, Talismã, Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde, Seu Nenê da Vila Matilde, por exemplo, mas também o próprio samba feito por essa geração de pagodeiros 1990. Lugares importantes e significativos de convivência permanente de sambistas, compositores, músicos e produtores artísticos como o “Botequim do Camisa” e o bar “Em Cima da Hora”, respectivamente na Casa Verde e Limão, zona norte paulistana, mal são citados como parte da experiência sócio-musical desses grupos de pagode. Muitos deles morreram como indigentes, mesmo com canções de sucesso em estações de rádio. O cemitério de Perus não daria conta das covas dos grupos de samba-pagode dos anos 1980 e 1990.

Nesse arco histórico, entre a primeira geração dos sambistas, muitos vindos da zona rural paulista, e os anos 1980 e 90, há uma história chapada, ou uma história sem história, contada pelos idealizadores do samba paulistano que parece mais celebrar a vitória do “sim, tem samba em São Paulo!” do que buscar a confluência entre sambistas, músicos, compositores e produtores do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, da Bahia etc. e sua condição de oficialização de produto do povo, com possibilidades de profissionalização dos músicos/artistas e sua estética musical-imagética programada para a circulação midiática. Para os ideólogos há a defesa da espontaneidade e da autonomia desses grupos. Nota-se que, hoje, resta apenas a reprodução dos sucessos de época como forma de se manter no mercado.

De todo modo, o destaque para a particularidade do samba paulista parece ter sido envelopado como essência por sua história particular do samba sem conflito com qualquer outra categoria de “samba” existente no Brasil. Como se a cultura (e ainda: a cultura nacional-popular) não tivesse influências e confluências entre territórios; como se o samba feito em um território específico não sofresse influência do que circulava, por exemplo, nas rádios a partir da década de 1940, quando o aparelho se generalizou na verve do processo de modernização brasileira, havendo mais rádio do que geladeira nas casas desse país; como se o samba fonográfico de sambistas paulistanos fosse a representação pura e direta de seu território, sem mediação alguma de uma sonoridade de mixagem e masterização, de arranjadores, de produtores artísticos e executivos para que aquilo fosse realizado como produto cultural do mercado.

Assim, o tom de militância do samba paulista, ao encará-lo histórica, musical e/ou sociologicamente, tende a ressaltar, por meio da descrição de seu fazer musical, sob uma ideia de autonomia e espontaneidade dos grupos, e social, sob o significado de resistência, a luta política de sambistas relacionados ou a tradicionais escolas de samba de São Paulo como resistência particularizada e/ou a sua invisibilidade histórica em relação à música popular, pretendendo revalorizá-los no circuito cultural paulistano por meio de sua divulgação, de álbuns gravados por eles a shows em homenagem, reproduzindo sambas de outrora por sua raiz rural ou estilizando-os, por versões com tom modernizantes daquele samba arcaico, sobretudo pela inserção de tecnologias sonoras atuais (timbres, samplers, batidas eletrônicas, instrumentos alheios àquela prática musical etc.). Independentemente dessas tentativas, deixa-se de lado, portanto, o confronto entre a música feita na prática social e sua historicidade e os seus registros fonográficos. Assim, estes tornam-se apenas registro naturalista, e neutro, da prática sócio-musical; com efeito, uma audição correspondente a essa ilusão de produção artística-comercial. Mas deixarei pra aprofundar esse debate pra uma próxima.

Voltemos. Uma frase repetida mil vezes e tornada verdade, como entendeu Joseph Goebels, o comunicador nazista entendido da massificação da cultura, precisa ser superada, caso queiramos, de fato, compreender os entraves entre cultura e política. Desafio pra qualquer pesquisador da cultura interessado no Brasil, em sua história, em sua música popular e em sua relação fecunda entre o efeito de espontaneidade dos produtos fonográficos e aquilo formatado esteticamente para condicionar o ouvinte a isso e, ao mesmo tempo, formatar, de forma calculada, sua audição para a exigência imediata de que aquilo corresponde ao “povo brasileiro”.

Minha proposta de analisar e interpretar a frase de Vinicius de Moraes não é pra “passar pano” pro poetinha, não, muita calma! Para os que o rotulam como um bossanovista, branco, da elite, há sua parcela de verdade. Parcelas a perder de vista; e sem contradições. Estes são puristas de biografia anedótica sem história social; espinafradores de realizações artísticas daqueles que fizeram parte de nossa cultura e a enfrentaram em seu tempo histórico; eleitores de artistas da geração 1960 para o bel-prazer da espinafração ou da glorificação, conforme a melhor roupa que estribilha sua contestação política do momento; são, hoje e há tempos, entendedores de que cultura nacional, se é que há!, e popular deve ser compreendida e valorizada, mercadologicamente, por seu conteúdo referenciado diretamente ao presente, esquecendo da chatice da canção engajada de “Pra não dizer que não falei das flores” e afins, e sem nem a ouvirem pra discutir uma frase melódica sequer ou a canção seguinte do álbum de Geraldo Vandré. 

Mas, pra além do debate diletante sobre questões técnicas-musicais, há os diletantes da estética da música popular com seus apêndices históricos e anedóticos sobre contexto histórico de composição do autor e de sua biografia, de um ponto de vista subjetivista que busca encontrar as causas vivenciais do artista sobre a composição – uma história da música sem música, uma história feita de arremedos de anedotas biográficas; há os diletantes da música pela música cujo social é só um comentário tão diletante quanto o ponto de vista sobre a sociedade, balizada por elementos externos e modernizantes que causaram a evolução da música popular e, consequentemente, os seus vanguardistas, até hoje empenhados em se oficializarem como tais por meio da mídia, de redes sociais ou editais.

Nesse engodo, entre uns e outros, também posso diletantar sobre o enunciado pétrio de Vinicius de Moraes que, a meu ver, pode ser contextualizado por:

primeiramente, o samba se forjou como carioca e nacional – , fato desde o fim dos anos 1920; segundo ponto, o samba moderno, da Turma do Estácio, como manifestação popular e urbana sintetiza ritmicamente diversas manifestações folclóricas do Brasil, mas essa sintetização também se forjou, sob um horizonte de expectativas de sujeitos e grupos marginalizados em que poderiam apostar, via cultura comercial, em sua inserção social numa metrópole, com fundamentos modernizantes, cujas influências culturais eram diversas, e estravasavam o samba da Turma do Estácio, pois também se realizavam fonograficamente pela formação dos músicos que atuavam em estúdio; terceiro, o chamado samba paulista está mais atrelado a elementos rurais, ou rotulados como folclóricos – como se não tivessem desenvolvimento histórico – , do que àquele samba moderno do Rio de Janeiro (Plínio Marcos, somente em 1974, no álbum “Plínio Marcos em Prosa e Samba com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro“, tenta recolocar o samba paulista como relevante no cenário nacional, buscando a sua particularidade pela raiz rural, mas a vida dos sambistas na cidade de São Paulo não se diferenciava dos do Rio de Janeiro). É indubitável que Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde, Talismã, Inocência Tobias (o Mulata), Seu Nenê, Seu Carlão do Peruche e outros nomes importantes atrelados às mais importantes escolas de samba de São Paulo, não só ouviram os sambas dos sambistas do Estácio e de outros da década de 1930 e 1940 pelas estações de rádios e pelos fonogramas, como também buscaram formar suas escolas de samba a partir de algo já feito por comunidades do samba carioca. Acúmulo de experiência histórica que atravessa territórios! (E se fôssemos pensar em Santos, um outro texto deveria ser feito – e J. Muniz Jr. é o baluarte dessa história de confluências. Fora a vinda de diversos carnavalescos e produtores artísticos, em gravadoras situadas na região da Luz e Santa Ifigênia entre 1950 e 1970, que também possibilitaram a relevância do samba paulistano, sobretudo; se em vez da via marítima entre portos, fôssemos pela Dutra, teríamos uma história, por exemplo, do samba de Guaratinguetá).

É fato também que os praticantes do samba rural, embora ainda parte da prática social de poucos grupos em algumas regiões, centrais ou não, da cidade de São Paulo, entre 1930 a meados de 1950, tinham uma relação mais direta com sua formação social e individual. Porém, isso não significa que Toniquinho, por exemplo, seja diretamente a representação do samba rural em suas gravações fonográficas, embora apresente elementos musicais diretamente relacionados a isso. Se tomarmos sua fatura artística como uma mera representação de um mundo arcaico, desconsideramos, por exemplo, a ideia dramatúrgica de Plínio Marcos no álbum Balbina de Iansã (1971), da qual Toniquinho participa. E ainda: se tomarmos o samba de São Paulo como meramente o samba paulistano, devemos ressaltar o cavaco em ritmo samba-amaxixado nas gravações do grupo “Demônios da Garoa” das composições de Adoniran Barbosa. Maxixe, como ritmo musical e dança, criado no Rio de Janeiro de meados do século XIX; base musical de samba para diversos músicos que gravaram fonogramas até meados dos anos 1950; ritmo que ultrapassa qualquer periodização teórica e ressalta a formação cultural e social dos músicos de estúdio, atravessando perspectivas periodistas e causais.

Enfim, me parece que, nesse revanchismo do samba SP-RJ, há um abismo a ser cavucado e que deixa o próprio desenvolvimento sócio-musical do samba de lado. Ao passo que pesquisas acadêmicas apresentaram a particularidade das origens do samba de São Paulo, desde meados dos anos 1990, há também uma miopia sobre a história do samba paulistano, resultando na adesão ao rótulo fonográfico-midiático “pagode 90”, o qual é consumido exaltativamente por nostálgicos de um tempo forjado a machadadas pelo neoliberalismo globalizador. Assim, os que reivindicam a resistência da cultura popular como forma de sobrevivência dos marginalizados historicamente passam ao largo do debate sobre as condições da profissionalização artística e o fetiche de uma cultura nacional-popular autônoma do mercado global. O teclado sintetizado dos arranjos musicais a partir dos anos 1980 embala a audição complacente da periferia do capitalismo. Mais barato do que uma dúzia de músicos; assim, a eliminação de profissionais se transforma em gosto popular, por seu significado modernizador. E junto ao sintetizador, Gugu e Faustão se digladiavam por Ibope, com o imperativo do jabá das gravadoras; os bicheiros investiam em seus pagodeiros pra lavarem dinheiro; nos anos 2000, facções do tráfico de drogas investiam na carreira de determinados pagodeiros ou de grupos…etc. No entanto, é certo que o rótulo nostálgico, “pagode 90”, se tornou militância cultural e política de certa parcela da esquerda, que se diz a favor de quebrar preconceitos culturais, pois a cultura brasileira é elitista e branca…e a perspectiva liberal dessa militância, de fato, venceu.

Venceu em partes, pois seu imaginário sobre a elite parece mais estar fundado numa representação da zona sul carioca dos anos 1950 do que nos proprietários de latifúndios, que vai de produção agrícola, passando por cabeças de gados, a artistas. Esta elite direciona sua influência social e seu poder político tanto para as instituições políticas quanto para o mercado cultural. Dominar um canal de televisão, de rádio e/ou um jornal em um município ou em um estado é princípio básico para a atuação econômica-cultural desses latifundiários, que, novamente, há muito extrapolaram o domínio sobre a terra, as leis, a política institucional.

Revela-se, portanto, da parte dos militantes individualistas do progressismo culturalista-popular uma miopia adequada a sua realidade social, tornando-se ponto de vista normativo e legitimador de seu próprio lugar social. Errado é aquele que vê, de forma distanciada, a necessária mediação social e econômica da produção de bens culturais para que a miopia seja norma e utopia, gestada pelo estado progressista ou pelo mercado de artistas progressistas, a depender do contexto histórico e do tempo de vida dos artistas do panteão da MPB e afins.

Pra além do rótulo, diversos sambistas de São Paulo, mesmo que enredados em planos comerciais e midiáticos das gravadoras, mostraram seu valor artístico, ainda que mediados por arranjadores, produtores artísticos e executivos, engenheiros de som, músicos etc.

Se pagode é samba; se samba é pagode é outro papo…

II.

A frase pétrea de Vinícius de Moraes é de 1966. O poeta e compositor carioca se engajou à esquerda como artista na luta política no início da década de 1960 e foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE. Nem pretendo discutir as interpretações hegemônicas sobre o CPC que partem da análise de seu manifesto, rotulando-o como paternalista, elitista e afins. Para aqueles que relacionam inequivocadamente e de forma determinista origem social à luta política, a tendência de perspectiva histórica é de uma história de formação social e cultural dualista e cindida entre “elite” e “marginalizados”, um resquício ruim da crítica de José Ramos Tinhorão. Porém, a investida de Tinhorão na crítica sociológica-cultural à classe média, como uma classe social desenraizada culturalmente e aderida aos produtos culturais com rótulo de “moderno” que lhe aprouvessem como parte de um equilíbrio social, no caso musical, não é de se descartar, já que, talvez, pela primeira vez se explicitaria, ainda que de forma mecânica em sua análise, a relação entre uma classe social e a massificação da cultura, com conotação progressista. A sonoridade do samba seria tratada em estúdio como forma de higienizar seus elementos arcaicos (e) urbanos, tanto quanto o seu progressismo sambista em bairros históricos do samba paulistano – gentrificação que se chama, né? – : Barra Funda, Santa Cecília, Lapa, Lapa de Baixo, Pinheiros, Pinheiros de Baixo e arredores -, sua investida tinha um embate cultural e político latente para a constituição de uma aliança de classes que pudesse se distanciar de sua ilusão progressista “via culturalismo”. Um exemplo de Tinhorão parece pertinente até os dias de hoje: após o golpe de 1964, a migração do público universitário de classe média do Zicartola para o Teatro Opinião, celebrando irrefletidamente a resistência ao golpe civil-militar e acreditando em sua aliança de classes por sua produção cultural progressista, é um bom exemplo da atuação “gafanhoto” dessa classe.

Hoje é samba, “pagode 90” (num bololô pior que a disputa de sabonete na banheira do Gugu), Beyoncé, rap, trap, piseiro, forró brega e afins…rótulos e mais rótulos…aliás, Marília Mendonça, a feminista do sertanejo endossada pelo tropicalismo mercadológico de Gal Costa, já é morta, com o perdão do trocadilho. Assim como paulatinamente são mortos e postos nos escombros da história muitos artistas que tiveram relevância por sua produção em sua época, produzindo muito ou pouco. De todo modo, perdia Tinhorão de vista em sua crítica de que sua hipótese de “ascensão do samba” não seria somente um processo de apropriação e espoliação da cultura dos negros no Brasil, mas também uma prática permanente da indústria cultural. Jogar artistas aos escombros é a constante dessa prática; afinal, se fazer sucesso é para poucos, o público também o é, ainda que a indústria fonográfica também aprendeu a produzir para seus nichos culturais aquilo que eles acreditam estar produzindo por si, referendando sua militância cultural progressista e de relativa hegemonia histórica à esquerda em que composição, produção e consumo se enlaçam como em um pacto de um casamento burguês (diz-se “sim” à vida conjugal eterna na frente de todas as testemunhas, até o momento do eterno se esgarçar pelas disputas de status quo, propriedade e dividendos).

Hoje, a classe média de viés progressista – seja lá o que isso signifique – e postulada moralmente como “antirracista” se resigna, aparentemente, por sua origem social pela adesão ao consumo de uma cultura progressista, forjada, sobretudo, ao fim da luta armada – e sem contradições!; pauta-se performaticamente em suas aparições, como consumidores e/ou nas redes sociais, em contraposição ao avanço da barbárie sobre um povo. “Como pode o pobre ser de direita?”, “o pobre é burro”, “o problema do Brasil são os evangélicos” são alguns enunciados dessa classe indignada ao ver a olhos nus a guinada do fascismo no Brasil. Há os mais bem intencionados e engajados – os chamados ativistas e até artivistas – , que ocupam ONG’s, que são profissionais de editais, que lutam por mais políticas públicas – e se for possível sua participação nelas, ainda melhor.

Os jargões de tom crítico-social correntes nesse lugar social (“desgoverno”, “governo irracional”, “loucura generalizada”) criaram uma espécie de identificação solidária (ninguém solta a mão de ninguém, como numa ciranda num show de Lia de Itamaracá na Casa Natura, um pacto já feito de antemão em que a música se dá como pretexto para a roda girar no mesmo lugar); mostraram em coro quem compreende o Brasil que deveria ser e não foi – mas o é! – , sob estado de congraçamento, em seu nichos bem delimitados da indústria cultural. Afinal, a classe média progressista luta para se filiar ao povo (leia-se: pobres), congraçando com o gosto musical da moda e com seus artistas norteadores do progresso, que se congraçam com os ritmos da moda do “povo” ; até que o ritmo embalada por gozos individualizados e seus representantes artísticos sejam descartados pela próxima moda cultural e política. A luta política dessa classe média por visibilidade e representatividade dos artistas do “povo” se pauta por sua redenção moral individualizada, pois, ao se mostrar como consumidor da “arte e cultura do povo” se legitima como redentora histórica em contraposição àquela elite imaginada e fetichizada como opressora. Essa luta política da classe média a favor do gosto musical do “povo”, geralmente como entretenimento, ao mesmo tempo e, consequentemente, de uma cultura nacional possivelmente “decolonizada”, como forma de aliança de classe em que seu paternalismo conceitual lhe dá a superioridade moral de indicar o horizonte de transformação social por uma ideia de desenvolvimento histórico e cultural não se dá na mesma instância de consumo de alimentos do “povo”. No limite, cada um engole a salsicha que cabe em sua boca e em seus ouvidos…o importante, porém, é a circulação das mercadorias culturais que os progressistas legitimaram como produtos culturais que necessariamente darão o “salto de consciência” para o engajamento geral. Diante de seu espelho narcísico, mesmo que o pobre coma salsicha ou pedra, é necessário que se acredite que sua imagem – ambiguamente: a do indivíduo progressista, engajado no consumo da cultura popular, e a do povo pobre, o qual partilhará do seu mesmo gosto cultural – corresponda a uma banquete partilhado com todos (ou todes) que ela permita adentrar em seus redutos.

A luta pela democracia (neo)liberal como fim e como horizonte de um eterno jogo de perde e ganha nas eleições, o partilhamento do imaginário do fim do mundo, as palavras de ordem da moda nas redes sociais, as selfies de alegria em ambientes de entretenimento, as imagens de participação em espetáculos de artistas pop, o delírio com os festivais, as fotografias em museus e locais consagrados do mundo “desenvolvido”, a comida e o livro consumidos, a exposição da insatisfação ou satisfação com o emprego etc. Tudo isso e muito mais compõem o universo dos sujeitos progressistas da classe média. A arrolagem de sua prática acima expõe um universo simbólico e material que lhe implica se manifestar como oposição ou aceitação, a depender de seu (re)posicionamento na dinâmica das relações de classe. Afinal, não há de se surpreender que estes que cultuam o “pagode 90” ou o “axé da Bahia” como rótulos inquestionáveis mais atuam como resignados morais de seu passado do que interessados em compreender que essa superficialidade dos rótulos mais os aproxima de uma elite repressora e colonial do que de vanguardistas e contestadores políticos. Seu engajamento político via cultura progressista se aproxima tanto de um pensamento mágico quanto de seu modo de racionalização da vida individual (deve-se fazer isso, para chegar àquilo; deve-se compreender x, para se viver de tal forma; deve-se, deve-se, deve-se…imperativos de estilos concorrenciais de vida que confluem pra própria manutenção de seu lugar social, se possível alavancado pela especulação imobiliária).

III.

Em 1966, quando Vinícius de Moraes enunciou seu aforismo sobre o samba em São Paulo, o circuito musical da cidade de São Paulo tinha algumas particularidades. Havia, sim, boates e casas de show na região central paulistana onde se tocava em trios ou quartetos o samba-jazz e o samba-canção; se tocava o samba-rock (por mais que seu início possa ser caracterizado pela dança, houve também uma música diferenciada do sambalanço carioca), o sambolero, canções românticas internacionais etc.

É certo que a perspectiva de cidade do compositor de “Chega de Saudade” estava mediada pela da Guanabara. Viveu o samba na Lapa, no Catete e arredores; conheceu as escolas tradicionais do samba carioca – as do asfalto, como a Portela, e as dos morros, Salgueiro e Mangueira, por exemplo. Ao chegar em São Paulo e circular por sua região central, após sua experiência no CPC, era evidente de que havia um público mais enclausurado numa ideia de que o samba deveria ser o “estilizado” por seu caráter “moderno”; Vinicius de Moraes já tinha entendido isso ao se afastar da Bossa Nova e, posteriormente, se aproximar de Carlos Lyra, ao fundar e participar ativamente do CPC, no início da década de 1960.

O poeta de “Soneto da separação” enunciou sua frase polêmica após assistir a um show de Johnny Alf na boate Cave, localizada na rua da Consolação. Alf, à época, já consagrado como “pai da Bossa Nova” por seus pares artísticos, como João Gilberto, Tom Jobim e pelo próprio Vinicius, e artista reconhecido por seus sucessos há uma década, atuava profissionalmente em diversas boates do centro paulistano. Pouco afeito a viajar para outros lugares para divulgação de sua figura artística e de suas produções, é fato que “o pai da Bossa Nova” era figurinha repetida nas noites paulistanas. O que seria um privilégio para qualquer um ouvi-lo “ao vivo”! Na noite da fatídica frase enunciada por Vinícius, além de a boate Cave não estar lotada, o poetinha se incomodou com o falatório alto e com a constante conversa durante a apresentação de Alf, como se o público o desprezasse e fizesse, de sua apresentação, “música ambiente”, um pretexto para o evento social com valor agregado para o status social de seu público – assim como dizem os produtores de eventos de entretenimento: há aqueles mais “adequados” e “menos adequados” a participar do evento. O incômodo do letrista de “Chega de Saudade” naquela situação de desprezo do público à apresentação de Johnny Alf se tornou discussão dele com alguns frequentadores da boate; um deles, segundo depoimento de Toquinho, disse: “Aqui é São Paulo!”; e logo a seguir a resposta aforística de Vinícius, registrada por um jornalista esperto. Assim, a celeuma se deu.

Para além do fato em si e de sua prospecção polêmica por conta do jornalista, a frase ressoa com muito sentido em seu contexto, pois, a postura do público denota sua relação de consumo com um artista, compositor e cantor de renome na história musical (ressalto: já naquele momento histórico!), com relação a uma música popular do Brasil, de caráter internacional (fosse por seu reconhecimento no mercado norte-americano, fosse por sua imagem, no sentido de arranjo musical e de banda, atrelada, em parte, ao jazz norte-americano, fosse por sua cristalização como algo histórico) e, naqueles anos, já criticada como música de uma elite a qual aspirava a modernidade cultural e, por isso, crente de que seu consumo de bens culturais “modernos” a creditaria para a participação na vida política.

Na verdade, sobretudo a partir de 1968, não somente a canção popular se tornou o bastião da legitimidade social e cultural da classe média como sua representação simbólica de luta polítca, mas também seu consumo de roupas, de alimentos e de alguns bens-duráveis, como eletrodomésticos e carros. Símbolos modernos da massificação cultural que se atrelaram à luta política; assim, representar seu lugar de consumo por hábitos e comportamentos, não era somente “capital cultural” em disputa, segundo leitores do sociólogo francês Pierre Bourdieu, mas também a reprodução da vida social esgarçada na periferia do capitalismo cujo horizonte de transformação social, hegemonicamente por meio do sistema capitalista, se enfronhou na ilusão de indivíduos progressistas. Esta era base contraditória, pois não há ilusão meramente individualizada, mas a produção cultural, em tempos ditatoriais, acalantava o sono dessa classe média. Para isso, era necessário ratificar seu gosto cultural como luta política inconteste e sem contradições históricas entre sua produção, circulação e consumo. Assim faz-se a mercadoria e seu fetiche.

Especulo: Vinícius de Moraes buscava um tal “samba autêntico”, fosse pelo gênio bossanovista de Alf, fosse pela roda da batucada, de versadores-partideiros, de sambas de terreiro e sambas de enredo. O que, no Rio de Janeiro, teria vigor e procedência histórica na região central e no subúrbio próximo a ela, como na Tijuca; em São Paulo, não. Por isso, sua frase pode ser interpretada como uma busca pela autenticidade do samba, no sentido de sua prática social. Johnny Alf era samba! E o público o consumia por seu rótulo e o status a que isso se devia.

Talvez, Vinícius de Moraes nunca tenha atravessado a ponte para ver a Camisa Verde e Branco, seus sambas de terreiro, sambas de enredo e seus partideiros; nunca tenha ido à Nenê de Vila Matilde; nem descido à barafunda da Vai-Vai no Bixiga. Sua compreensão e vivência da cidade do Rio de Janeiro, mesmo que mais restrito à Zona Sul, era de uma Copacabana em que perfume e chafurdação se imbricavam à luz do luar; era de uma Lapa suja, por cujos botequins artistas, jornalistas, intelectuais e sambistas malandros se cruzavam, se esquivavam, se debatiam, tiravam sarro e faziam escárnio daquele ambiente, e também se aproximavam por suas diferenças de origem social e por suas perspectivas políticas que confluíam através de uma ideia política comum, no sentido de aliança de classes, em que a percepção comum era da condição de desigualdade e injustiça social, necessariamente a ser superada pelo convívio intenso, mesmo com diferenças e conflitos. A necessidade, porém, também estaria mediada pela produção cultural. Isto é, fazer circular uma cultura nacional-popular em que fosse reconhecida uma negociação sócio-cultural entre os detentores de um saber do povo, com sua musicalidade e poética que atravessam e se desenvolvem por diversos territórios, e indivíduos ou grupos dispostos a contribuir para isso, imiscuindo-se nas produções, não sem contradições. E sem elas, há os que buscam “pureza” de um produto que, mesmo não sendo sucesso, é concebido segundo perspectivas estéticas que se direcionam para as massas – e a disputa política-cultural por elas tem-se evidenciado por uma pausterização do produto cultural posto em jogo. Faz-se, assim, a lógica reprodutiva da cultura e da sociedade nacional mais descarada, mesmo que se contraponha ao “discurso oficial”, no sentido de quase-cópia de uma fórmula musical e do imaginário sócio-cultural a que aquilo remete – quanto pela possível superação dela.

Exemplifico: em 1955, o samba “A Voz do Morro”, do compositor portelense Zé Keti, ganha notoriedade por ser a canção leitmotiv do filme “Rio, Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos. O arranjo desse samba é de Radamés Gnatalli. É incoerente exaltarmos o conteúdo de tom exaltativo desse samba, sendo seu sujeito lírico o próprio samba, se não levarmos em conta: 1) a análise do arranjo musical e instrumental e de como isso plasma, em alguma medida, questões sociais, históricas e culturais daquela época em que o discurso hegemônico nacional era o de modernização e a superação do atraso brasileiro para competir pari passu com as nações desenvolvidas; 2) a entrada do rock americano nas rádios e o início de uma forma de sociabilidade da “juventude rebelde”, identificada por seus questionamentos morais e comportamentais, rebeldia moldada pela indústria cultural em tempos de capitalismo tardio, e retardamento do estado de bem-estar social europeu, o lazer noturno nos centros urbanos está encalacrado na perspectiva individualizada de compensação do trabalho, sendo a boate, a música, a bebedeira, os encontros domésticos em bairros centrais etc. a lógica de atuação política contra o sistema ou com suas ressalvas a ele…pois, embora o autoritarismo do governo ditatorial se excedia em sua prática, sobretudo pela tortura, denunciada pela Veja em outubro de 1969, a política econômica voltada para o consumo de bens duráveis e não duráveis era boa para essa classe média. Moda, eletrodomésticos, automóveis, outdoors, televisão, produtos de consumo do cotidiano importados, música internacional de massa e de ponta.

Mas, o “samba autêntico” irá ganhar relevância como bandeira política pelos próprios sambistas a partir do fim da década de 1960, quando há um novo vigor comercial do samba. Contrapostos a isso, alguns críticos, como Gilberto Vasconcellos, rotulava o samba produzido fonograficamente como “samba joia”, pois apenas repunha o nacionalismo, representado pelo gênero, em prol da ditadura. Ou seja, os artistas rotulados estariam “alienados” do processo histórico e apenas reproduziam uma música que nada mais tinha a contribuir para a “linha evolutiva da música popular brasileira”, seguindo a tese de Caetano Veloso. De fato, assim como qualquer outro ritmo da indústria fonográfica, por já se tornar somente um ritmo, ele pode ser pausterizado. Ou seja, o ritmo é o que determina o significado social e político, pois sua reprodução mostraria seu esgotamento de significado histórico em relação à ilnha evolutiva da música popular. Porém, é fácil ilustrar por exemplos consoantes meramente ao ritmo e à tese de que este estaria ultrapassado, cultural e politicamente, culminando na “alienação do povo” por seu consumo. Agepê, Antonio Carlos e Jocafi, Luiz Ayrão, Benito de Paula, Martinho da Vila, Clara Nunes, Beth Carvalho etc., todos foram tomados por essa alcunha em algum momento. A bestialidade do pressuposto negativo sobre o samba que redundava em seu juízo estético raso e soberbo, sem análise alguma da produção desses artistas, e, consequentemente, na valorização da concepção “evolutiva” da música popular.

Se o movimento tropicalista data de 1967, além do embate de Caetano Veloso contra o ponto de vista nacional-popular do crítico musical José Ramos Tinhorão, a perspectiva de Vinícius parece ser um prenúncio da necessidade de o samba feito na região central de São Paulo não mais se a ver com uma ideia “evolucionista” pautada pela própria Bossa Nova e por seus idealizadores da zona sul carioca. A estetização do samba pelos bares e boates de São Paulo teria sintetizado o samba em sua forma mais comercial, embora bem realizado tecnicamente. O túmulo não significaria de que não haveria samba em São Paulo, mas de que, na cidade do trabalho, o samba tornou-se apenas música, perdendo sua força social.

IV.

A provocação de Vinícius de Moraes, em tom de chiste, e, seguindo minha hipótese, sua busca pela autenticidade do samba moderno, causou respostas interessantes. Por exemplo: Martinho da Vila, a partir do festival de 1967, ganhou muito mais notoriedade em São Paulo do que no Rio de Janeiro; e o espetáculo “Rosa de Ouro” (1965), concebido e dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, também faz sucesso em São Paulo; as escolas de samba da cidade de São Paulo começariam, sobretudo a partir de 1968, a mais bem se estruturarem.

Este debate ganha vigor, principalmente, na década de 1970, a partir de críticos musicais do samba e da música popular urbana, como José Ramos Tinhorão e Sérgio Cabral, de intelectuais, como Muniz Sodré, em seu livro de 1979, e, em parte, Roberto DaMatta – também pelo lançamento de seu livro, em 1979 - , além de sambistas como Candeia, Paulinho da Viola, Aniceto do Império, João Nogueira, Beth Carvalho etc.

Porém, se naquele momento houve produções musicais, em defesa ou contra essa ideia, neste nosso momento histórico há somente a reprodução de jargões sobre o samba, numa confusão notória das análises entre gênero fonográfico e prática social. Jargões que têm formatado uma história “não-oficial” do desenvolvimento do samba em relação à constituição de uma narrativa “oficial” da sociedade brasileira. Ressaltam-no como bandeira política incontestável dos oprimidos; sendo assim, no sentido lógico, criticá-lo é estar do lado do opressor. Ponto irrefutável, pois, no limite, “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”. E daí vem o debate sobre corpo, afeto, pensamento colonizado, samba como democracia etc. E assim, o debate torna-se ideologia; e esta se torna aparência de debate e militância guerrilheira, acocorada nos ambientes sociais de seus próprios militantes que criticam genericamente, e em abstrato, uma elite, o embranquecimento do samba, buscam dar voz aos invisibilizados etc.; e sendo muitos deles advindos, formados e legitimadores desses mesmos lugares da classe dominante (universidades, moradores de bairros centrais valorizados historicamente pela especulação imobiliária, botequins desses bairros mais valorizados etc.).

Mas não é de inferências sociais e históricas abstratas que vive a crítica das manifestações artísticas populares. Se assim o fosse, embora em parte o seja, os neofolcloristas urbanos estariam por aí. E talvez estejam mais do que nunca. Para a verve militante do samba, a música é mero apoio para a performance política de uma esquerda liberal (sendo a rítmica de matriz africana a verdade inconstetável da “origem”; a rítmica como apoio musical, condiz com a perspectiva hegemônica da crítica musical europeia. Ou seja, aquilo que alguns pretendem como bandeira política a partir da música é, sobretudo, a reposição do pensamento hegemônico como ideia satisfatória e progressista de sua legitimação social e cultural; crentes de que recusam a cultura da elite, como guia moral e político do povo, e maior realizadora de tal, ainda que conscientemente partes da cultura nacional-periférica sob a gestão dela pela agenda política-cultural do Estado, a depender do governo, e do mercado, a depender da boa moral aparente de cada empresa). Afirma-se, por esses ideólogos, a negritude do povo como subterfúgio de sua performance política, sendo a própria elaboração estética da negritude mal realizada musicalmente nas “rodas de samba” que circulam por aí, mas bem disputada na concorrência do mercado de bens culturais. Afinal, um sambinha sempre vai bem pra entreter o povo! Insensato destino, pra quê? Conselho: deixe de lado esse baixo astral, erga a cabeça e enfrente o mal! De tanto levar “frechada” do teu olhar, “é agua de chuva no mar!”, “deixa a vida me levar” pelo “rio que passou em minha vida!”. Com algum distanciamento da euforia e de versos recortados como reflexo de afetos individualistas, podemos afirmar: o samba também é pop. A “batucada” repreendida de outrora por simplesmente estar na rua e representar a vadiagem está para a “batucada” afirmativa daqueles que reproduzem o samba como performance de tradição dos oprimidos, fundamentadas por subjetividades estimuladas pela produção de bens culturais massificados e objetivamente fragmentadas por seu consumo.

A mera valorização comercial ou o mero reconhecimento individual da música popular brasileira divulgada como rótulo de mercadoria bem valorizada em nichos de especulação imobiliária ou de anti-especulação, como se a periferia estivesse alheia a isso, e a resignação individualista e politizada desses militantes, é reproduzida por um repertório de samba em playlist aleatória (muitas vezes de forma indigesta, batendo forte no surdo no primeiro tempo ou fazendo do samba, uma marcha mal fadada, um pastiche de rumba com congas, um “sambinha” bem domesticado para os ouvidos regredidos pela pasteurização do gênero cuja diferença entre os subgêneros do samba está somente na intensidade e no volume e no modo de cantar daquilo que é feito). O aleatório, porém, não o é de fato. E não é por conta dos algoritmos, como alguns poderiam argumentar colocando os sujeitos como passivos nesse processo. É a necessidade de se reproduzir e de se afirmar ideologicamente uma perspectiva política na relação entre artista e público: por mais que haja boa intenção dos participantes, há o momento de espera e suspensão: a euforia precisa chegar; o congraçamento total, e quase religioso, precisa chegar, ele vai chegar! Um caráter de clímax do drama burguês, em que todo assunto social se resolve individualmente; mesmo que haja tristeza e sofrimento, há a superação disso. Nos termos contemporâneos, basta a resolução subjetiva. Tudo precisa parecer espontâneo presencialmente; ao mesmo tempo, no entanto, moldado pela história, já oficial, do samba, em que se entrelaçam estudos acadêmicos, discursos do(a) artista nas redes sociais em que os projetam para determinados nichos ou o excluem, política-cultural dos participantes dessa roda viva e a reprodução dos significados acumulados pelo gênero sócio-musical na mídia de massa.

Tudo isso conflui para uma audição pasteurizada do samba em relação ao seu amplo repertório, aos seus locais, as suas particularidades sociais e musicais e ao seu desenvolvimento histórico; conflui num processo histórico do fazer o samba como prática social e suas perspectivas de se ampliar como produto fonográfico. Para essa militância, basta um edital de cultura ou a entrada num Sesc, tendo sua justificativa histórica, para que a consciência geral entenda que samba é negritude e, consequentemente, luta política. E assim tocam em sequência “Insensato destino”, “Conselho”, “O show tem que continuar”, “Saudosa maloca” e, pra culminar na euforia geral, “Água de chuva no mar”.

Destino imperativo do povo, espetáculo como sinônimo de sucesso e vitória política (o que “A tardezinha” do Thiaguinho nos rendeu politicamente mesmo? tanto quanto o “Vai, Malandra” ? tanto quanto a banheira do Gugu ou a Dança dos Famosos no programa do Faustão? ou mesmo o Big Brother nº qualquer?), resignação moral em relação ao consumo de produtos culturais exortados em momentos históricos anteriores, jargões performáticos de engajamento político, legitimação cultural para o salto de consciência política.

Esses sambas, certamente, são mais do que esses proselitistas consomem. Mas, foram acocorados como hinos religiosos em seus nichos de consumo e de fé cultural – nada distantes dos neopentecostais! E sob a perspectiva desses protossambistas progressistas, por mais que tenham boas intenções, faz-se assim o túmulo do samba, cujo epitáfio será: “o samba morreu comigo e com meus amigos naquela roda consigo mesma; havia alegria! havia euforia! havia até uma batucada! uma marcha bem conduzida por um tum dum tum dum gostoso e compartilhado com os nossos! e o samba continuará vivendo aqui, na parte que me cabe deste latifúndio! Viva o samba!”.

Nesse enterro, talvez eu pense comigo mesmo: “a flor de seu amor pelo samba nunca irá romper seu túmulo. Ainda que seu sobrenome possa pagá-lo com sua pureza engajada, você nunca sambou, Iaiá; você nunca sambou, Ioiô! “.

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